Fugitivo – As imagens de meninas de calcinhas ou com os seios à mostra, clicadas entre 1985 e 1991, enquadraram o fotógrafo num inquérito policial. Acusado pelo então coordenador das Curadorias da Infância e da Juventude, Munir Cury, de estar infringindo o Estatuto da Criança e do Adolescente, Cabral recebeu ameaças de prisão. Seu estúdio foi invadido e os negativos das fotos, confiscados. E como estava em Las Leñas – de férias – quando a polêmica estourou, o autor foi tachado de fugitivo. O artigo 241 do Estatuto proíbe “a produção de fotografias pornográficas que retratem crianças ou adolescentes”. Na sentença publicada em 1994, o juiz Osvaldo José de Oliveira define as imagens de Anjos Proibidos como “artísticas”. Não apenas absolve o autor como recomenda à promotoria “cautela em separar o erótico daquilo que poderia caracterizar cena de sexo explícito ou pornográfico”.
Os anjos que Cabral fotografou ou trabalharam com ele em campanhas publicitárias ou foram convidadas entre as filhas de amigos. Todas as imagens foram clicadas com a autorização e presença dos pais. Quando determinou a apreensão dos livros, Munir Cury disse aos jornais que a bênção paterna ao trabalho poderia acarretar a perda do pátrio poder – ou seja, os direitos de pai e mãe sobre as crianças.
Nos anos 70, o fotógrafo inglês David Hamilton publicou inúmeros álbuns sobre o tema e no século 19 o também britânico Lewis Carrol, o autor de Alice no País das Maravilhas, fez trabalho semelhante. Na mesma época do lançamento de Anjos, meninas dançavam axé music nos programas de tevê em trajes sumários.
- Então Cabral descobriu as Índias.
- Sr Flint, como advogado do acusado, não é uma boa hora de fazer piada.
- Claro que não, Excelência. Mas como fotos de nu artístico podem ser crime? Onde está a Liberdade de Expressão?
- Sr Flint, a Liberdade de Expressão não é um direito absoluto. Quanto ao seu cliente, o sr deve estar ciente de que há uma diferença entre nu artístico e pornografia.
- Concordo, Excelência, mas a Promotoria não demonstrou a circunstância ou evidência que coloque o trabalho de meu cliente como pornografia. Aliás, não há lei contra a pornografia, Excelência.
- Sr Flint, de acordo com a Corte Americana, uma imagem de nudez não precisa caracterizar uma atividade sexual para que seja considerada pornografia.
- O que, diga-se de passagem, não está na Constituição Americana. Um Tribunal não pode atuar como Casa Legislativa, Excelência. Se não há lei, que crime existe na pornografia?
- Sr Flint, existe um crime quando a pornografia envolve uma pessoa abaixo da idade legal de 18 anos.
- Ah, estamos chegando a algum lugar. Então o crime é caracterizado pela idade da pessoa retratada, não por ter a pornografia como característica? Eu fico aliviado, porque se o erotismo de uma imagem é crime pela idade presumida da pessoa representada, muitos programas de televisão e muitas propagandas deveriam ser igualmente proibidos e seus responsáveis processados.
- Sr Flint o erotismo presente na mídia tem uma sexualidade sugestiva, não implícita como na pornografia.
- Desculpe, Excelência, mas agora é Vossa Senhoria quem está sofismando. Ora uma imagem é sexualmente sugestiva, ora é implícita. Qual é o limite? Não há lei que defina. Nós condenamos os atos de extremistas muçulmanos por impor a burca à suas mulheres porque, para a nossa cultura, isso é contra a liberdade da mulher, é uma opressão, uma repressão à mulher. Mas, para os muçulmanos, a excessiva exposição do corpo da mulher é que é um sexismo. Se vamos proibir a pornografia, estamos concordando com os extremistas muçulmanos. Se vamos proibir a pornografia, teremos que censurar a praia, o carnaval, a televisão, a propaganda.
- Sr Flint, nós não podemos censurar nem impor qualquer vestuário obrigatório. Nem o fazemos, tanto que existem diversas revistas adultas masculinas. No entanto, quando envolvem pessoas abaixo da idade legal, a lei pressupõe que há abuso.
- A lei pressupõe que há abuso com que base? A lei pode pressupor abuso, mas não pode pressupor inocência. E se uma pessoa emancipada posar para fotos de nu artístico? Legalmente, esta pessoa está abaixo da idade legal, mas é legalmente considerada apta para desfrutar de todos os direitos como cidadã.
