sábado, 19 de agosto de 2017

Entrevista com o Espírito do Vento

Onde os demônios habitam? Isso os textos sagrados não explicam direito. Os Hebreus dizem que Babilônia [transliterando: Porta dos Deuses] tornou-se habitação de demônios após sua queda. O misticismo judaico diz que Lilith [a Primeira Humana, transformada em espírito e em demônio noturno] fugiu para o Mar Vermelho [outras versões apontam o Mar Morto], local “selvagem” habitado por demônios. Também estas regiões são comparadas como lugares de desolação… ruínas? Ou melhor indicar a região do deserto, onde inúmeras lendas dão como domicílio do insano, do possuído, do demônio? Então porque é exatamente ali que os homens santos vão peregrinar? Nisso há um grande segredo que está codificado no Caminho do Bosque Sagrado. Quanto a isso, não há erro, a Natureza é a base da Iluminação e são os espíritos contidos na Natureza os nossos condutores.

Eh, felizmente eu conheço muito bem a natureza humana e não vou precisar ir muito longe. A maldade está dentro de nós mesmos, não nos demônios. Minha experiência de vida, minha experiência espiritual, tem sido muito mais agradável entre os demônios do que entre seres humanos. Aliás, um erro comum entre meus colegas de Caminho [Paganismo Moderno] é achar que a Natureza é somente a floresta. O Firmamento, que eu simploriamente chamo de Jardim de Urano, também é Natureza. A cidade, a urbe, a despeito de todo asfalto, vidro e aço, também faz parte da Natureza. Não faltam lugares desabitados, desolados, desérticos, possuídos aqui em Sampa City, uma imitação barata de Gotham City que acha que é igual à New York City.

Usar sexo e sangue como catalisador, evocar espíritos e demônios. Algo que, infelizmente, tornou-se ponto de polêmica e controvérsia entre estes, que se dizem bruxos e sacerdotes. Isso é algo bem simples e comum para mim. Chamá-la é algo bom e agradável para mim. Eu acho que nunca vou entender por que ela me escolheu… afinal, por que eu a atraí, sempre será um mistério insolúvel.

– Ah, querido! Você me chamou. Aposto que você estava com saudades de mim. Eu também estava com saudades de você.

Ela me abraça, me aperta, me morde, como sempre. Eu tenho dificuldades de respirar, com os seios dela espremendo meu rosto.

– Lilith, assim eu morro sufocado!

[risos]- Você reclama demais. Pouquíssimos tiveram a sorte de ver meus seios, quanto mais de tocá-los. Isso sem falar nas “outras partes” e das “outras coisas”.

– Nós temos a eternidade inteira para isso. Eu gostaria que você me ajudasse nesse projeto.

– Projeto? [ela começa a me alisar] Isso vai te custar caro.

– Sim, eu… [minhas calças são rasgadas] eu quero escrever como foi o encontro de Satan com Cristo [ela começa a manusear meu trabuco].

– Cristo? [eu começo a ficar excitado] O verdadeiro ou o falso?

– O… os dois… [minha consciência flutua].

– Hum… então vai custar em dobro [ela abocanha meu soldado que sofre torturado por sua língua e lábios].

– Lilith… [eu estou quase no limite] se isso continuar, eu vou perder minha essência! Não tem outra forma?

[slurp]- Ora, mas a minha espécie vive da essência masculina. Vocês só erram em achar que os súcubos se alimentam de sangue. Minha gente se alimenta de sêmen. Agora seja um bom menino e me alimente… como fez inúmeras vezes.

Impiedosa, gulosa e insaciável, Lilith faz aquele truque [titjob e blowjob simultâneo]. Impossível resistir. A eletricidade atravessa minha espinha, meus músculos se contraem e minhas bolas murcham. Lilith arregala os olhos, surpresa e satisfeita, com a farta dose de sêmen que eu estou jorrando para dentro daquela boca e garganta.

[gasp]- Depois de tantos anos… você ainda me surpreende, querido. Então pare de pensar bobagem que você está com problemas com seu “amiguinho”.

[resfolegando]- N… nós podemos começar o projeto?

[ronronando]- Oquei, eu falo do Cristo… o verdadeiro… ou melhor dizer, da verdadeira. Depois nós vemos se você vai ter condição de pagar a segunda fatura.

Lilith se enrosca em mim, me abraça, me beija, me morde e me cutuca de tal forma que não demora para meu corpo começar a reagir. Animada com a expectativa do segundo round, ela começa a falar.

