O tribunal por si é um cenário aterrorizante. Sombrio, lúgubre. Um ar pesado, sério e sisudo. Nos corredores, as cortinas parecem mortalhas, as paredes são cobertas de painéis de madeira mostrando a terrível ação da justiça. A estátua da justiça é uma mulher vendada com uma espada na mão. Os policiais que estão no corredor o olham com um olhar frio, agudo, como se lançassem adagas pelos olhos. Greg tem que se segurar para não borrar as calças.
A sala de audiências é enorme. Um teto enorme que parece tocar o céu. Das alturas ciclópicas pendem espectros de candelabros, cujas pontas parecem apontar para seu coração. Em bancos muito parecidos com o que ele via na igreja, pessoas sentadas parecem esquadrinhá-lo, ele pode sentir o bisturi dissecando-o. Na sua frente, um juiz o espera do alto de sua mesa, um senhor que em circunstancias mais amenas poderia passar por seu tio ou avô, mas ali a face do juiz está mais para um verdugo.
Um servidor da corte se aproxima, dá algumas instruções para ele e para seu pai. Greg tenta entender, mas o medo não deixa. Ele apenas acena. O servidor o acompanha até a cadeira dos réus que mais parece um cadafalso da forca. O servidor ajeita a cadeira para seu tamanho e o microfone para sua altura. Então o meirinho lê a ata da sessão.
– Moranis e Kelvin contra Kappa. Acusação de abuso sexual. Réu e vítimas são inimputáveis. Moção. Recurso aceito. Réu tem idade maior que as vítimas. Apelação. Réu e vitimas estão em idade abaixo da idade penal. Contestação. Reclamantes alegam que o réu tem consciência de seus atos e aproveitou-se da inocência das vítimas. Sessão está aberta.
– Bom dia sr Kappa. O sr sabe por que está aqui?
– Sim, meu pai me explicou. Os meus pais e os pais de Ness acham que eu fiz algo ruim. Mas nós não fizemos nada errado.
– Este tribunal irá decidir, sr Kappa. Quantos anos tem?
– Nove anos, sr juiz.
– Quantos anos tem sua irmã e amiga?
– A Ness tem oito e Matt tem sete.
– Matt é a srta Kelvin ou a srta Moranis? Quem delas é sua irmã? Por que seu sobrenome é diferente?
– Matt é da família Kelvin, a Ness é da família Moranis. Meu sobrenome é diferente porque meu pai, casou de novo e ele tem a minha guarda. Matt é minha irmã por parte de mãe, a outra mãe, não a minha madrasta.
– Para que possamos entender sr Kappa, qual é seu vínculo com a srta Moranis?
– Ness é minha prima. Nós praticamente crescemos e fomos criados juntos. Quem bagunçou tudo foram os nossos pais.
– Entendo seu lado, sr Kappa, mas é o sr quem está em julgamento. Pode contar a esta corte os fatos do acontecimento?
– Eu, Ness e Matt sempre brincamos juntos. Sempre. Brincamos de tudo. Policia e bandido. Castelo e dragão. Bombeiro. Escolinha. Ninguém nunca criou problema com isso. Nós gostamos de brincar de imitar o trabalho dos adultos. Não sei por que fizeram tanto caso por que brincamos de médico.
– O sr tem ideia ou noção de que é impróprio fazer estas coisas?
– Por que, sr juiz? Os adultos vivem fazendo isso. Com diversas pessoas, nem sempre com quem vivem.
– Porque, sr Kappa, o sr é uma criança e não sabe o que fez.
– Desculpe sr juiz, mas como o sr pode afirmar que eu ou Ness ou Matt sabemos o que fizemos? Como esta corte afirma que eu sou incapaz de saber o que eu fiz mas acha que eu sou capaz de responder pelo que eu fiz?
– Aham. Sr Kappa, o sr afirma que é consciente de seus atos?
– Sim, eu sou.
– Então, por favor, preencha este teste.
Greg preenche o teste e devolve ao juiz, que entrega ao psicólogo para avaliar e depois o teste é anexado aos autos.
– Que conste em ata que o sr Kappa é considerado capaz e consciente. Esta sessão prosseguirá para que seja qualificado e tipificado o abuso.