- Sr Flint, isto cabe ao sr e ao seu cliente provar por documentos e evidências. Até lá, o trabalho do seu cliente é uma infração ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
- Que não é uma lei constitucional, mas uma lei ordinária, complementar. Uma lei que está no mesmo nível do Código Penal e do Código Civil. A Promotoria fez uma acusação ao meu cliente com base em uma lei discutível e indefinida. Eu peço a este Tribunal que conceda Habeas Corpus ao meu cliente.
- Data vênia, Excelência, a Promotoria pede a palavra.
- Com a palavra, a Promotoria.
- Senhoras e senhores do Júri. Todos nós somos adultos e conscientes de nossas responsabilidades. Podemos dizer isso de alguém abaixo dos 18 anos? Mulheres maduras optam por se exporem em fotos em poses sensuais e até simulando o ato sexual , por razões que não cabem a este Fórum discutir o mérito, mas uma pessoa abaixo da idade legal é exposta a tal exposição mediante coerção, violência. Podemos lamentar a existência da pornografia, mas devemos coibir quando a pessoa retratada na pornografia está abaixo da idade legal. A proibição da produção, venda, distribuição ou posse de pornografia infantil é um direito da criança e do adolescente. Os senhores e as senhoras devem ter visto a ação da Polícia Federal para evitar esse abuso que incentiva a pedofilia. Mesmo que a Constituição nos garanta a Liberdade de Expressão, não é um direito absoluto e isolado. Eu lembro ao defensor do Art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Neste mesmo artigo, o parágrafo 4 diz: A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. Mediante isso, eu rogo ao Tribunal que o presente réu seja declarado culpado e receba a cominação da pena que lhe cabe.
– Bravos! Belas palavras, promotor Falwell. Mas como o distinto juiz que preside este júri disse apropriadamente, um direito não é absoluto. Lendo o Capítulo IV, artigo 14, §1, II, c : O alistamento eleitoral e o voto são facultativos para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Capítulo II, artigo 7, XXXIII: proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos. Código Civil, artigo 5, parágrafo único, incisos I ao V. Em suma, senhores do Júri, a Lei reconhece que existem exceções e nenhuma lei que defina exclusivamente como responsável, civil e criminalmente, a pessoa acima de 18 anos.
– Com a palavra o Defensor.
– Grato, Excelência. Eu devo lembrar ao Júri e a este Tribunal que existe uma extensa jurisprudência sobre responsabilidade civil. O Código Civil prevê os casos de interdição de uma pessoa adulta: Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela: I – aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; II – aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; III – os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; IV – os excepcionais sem completo desenvolvimento mental; V – os pródigos. Também o Código Civil prescreve: Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I – dirigir-lhes a criação e educação; II – tê-los em sua companhia e guarda; III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V – representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
– Sr Flint, o sr está prolatando.
– Desculpe, Excelência, mas é necessário explicar ao Júri as circunstâncias.
– Eu vou permitir, dessa vez, mas faça seu argumento.
– Imediatamente, Excelência. Senhores e senhoras do Júri, eu lhes dei esses detalhes legais e até jurídicos com um único intento: idade não é garantia de responsabilidade. Devo lembrar a este Júri que as pessoas posaram para fotos com o consentimento de seus pais, no que cabia e as sessões foram acompanhadas pelos mesmos, como eu mostrei na evidência a este Tribunal. Portanto, senhores e senhoras do Júri, meu cliente está preso de forma ilegal, tendo seus direitos constrangidos, no que eu solicito o habeas Corpus e o encerramento desse processo por falta de provas.
– Ilustríssimo sr juiz, eu posso fazer algumas perguntas ao defensor?
– Com a palavra, a jurada sra Clotilde.
– Sr Flint, eu creio que falo em nome de muitos aqui. Eu tenho filhos. O sr tem filhos? Como o sr pode achar normal que uma pessoa abaixo da idade legal possa ir a uma sessão do que o sr chama de nu artístico, mesmo que acompanhado de seus pais? Isso é indecente, é obsceno. Se permitirmos coisas assim, onde vamos parar?
Jurados e platéia iniciam um burbúrio, cabeças acenam em aprovação.