– Oh… bem… [cutuca] você também é parte do Espírito da Desolação, o Espírito do Vento, do meu povo, da minha gente. Você esteve lá. [cutuca] Você a viu. Nós nos apaixonamos por Ela, evidente. Nós dois sabíamos que era inconsequente, perigoso, arriscado, mas Ela tinha decidido acreditar no ser humano. Esse seu lado humano deve estar cheio de remorso, arrependimento e vergonha, mas você não deve carregar consigo essa culpa.

– Meu lado demoníaco nunca entendeu ou aceitou essa decisão. Afinal, Ela gerou muitos de nós. Ela gerou o ser humano. Inúmeras vezes Ela abriu mão de seu imenso e enorme poder, diminui-se e humilhou-se até a existência carnal e, tornada igual ao Homem, deu a nós o Conhecimento… só para depois ser perseguida, presa, torturada e morta de inúmeras maneiras [meus olhos começam a lacrimejar]. Mesmo assim… Ela ainda acredita em nós.

– Sim… [ela começa a me lamber] eu achei bem engraçado quando Ela se apresentou como Cristo. Ela pediu para que eu a levasse para Satan. [ela começa a me chupar]

– Ng! [eu não controlo mais meu corpo] Eu me lembro de como eu fiquei contrariado. [Ah!] Mesmo depois dos eventos e aventuras pelos quais eu e Satan passamos, ele ainda quis continuar com a encenação, a farsa.

[risos]- Você estava é com ciúmes! [sem cerimônia, Lilith vai encaixando meu poste na porta de trás dela]

[trecho indescritível e indecifrável, rabiscado, rasgado]

[risos]- Você é mesmo incrível, querido. Não é para menos que Ela te escolheu.

[arfando]- Ela e Satan conversaram por sete dias. Eu gostaria de saber o que conversaram.

– Ora, mas você sabe! Falaram sobre a essência do Caminho. Falaram que a limitação do ser humano iria produzir divisões, separações, conflitos. Falaram das inúmeras mortes, guerras e sacrifícios que aconteceriam. Satan, como sempre, estava pessimista e desanimado. Então… ah, então… Ela… sorriu… eu fico excitada só de lembrar.

– E… ei! Devagar aí! Isso aí é sensível!

– Ah, qual é, querido? Qual é a primeira coisa que vem em sua cabeça, em seu corpo, quando você pensa nEla? No sorriso dEla?

Essa é uma excelente pergunta. Eu estava apenas começando a explorar o Vale das Sombras, eu estava apenas fazendo o rascunho dos Cinco Círculos do Caminho, tal como eu o experimentava e o sentia, quando Ela veio me visitar. Eu não vou fingir nem inventar. Eu me caguei todo quando eu a vi. Pura Luz. Pura Beleza. Puro Amor. A mais perfeita forma feminina. Ela estendeu as mãos para meu caderno e não parecia estar ofendida nem escandalizada com a minha ereção. Ela lia cada linha com atenção, sacudia sua cabeça, provocando ondulações em seus longos e belos cachos dourados. Então Ela me olhou com aqueles imensos e belos olhos cor de púrpura, devolveu meu caderno e… sorriu… PQP… Ela sorriu. Eu acho que Ela disse algo com “continue” ou algo assim, mas eu estava tendo o maior e mais prolongado êxtase que um ser vivo consegue suportar. Saindo do transe que eu estava, perdido em meus pensamentos, quando eu me dou por mim, Lilith está toda animada, montada em cima de mim.

– Sim! Sim! Sim! Pelo Dragão das Águas Primordiais! Esse é o espírito! Eu até não me importo em sentir ciúmes! Você certamente a serve muito bem!

Lilith esbraveja várias palavras, todas na língua antiga, no entanto não é necessário tradutor para saber que ela deve estar falando diversas besteiras e palavras chulas. Eu não consigo pensar em coisa alguma. Eu não sinto coisa alguma. Meu pobre corpo parece um bife sendo batido até virar carne moída. Desculpe, mas eu vou morrer um pouquinho no meio dessas coxas. Mas eu volto. Eu acho que eu volto. Se eu sobreviver.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Heterogênese XVI

Estes são apenas alguns pequenos conselhos e considerações que, infelizmente, só terão lógica num tempo muito tardio para se recuperar alguma coisa. Que fiquem então estas palavras esquecidas no tempo, escondidas no deserto. Incompreendidas pelas cabeças esclarecidas dos homens que se fazem de sábios, mas acabam querendo ser tão donos da razão quanto os homens mesquinhos. Que riam de mim o quanto quiser, todas as juventudes que vem e vão, pois seu riso é perene como sua frágil e tola vida atrás de emoções. Pois seu escárnio é mais contra sua própria pobreza de percepção que contra mim. Suas regras de beleza, riqueza, poder e força são exatamente isso: produto de mentes perturbadas. Não adianta nada por máscaras diante de si. Só poderão matar-me uma vez, mas o tempo pertence àquele que pensa, cedo ou tarde o que escrevi virá à tona e seu Império de Luzes ruirá.