– Sr juiz, a promotoria gostaria de chamar a srta Moranis.
– Srta Moranis, por favor, sente no banco das testemunhas.
– Bom dia sr juiz, bom dia sr promotor.
– Srta Moranis, bom dia. Para que conste nos autos, a srta sabe a diferença entre verdade e mentira?
– Sim, sr juiz. Melhor que muito adulto aqui presente.
– Aham. Srta Moranis, esta é uma sessão de julgamento, não um fórum de debate. Pode declarar aos jurados qual sua relação com o sr Kappa?
– Ele é meu melhor amigo. Nós somos primos, mas crescemos juntos, fomos criados juntos.
– Pode relatar aos jurados os fatos dos acontecimentos?
– Claro, sr juiz. Eu fui à casa de Greg como sempre fiz. Matt estava lá. Nós começamos a brincar. Eu e Matt nos escondíamos de Greg então começamos a conversar sobre ele. A ideia meio que veio na hora. Nós duas dissemos a Greg que queríamos brincar de médico. Ele seria o doutor, nós seríamos ora a enfermeira, ora a paciente. Greg estava examinando Matt quando nossos pais estragaram tudo. Agora nós estamos aqui desperdiçando o tempo desta corte com pouca coisa.
– Então o sr Kappa não abusou da srta?
– Não, sr juiz, o mais certo é que eu e Matt abusamos de Greg. Ele faz tudo que nós pedimos. Eu acho que é porque ele é apaixonado por nós.
– Srta Moranis, os jurados precisam saber se houve ato sexual ou não entre a srta e o sr Kappa.
– Precisam? Por quê? Não tem vidas afetivas satisfatórias? Sim, eu transei com Greg. Eu não tenho vergonha de admitir isso.
– Srta Moranis, a srta não acha impróprio fazer essas coisas na sua idade? A srta tem noção do que fez?
– Se eu acho impróprio? Claro que não. Impróprio é adulto usar seu cargo para roubar dinheiro público. Eu tenho total noção do que fiz. E eu desafio qualquer um a provar que não.
– Aham. Srta Moranis, por favor, preencha este teste.
Ness preenche o teste com desinteresse, em pouco tempo. O juiz dá uma olhada e passa para o psicólogo. O psicólogo também demonstra surpresa. O teste é anexado aos autos depois da avaliação.
– Que conste em ata que a srta Moranis alcançou um QI de 200. Esta corte reconhece que a srta Moranis é consciente e capaz de responder pelos seus atos. A minha decisão é que não houve abuso entre o sr Kappa e a srta Moranis. Esta sessão prosseguirá para ouvir a srta Kelvin.
– A defensoria chama a srta Kelvin para depor.
– Srta Kelvin, por favor sente no banco das testemunhas.
– Bom dia sr juiz, bom dia sres. advogados e membros do júri.
– Srta Kelvin, bom dia. Para que conste nos autos, a srta sabe a diferença entre verdade e mentira?
– Oh, sim, sr juiz. Meus pais e meus professores me ensinaram bem.
– Pode declarar aos jurados qual sua relação com o sr Kappa?
– Greg é meu irmão, embora de mãe diferente. Nós temos o mesmo pai. Papai tinha um relacionamento com mamãe quando estava casado com a sra Kappa. Quando eu nasci, papai se divorciou. Greg tinha dois anos. Eu acabei ficando com o novo sobrenome da família de papai.
– A srta pode nos relatar os fatos do acontecimento?
– Sim, eu posso. Eu fui para a casa de Greg, porque papai gosta de visitá-lo. Ness chegou pouco depois, para nossa alegria. Ela mora perto e nós sempre brincamos juntos. Ness é a minha melhor amiga e nós conversamos sobre tudo. Eu e Ness gostamos de falar de Greg e do quanto gostamos dele. Falamos coisas que gente grande acha proibida ou inconveniente. Eu não vejo o porquê. Nós somos gente como todo mundo aqui. A ideia veio do nada. Eu sei que Ness esteve na cama com Greg. Eu queria perder meu selinho. Greg é o único menino que eu conheço e confio. Eu sabia que ele me amava. Então porque não? Eu queria. Mas nossos pais estragaram tudo.
