A obra de Enki impressionava, nunca houve nem nunca haverá algo igual. Quando os Deuses desceram da montanha, saindo de suas tendas, ficaram assombrados desde o capitel que foi estrategicamente colocado para a comitiva de Anu passar. Após a passagem, um amplo páteo, cuja extensão abarcava toda a montanha, com pedras polidas firmemente assentadas. Mais adiante, uma incrível engenharia canalizava os rios, represava os lagos e silos drenavam o excesso de água. Para concluir a reforma, Enki reforçou com uma muralha a serra que separava o vale do pântano do grande mar, com comportas para regular a vazão de água.
O pântano, depois da intervenção de Enki, não exalava mais o cheiro de morte nem tinha mais o cenário de decomposição. Onde era o pântano, Anu podia orgulhosamente nomear de Cidade dos Deuses, que ele iria tirar proveito para reafirmar seu poder, seria calculadamente repartido entre os Deuses. Não estava nos planos nem no projeto, mas Anu separou a Cidade dos Deuses em setores que seguissem a divisão que havia sido conduzida com êxito na montanha dos Deuses. De forma arbitrária, com uso de força, por chantagem, por influência familiar, não havia limites para Anu realizar seus objetivos.
Deu a Urano o setor que foi chamado de Hélade, deu a Saturno o setor que foi chamado de Albion, deu a Elohim o setor que foi chamado de Canaan e deu a Amon o setor que foi chamado de Kemet. Reservou para si e seus familiares a montanha dos Deuses e o grande pátio em volta dela, chamando-o de Campos Elíseos. Como antes, os melhores materiais Anu guardava para si e por concessão onerosa dividia o excedente entre os demais Deuses. Exceto Enki, um Deus jovem que ainda não tinha qualquer direito de linhagem ou nobreza, recebeu um décimo do que porporcionava a Anu e ganhava o dízimo dos outros Deuses. Como se não bastasse essa afronta, Anu lhe deu o setor que foi chamado de Sumer, aumentando ainda mais a raiva e a revolta dos Deuses contra Anu.
Durante a assembleia, onde Anu instituiu as divisões, as obrigações, as vassalagens, a corvéia e os direitos, Nana percebeu que Ninlil estava com um semblante diferente. Com a escusa de que iria buscar com ela mais vinho para pôr à mesa, fez a Ninlil a pergunta que sua curiosidade lhe apertava na garganta.
- Irmã, aconteceu algo contigo, pois não tens mais a face de menina, mas de donzela. Por acaso inauguraste teu templo?
- Oh, minha senhora Nana! Eu não sei se fico feliz ou embaraçada. Eu abri meu templo e devo estar com a graça do Deus…
- Embaraçada estás, sem dúvida! Venha, minha irmã, que é mister clamar pelos teus direitos de linhagem. Rápido, vamos a Antu, senhora de todas nós, para que possamos clamar a herança.
Tolo, efêmero e mortal leitor, que se empenha em coisas fúteis, acumulando patrimônio, vivendo em uma era onde a Razão se sobrepõe cada dia mais contra a Emoção, certamente não sabe, nem nunca se deu conta, de onde vem a fonte da riqueza. A ti será concedido mais misericórdia do que foi dada a Anu, que olvidou a quem pertence a majestade e o trono. Anu não possui a coroa, a coroa convive com ele enquanto assim desejar. Anu não tem força na armadura nem poder em sua espada se não tiver a unção sagrada dada por Antu. Nisto reside um mistério, homens, que não podemos ver de frente.
Voltemos aos jovens Deuses, os quatro que, com Enki, construíram a maravilhosa Cidade dos Deuses. A estes não foram dadas tantas honrarias, toda fama e riqueza seria dada a Enki e isto é justo, porque assim contrataram enquanto temiam por suas vidas às margens das terras baixas. Levaram apenas o coração das jovens Deusas, com quem viveriam como casais, em habitações simples, nas bordas mais afastadas, como que para se proteger das intrigas e disputas entre os Deuses, mas isto apenas providenciou o ninho para as tragédias que se seguiriam.
Mesmo Enki não estaria sempre com boa fortuna como parece estar. Sumer era seu jardim, ele tinha uma bela esposa e uma impressionante mansão com muitos servos sob suas ordens. E mesmo com tudo isso, mesmo com o reconhecimento que ele tanto buscava, sua admissão na corte de Anu, os elogios e aplausos, nada disso conseguia afastar o terrível sonho ou a soturna presença da Deusa desconhecida que o visitava desde a primeira noite que passou na Terra Negra.
Ainda não se sabe por que sonhamos nem como os sonhos são formados e seus significados são desconhecidos. Pesadelos, por outro lado, são uma estranha forma da nossa consciência ou de nos avisar ou de nos castigar. Para nossa sorte ou azar, sonhos e pesadelos se desfazem ao acordarmos. Nem isto Enki desfrutaria. Durante uma de suas audiências que ele concedia aos outros Deuses para ouvir seus pedidos e considerarem interceder por estes diante de Anu, Enki achou que estava sonhando acordado, ou pior, tendo um pesadelo acordado. Bem diante dele, causando intensa agonia, uma sensação mórbida, a figura e a presença da deusa desconhecida, que causava terror até aos Deuses que lá estavam e nunca haviam tido sonhos ou pesadelos com ela.