Ao contrário de muitos colegas meus, não pretendo ser profeta ou sacerdote das minhas crenças, ou de crenças ocultas, ou das Trevas. Pretendo, antes de tudo, plantar a dúvida e a crítica que qualquer um pode ter e são as únicas coisas sagradas, quando consideramos o gênero humano. Melhor que falar com parábolas sacras, falo então por sonhos profanos, já que nestes estão minha morada, já que nas Trevas cresço em inteligência e sabedoria. Que caiba a cada culpado reconhecer seu papel nas aventuras e caiba o jugo ao leitor esperto.

Terminarei minhas visagens, tendo que avisar mais a mim mesmo. Como os personagens para a consciência, serei esquecido por muitos, meus avisos ecoarão no vazio desértico de suas cabeças.

Não é sem propósito que minhas palavras e a consciência, estarão sendo continuamente sepultadas pelos senhores da sociedade. Já que o poder destes se garante pela repressão e pelos comodismos. Já que estão apoiados pelo Império das Luzes, contra quem a crítica e a dúvida perturbam sua superfície plana, sua película frágil de religiosidade pelo bem, sua casca de austeridade social, sua escama de fé hipócrita e podre num deus martirizado. O que escrevo pode não ser verdade, mas fere a filosofia fácil e nebulosa do Império das Luzes e alquebra o poder mesquinho e absurdo dos senhores da sociedade. Continuarão a esmagar seus semelhantes em nome de interesses obscuros, que não são do interesse de milhões, mas assim se faz em nome da Nação e do Estado. Coisas que, supostamente, deveriam ser do povo, mas que na verdade, não são mais do que os senhores da sociedade como as idealiza, a serviço de seus propósitos.

O mundo não faz sentido, já devia saber muito bem. Compreendê-lo, por mais que tente explicá-lo, muitas questões ainda surgirão insolúveis. Só tenho a certeza de que estou fora deste jogo. Dificilmente poderei entrar, qualquer que seja o método ou o meio, de romper as fronteiras e atravessar suas portas. Uma vez fora, melhor posso observá-lo; uma vez fora, dirão que tenho alucinações, ou que criei de mim mesmo este mundo. Escolhido de vontade, uma vida e um pensamento, nada me está reservado, que não a mendicância ou o asilo de loucos. Nada mais anormal que saber pensar e escolher independentemente, que mercado, acostumado a ordens e ideais aguados, iria querer roer os ossos da dúvida e beber o vinagre da crítica? Os motivos dados serão muito variados, mas isso não comuta minha pena, cuja condenação é morte por esquecimento e fome.

Cabe a cada um decidir seu rumo, ainda que contra um deus ou toda uma sociedade, contra toda história, que é escrita por regras preestabelecidas.

Uma vez que escrevo, estou assumindo a responsabilidade destes pensamentos como meus, como os riscos que trarão. Não deverá, de forma alguma, caso haja um futuro mais racional, as futuras gerações, regenerarem-me, cultuarem ou fazerem monumentos ou efígies meritórias a mim. Primeiro que não sou memória nem pretendo estar em museus de qualquer ordem. Depois que não sou mais que uma casca com um vácuo por alma. Além do mais, o mérito deve ser feito, não lembrado, em cultos ao intelecto, do qual quero ficar bem longe. Devem ter somente o que escrevi neste livro e o que foi lido pelos olhos, à parte, farão cada leitor, seus apontamentos, nada mais do que uma referência ou base, deve ser meu livro e minhas obras.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Primeira revelação

Por que quereis, Meus pequenos, saber da origem das coisas? 
Vossa estada é tão curta, 
proveito melhor vos daria primeiro em vos entender. 
Depois em entender o vosso lugar no mundo. 
Terceiro, em dar, a cada caso, 
o reconhecimento e o respeito que merece. 
A origem, Eu Sou. O Único. O resto é duplo. 
Tudo que existe vem da minha manifestação, 
como um círculo, não há começo senão Eu. 
Não há fim, pois eterno Eu Sou.