– Boa pergunta, sra Clotilde. Bons tempos eram aqueles quando tínhamos leis duras. Antes brancos casavam com brancos. Homens votavam e trabalhavam. Cada pessoa tinha seu devido lugar, escravos existiam para servir. Por que não podemos ter os bons e antigos tempos de volta? Sim, como os patriarcas da sagrada Bíblia, que tiveram muitas esposas. Ou mesmo sermos como Lot, cujas filhas o embededaram e tiveram relações sexuais com o próprio pai, para que a linhagem continuasse.
– Sr Flint! Não blasfeme a Palavra do Senhor!
– De forma alguma sra Clotilde, eu apenas a estou citando. Pena que os cristãos não leiam suas Bíblias. Felizmente este é um problema de quem é cristão, felizmente este não é meu Deus. A sra falou em indecência e obscenidade. Por que a imagem de um corpo nu pode ser mais indecente e obsceno do que a imagem de um corpo retalhado? Senhores, vemos na televisão, no cinema e nas revistas várias cenas de violência sem que isso nos ofenda. Por que a nudez nos ofende tanto? O que há de mal nela? Se o erotismo é ofensivo, devemos proibir que a televisão e a propaganda a use. A própria televisão, propaganda traz para seus lares, para suas famílias, imagens erotizadas de jovens. Produtos, serviços, moda, carregam nossos filhos com mensagens eróticas, os sexualizando cada vez mais cedo. A internet contém toda a informação que precisam para saber sobre sexo, mas pouca ou nenhuma educação sexual. Então por que somente meu cliente está preso?
– Sr Flint, nós entendemos a sua posição nesse assunto. Mas a sra Clotilde tem sua razão; Não podemos ver o trabalho de seu cliente sem pensar em nossos filhos.
– Concordo, Excelência. No entanto, as mulheres que se expõem em revistas adultas masculinas também são filhas de alguém, são mães, são irmãs de alguém. Eu duvido que os homens aqui presentes pensem nisso quando compram uma revista dessas. Mas convenhamos, se o trabalho do meu cliente é crime porque promove a pedofilia, então as editoras de revistas masculinas adultas são criminosas porque promovem o estupro.
– Srta Lolita, qual a sua relação com o sr Fábio Cabral?
– Estritamente profissional, Excelência.
– A srta foi coagida, forçada, obrigada ou induzida a posar?
– Claro que não! Eu faço isso há quatro anos, eu sou uma profissional.
– A…srta posou nua antes?
– Não, mas o momento foi o ideal e propício para eu fazer esse trabalho.
– A srta sofreu algum abuso físico ou sexual?
– Não, Excelência. O último que tentou está na UTI, respirando por aparelhos.
– Então a srta foi vítima alguma vez?
– Vítimas de abuso físico e sexual existem, em todas as idades Excelência. A Justiça não deveria diferenciar o crime pela idade da vítima. Eu pareço pequena, mas eu tenho meus meios, admiradores e protetores.
– A srta não acha impróprio para a sua…idade…posar nua?
– Sinceramente, Excelência, isso é discriminação etária. Olhe bem para meu corpo e diga o que acha.
Lolita abre seu casaco e mostra seu corpo. Perfeito. Bem formado. Belo demais para muitas das mulheres presentes que ficaram com inveja e ciúme. Sensual demais para todos os homens presentes que ficaram excitados.
– Diga-me, Excelência, com toda sinceridade, se este é um corpo de menina ou de mulher?
O juiz Hogwart, de olhos esbugalhados, boquiaberto e com um volume nas calças difícil de passar despercebido, engole a saliva que escorre pela boca e disfarça.
– Arran…cof, cof. Srta Lolita, coloque seu casaco de volta. Senhores do Júri, alguma dúvida? Alguma pergunta? Nesse caso, como declaram o réu?
– I…inocente, Excelência.
PS: hoje existe uma verdadeira cruzada. O mundo contemporâneo tem uma cruzada para chamar de sua. Mistura de paranóia, histeria e pânico moral. Potencializado pelo conservadorismo, puritanismo e fundamentalismo cristão. A humanidade passou por muitos momentos semelhantes. As Cruzadas, a Inquisição, o Holocausto, o Macartismo. Existe a homofobia e o preconceito contra as religiões de matriz africana. Mas a pauta dos costumes, principalmente os que visam reprimir e oprimir a sexualidade humana estão dominando.
Esse texto é uma heresia, em nossa atual sociedade que ainda acredita que a criança e o adolescente são inocentes, ingênuos e assexuados.