Nunca vou me esquecer do dia em que tudo foi ficando nebuloso aos poucos para mim. Estava até então muito contente e instalado na frágil balsa de náufrago que nos equipam antes de nos soltar pelo oceano imenso da vida. Meus portos, meus pais, deram-me as primeiras orientações, pude contar com eles em várias situações antes de tomar em mãos os remos e remar por mim, me fazer navegar ao gosto dos ventos da minha mente distorcida.
Mas não era assim no princípio. Era realmente um náufrago entre muitos, diria realmente esforçado em participar da imensa corrente em que me encontrava, seguindo as ondas que eram produzidas para mim de algum lugar, ignorava a origem e serventia, mas me ajudaram durante algum tempo, neste meu princípio. Até este momento, nosso oriente em comum era apontado para a direção de uma cruz, que tomei também como referência para mim porque não conhecia outra referência, outro farol que este que aquela corrente apontava, mesmo sem entender direito o porquê, aceitei e compreendi o que a cruz significava e porque toda aquela corrente de náufragos dirigia-se para ela. Eu concordei por enquanto, na minha inocência desse princípio de vida e acreditei que só existia essa direção, pois a corrente de tão imensa, não se via os limites e encontrava-me bem no meio dela, um tanto perdido e inocente, devo me perdoar por um princípio de vida tão crente e confiante na corrente que me cercava e na cruz, distante e calada, para a qual me ensinaram a me dirigir, na promessa do porto tão esperado e desejado, tranqüilo, seco e seguro, que havia onde a cruz estava cravada e para onde toda essa corrente, na qual eu nasci, se dirigia. Eu apenas seguia para não ser um náufrago da corrente de náufragos. Achava que dessa forma estava correto e estava no mínimo encaminhado para a salvação. Salvar-me de ser náufrago e solitário, nesse imenso oceano da vida.
Mas não estava seguro! Certamente que não! Haviam náufragos de balsas, náufragos com bóias ou até sem nada e náufragos com botes, barcos, iates, alguns tinham até transatlânticos! Meus pais, meu porto, numa certa data, jogaram minha balsa em meio a lanchas. Estes náufragos com lanchas ignoraram completamente minha condição, ignoraram até minha presença e sem piedade, passaram sobre minha balsa com suas lanchas, inúmeras e repetidas vezes. Lutei para me manter na balsa e dentro da corrente, lutei para que os náufragos com lanchas me notassem, lancei vários sinais, mas eles não queriam me compreender! Eu era apenas um mísero náufrago de balsa, inocente e desinformado. Eles trituraram minha pobre balsa com as hélices do desprezo, da discriminação, da ridicularização, da chacota, da marginalização, do isolamento, sem motivo, apenas porque eu tinha por balsa minha base para navegar pelo oceano imenso da vida.
Machucado, retalhado, abandonado, humilhado, sem saber nadar ou navegar sem minha balsa, deixei a superfície e comecei a afundar nas profundezas, a corrente e a superfície respirável foi ficando mais distante e mais impossível de se retornar. E por que iria? Não fui traído em minha confiança e crença na corrente e no fato de que todos pareciam seguir a cruz? Por que então me vitimaram, por que estou agora afogando na repulsa e na revolta? Minha dignidade foi seriamente dilacerada, junto com a crença e a confiança na corrente e na cruz. Eu afundava e ia observando como, apesar dos esforços, não se deslocavam do lugar, não mudavam as técnicas de navegação, não avançavam, não progrediam, continuavam os mesmos, apesar de seus esforços, que eram inúteis. Quanto mais afundava, mais eu percebia o quão miserável e mesquinha era essa corrente, o quão miserável eram sua crença e orientação e muito provavelmente, a mentira que era a cruz. Das profundezas não se vê a cruz. Se fosse tão importante seria vista. Se fosse tão forte, teria me salvo e punido os miseráveis que me condenaram a morrer afogado.
Mas a cruz, que já na superfície, era distante e calada, agora nem visível se fazia, passei a duvidar e criticar a cruz e a corrente que a seguia, assim como os estúpidos náufragos que se fazem de líderes da corrente, bem como seus filhos cretinos, que me assassinaram a lucidez. Mais rapidamente comecei a afundar, a pressão das águas começaram a se fazer presentes e sentidas. Rompi com meu porto, com a educação, com a crença, com tudo aquilo que eu tinha na superfície e comecei a me reestruturar. A pressão das águas começou a me triturar e esfacelar, já não me reconhecia, eu tinha certeza porém de que seria capaz de me adaptar conforme a profundeza que estivesse.