– Aham. Eu compreendo sua frustração, srta Kelvin, mas a srta ainda tem muito tempo para... hã… perder seu selo. Então o sr Kappa não abusou da srta?
– Não, sr juiz, como a Ness disse, o mais provável é que nós nos aproveitamos de Greg.
– A srta não acha impróprio fazer essas coisas na sua idade?
– Não, por que acharia? Eu duvido que qualquer um nesta corte, na nossa idade, não pensou, não desejou, não quis e não fez isso, de um jeito ou outro.
– Aham. Srta Kelvin, atenha-se ao caso. Esta corte não é um lugar de debate.
– Mas deveria, se querem causar ou inventar problema onde não existe.
– Aham. Srta Kelvin, a srta então afirma que tem noção e consciência do que fez e é capaz de consentir?
– Sim e, por favor sr juiz, passe aqui o teste para que eu prove isso.
Matt preenche o teste com desinteresse, em pouco tempo. O juiz dá uma olhada e passa para o psicólogo. O psicólogo também demonstra surpresa. O teste é anexado aos autos depois da avaliação.
– Que conste em ata que a srta Kelvin alcançou um QI de 180. Esta corte reconhece que a srta Kelvin é consciente e capaz de responder pelos seus atos. A minha decisão é que não houve abuso entre o sr Kappa e a srta Kelvin. Esta sessão prosseguirá para as considerações finais.
– A corte inicia o encerramento da presente sessão. Os jurados chegaram a uma sentença?
– Sim, sr juiz.
– Leia para esta corte.
– Por decisão unânime os jurados aqui presentes e representados por mim, o presidente dos jurados, decidimos que o sr Kappa não cometeu abuso sexual contra as srtas. Moranis e Kelvin. Esta decisão encerra igualmente os demais processos movidos pelos queixantes.
– A promotoria deseja apelar?
– Não, sr juiz. Este caso deve ser resolvido entre os queixantes e seus descendentes.
– A defensoria deseja entrar com um pedido de indenização?
– Não, sr juiz, a sentença é satisfatória para dirimir quaisquer futuras ocorrências. Mas o sr Kappa gostaria de se dirigir a esta corte.
– Esta corte cede ao pedido do sr Kappa, mas por favor, seja breve.
– Eu sei que vocês olham para nós e veem crianças. Nós somos gente como vocês. Vocês foram como nós um dia. A diferença entre nós é de época e educação. Mas nós não temos culpa se vocês tiveram infâncias infelizes. Nós não temos culpa se vocês aceitaram viver debaixo de uma opressão e repressão sexual. Nós não temos culpa se vocês aceitaram viver debaixo da tirania, da ditadura da Igreja. Vocês tem sérios problemas, recalques, frustrações. Vocês se acham adultos mas tem uma mentalidade parada no século passado. Mas isso não dá a vocês o direito de se intrometer nas nossas vidas e na nossa felicidade. Nós temos total e plena consciência do que fazemos. Nós não nos metemos em suas vidas complicadas, não se intrometam em nossas vidas felizes.
O juiz bate o martelo, os jurados são dispensados, os autos são arquivados, a plateia presente se dissipa, os advogados continuam com outros casos e as famílias retomam suas vidas. Naquela tarde, depois de uma boa conversa franca, aberta e sincera, os pais de Gregg, Ness e Matt conseguiram acertar as coisas. Naquela noite, Matt e Ness puderam perder seu selinho com Greg e todos viveram felizes para sempre.
PS: hoje existe uma verdadeira cruzada. O mundo contemporâneo tem uma cruzada para chamar de sua. Mistura de paranóia, histeria e pânico moral. Potencializado pelo conservadorismo, puritanismo e fundamentalismo cristão. A humanidade passou por muitos momentos semelhantes. As Cruzadas, a Inquisição, o Holocausto, o Macartismo. Existe a homofobia e o preconceito contra as religiões de matriz africana. Mas a pauta dos costumes, principalmente os que visam reprimir e oprimir a sexualidade humana estão dominando.
Esse texto é uma heresia, em nossa atual sociedade que ainda acredita que a criança e o adolescente são inocentes, ingênuos e assexuados.