Mesmo aqui nas profundezas, encontrei muita coisa cheia de gás, o que fatalmente iria me levar de volta à superfície. Soube evitá-las e aprendi a me deslocar na profundidade, em busca das coisas nutritivas. De vez em quando, voltava a olhar para a superfície e via que continuavam no mesmo lugar. Às vezes eu estava adiante deles, às vezes atrás deles e às vezes logo abaixo deles. Aos poucos, nutrido com as coisas certas, fui me adaptando e me transformando até que as profundezas se tornaram meu lar. ainda respondia, por uma questão de honra a meu porto, meus pais, embora fosse mais raro e mais distante a troca de sinais. Eles se preocupavam comigo e quase não me entendiam mais e nem eu a eles.
Foi há pouco tempo, muitos outros já estiveram como eu na profundidade, hoje mesmo existem muitos aqui, embora estejam um pouco distantes de onde estou. Tomei conhecimento deles pelo produto que fabricam, muitos nutritivos, outros nem tanto, outros muito gasosos. Graças a este contato, não fico muito deprimido, nem me considerando o único da espécie. Graças a essa nutrição, tornou-se suportável minha situação, nas profundas águas da razão e do pensamento crítico, foi com a ajuda deles que várias vezes pude juntar aos poucos meus cacos e retomar a lucidez, agora uma lucidez de profundidade.
Minha vida nessas regiões abissais da reflexão tornou-se agradável e deliciosa. Realmente gostaria de agradecê-los e por isso também tento produzir coisas nutritivas para que um dia, alguém possa deliciar-se com elas. Foi quando descobri que não é tão bom alimentar-se desses suculentos produtos. É muito mais saboroso produzi-los e será o meu maior deleite quando alguém se aproveitar dos meus e satisfazer sua fome por esses refinados pratos.
Agora o que me agradou mesmo foi a minha descoberta mais recente. Estava em busca de mais alimento e a produzir minhas guloseimas quando uma sereia encontrou-me. Ou melhor, eu li sobre ela, que soube como me convencer, por métodos sutis, vir a conhecê-la, por isso digo que ela que me encontrou, não o inverso. Fascinado com a idéia de sua beleza e sabedoria, quis encontrá-la, para deixar minha vida nas profundezas ainda mais deliciosa. De tanto procurá-la, acabei achando também nereidas, tritões, serpentes marinhas, dragões abissais e demais criaturas das mais profundas profundezas. Não existe, a meu ver, um porto único para o qual se possa se dirigir, mas creio que posso encontrar ao menos um epicentro e de lá procurar a moradia dessa sereia e dizer o quanto a admiro e a amo.
Tão ocupado na busca, que nem me dei conta mais de quanto prazer tinha em comer e fazer coisas nutritivas, passou a ser algo natural e inerente à minha pessoa. Nem notei sobretudo, uma terceira e grande mutação durante a busca, fruto das novas produções e nutrições que fazia e consumia. Tanto, que me espantei quando uma belíssima nereida me chamou, interessada por mim, eu ignorava o porquê, afinal eu era (ou pensava ser) um náufrago.
-Como é teu nome, belo e jovem tritão?
-Não sou tritão, bela mulher-serpente-marinha, sou um náufrago, esses seres da superfície.
-Nessa profundeza, com essa aparência? Não estou entendendo tua piada, tritão.
-Eu não estou dizendo piada alguma...
-Veja, confuso tritão, tua imagem em meu espelho e diga-me se eu não digo a verdade...
Olhei e vi minhas orelhas como barbatanas de peixe. A barba que deixei crescer de tão ocupado na busca, mais parecia com algas pretas a balançar nas águas. Minhas mãos e pés mais pareciam com a de um anfíbio e não podia negar. Tinha uma bela, forte e longa cauda, desenvolvida aos poucos e certamente fundamental para me deslocar na profundidade. Não era mais um náufrago, era um tritão e nem percebi. Estava procurando o reino dos tritões e demais criaturas abissais para viver,tornar-me uma delas no futuro e já havia me tornado uma delas, sem que percebesse. A nereida, notando minha surpresa e desconhecimento sobre a minha condição sorriu, deu uma discreta risada, mas sem a intenção de magoar, mas pela comédia da situação, acreditou que eu dissera a verdade, quanto à de eu ter sido um náufrago.
Vi seus olhos brilharem com compaixão por mim, por ter me atrapalhado todo com meu novo aparato, como se nunca o tivesse usado, só por ter tomado conhecimento agora, como uma criança que de repente vê seus braços longos ao alcançar a puberdade. Perde-se toda a coordenação motora. Muito prestimosa, propôs-se a me ensinar a controlar conscientemente essa minha nova forma. Na companhia dela eu flui por vários recifes, escarpas, cavernas, planícies, montanhas, planaltos, depressões e abismos. A vida no oceano profundo é tão imensa, senão maior que a da superfície, mais rico, mais agradável. Trocamos muitas ideias, conversamos muito sobre tudo, sobre todas a s coisas. Sentia que ela começava a demonstrar certo orgulho e admiração por mim, e eu comecei a me apaixonar por ela.
Chegou um dia então, que ela teria de me apresentar ao restante do seu povo, aos seus pais e ao Soberano de toda a imensa profundeza desse oceano que é a vida. Receberam-me muito bem, eu já praticamente era parte deste povo admirável das profundezas abissais, tive tanta aceitação e amizade como nunca havia sonhado, mais do que recebi na superfície... Para facilitar minha vida e adaptação nessa nova família, rompi com meu próprio passado, a última coisa que me ligava à superfície, mudei meu nome e me apresentei como Siron, mais adequado para a transformação que se operou, transformando meu nome anterior. Minha amiga nereida fez então a minha apresentação ao Soberano desse incrível abismo, um dragão terrível, de sete cabeças e dez chifres, mais conhecido na superfície por Leviathan e à sua bela esposa, Nahema. Tomei coragem e lhe perguntei:
-Soberano Leviathan, pode dizer-me onde está tua bela e divina filha Lilith, Deusa da Lua Negra?
A nereida olhou-me apavorada e temerosa. O próprio Sobrerano olhou-me com surpresa e riu uma sonora gargalhada, junto com sua esposa.
-Deusa do quê? Ah, minha filha, que bom comediante trouxeste a nosso lar! Que mais sabe fazer esse jovem tritão?
Quem ficou chocado e embaraçado depois disso fui eu, mas não tenho muita culpa se estava mal informado.
-Como sabe sobre mim? Sobre meu nome? Com os diabos, quem és tu?
-Minha filha! Já nos disse. É Siron. Falamos muito e comentamos muito sobre ele e suas obras deliciosas. Ele é o escritor Siron. O próprio.
Agora sim havia ficado completamente confuso, abobalhado e perdido.
-Mas claro! Ele... é Siron Kabet! Como pude me esquecer!
-Vós... Conhecem-me antes mesmo de me ter encontrado?
-Lemos suas obras. Simplesmente o melhor prato que pudemos nos deliciar, uma obra simplesmente suculenta.
-Oh, puxa! Nem sei o que dizer... Hã... Lilith...
-Por favor! Sem Deusa da Lua Negra, sim?
-De qualquer forma. Já sabe o quanto a amo, suponho...?
-Bem... Deixemos isso para depois...
Nem tinha ciência, mas tornei-me um mito na terra dos meus mitos, amigos, deuses-demônios, que nessa profundeza só nos resta tê-los como companheiros e orientadores. E eu era um mito para eles!
Mesmo que Lilith esteja casada com Samael, ela me dá muita atenção e carinhos especiais. Talvez essa informação de que Lilith é esposa de Samael esteja errada também. Não que a quero desposar, mas sim amar em toda a capacidade e consequência que todo amor leva (a cópula), sem a necessidade de um compromisso. Quando você estiver meio à deriva e achar que viu um monstro marinho revirar as ondas e derrubar navios imensos, pode ter certeza que sou eu, me divertindo às custas da imbecilidade dos náufragos da superfície, a quem odeio e me devem muitas explicações, desculpas e justiça. Eles escolheram a pior forma de reconhecerem o erro. Eu os ajudo a submergir na própria culpa, como merecem.
Agora que tenho minhas convicções e certezas, firmados em sólidas bases e me tornei um tritão, com uma vaga possibilidade de ser amado por Lilith, posso me dar ao luxo de fazer essas incursões à superfície, com toda a potência das minhas mandíbulas críticas e estraçalhar aos pouquinhos esse mundo besta dos náufragos da superfície.