A emanação vem por um raio, 
a vontade, em círculos, diferentes planos, camadas e existências, 
mas o ponto central, o Um, Eu Sou. 
Escandalizareis-vós se soubésseis quantos, 
muitos mais que vós, existem acima, além ou aquém. 
Tratai, portanto, do que vos são menores, 
com a mesma complacência 
que esperam ser tratados pelos que vos são maiores. 
Reconhecei e respeitai a única riqueza que tens em vosso mundo, 
a essência necessária para a vida, que é a água. 
Vede como criei tudo aberto e imenso, 
dívida com vosso igual o terreno, 
sem tirar do menor do que este necessite para seu provento.

Tirai do vosso terreno o que vos basta, 
não acumuleis nem fareis de outrem fonte do vosso sustento. 
Se tiveres algo de valioso, 
não o guardeis para vós, pois o tesouro verdadeiro vem em 
compartilhar. 
Ainda vos digo isso embora não necessitais, 
pois Eu escrevi em vossos corações com Meu fogo, 
se quiserdes conhecer a Lei, 
consultem os vossos corações, pois é lá onde estou.

Entre barões e dragões

Dizem que debaixo de toda pedra existe ao menos uma criatura rastejante. Imaginem quantas criaturas devem rastejar debaixo de um castelo que é feito com diversas pedras. Nós sentimos nojo por que estes seres vivos não tem boa aparência, não são fofinhos e vivem na sujeira. Quanto a isso, nós não podemos fazer qualquer juízo de valor dessas criaturas, afinal elas são parte necessária da natureza. Mas existem criaturas rastejantes que perambulam pelo castelo, passeiam tranquilamente por seus corredores, salões e jardins. Destes nós podemos fazer muitos juízos. Debaixo de seus cargos, títulos, nomes, diplomas, vestes e pompa, eles escondem sua verdadeira natureza. Covardes, pusilânimes, traiçoeiros, falsos e fingidos. Não nos enganemos com sua aparência humana ou por sua oratória, são criaturas venenosas e pegajosas. No reino de Gotardo essa criatura era conhecida como Righel, um arconte que cresceu e apareceu dentro da Igreja pelo uso de suas habilidades nada abonáveis. Se castelos são morada de criaturas rastejantes, o Vaticano é o berço.
Righel tem uma carreira quase tão interessante quanto sua biografia. Seus pais foram servos de uma família romana que depois os adotou, o que o impediria de pleitear por uma cadeira em um seminário, de forma que ele nega suas raízes e carrega consigo um calhamaço de registros, contendo sua linhagem apontando para uma nobre família romana, mas nada que um falsário de primeira como ele não conseguiria forjar. Em tempos tão difíceis e complexos, a Abadia de Winter o aceitou sem muitas perguntas como monge, um sacerdote não ordenado. Depois de cumprir com seu tempo de estudo, Righel foi para o Seminário de Núrsia para iniciar sua vida sacerdotal, deixando a Abadia de Winter para colher os frutos de sua péssima influência. Depois de dois anos apenas, Righel tinha seu nome indicado para ser pároco de uma pequena vila, como auxiliar do padre, embora o Seminário de Núrsia tenha fechado depois de ter acontecido diversos fatos sem explicação. Evidente, o pobre padre não teve muita chance e o bispo de Voyeur pouco se interessava quem era aquele que apresentava uma carta de recomendação escrita pelo próprio finado o indicando como seu sucessor, qualquer um servia, desde que abastecesse a bolsa do bispo. Quando começou a histeria por causa das heresias, Righel viu ali a oportunidade perfeita para alcançar postos mais altos e foi pelos patrimônios e vidas tomadas que ele chegou a arconte.
O Vaticano não estava exatamente feliz por ter perdido o reino de Gotardo. Não estava exatamente indiferente com o edito do rei ordenando a restauração das crenças e religião local. Nem estava esfuziante quando o rei casou-se mais uma vez, com uma nobre de uma região que ainda estava além da força e influência da Igreja. O Vaticano “convidou” Righel como seu “representante” para o casamento do rei Savério com a rainha Fillardis, algo que ele prontamente atendeu, fingindo dedicação e obediência. Sua missão era, obviamente, servir de espião e de polícia secreta. O Vaticano deveria ter balançado quando Righel enviou seu relatório sobre a estranha proximidade entre a princesa de Gotardo e condessa de Mântua, Lúcia, com sua aia. Por outros de seus espiões e emissários, a Igreja secretamente distribuiu uma carta de convocação a todos os reinos para combater essa ofensa a Deus.
Righel, discretamente, sugeriu pelos mesmos canais que deixassem que ele fosse tratar com os reinos de Campânia e Astrésia, reinos que não apenas demonstraram completa fidelidade à Igreja, mas que também tinham assuntos pendentes com Savério, especialmente sobre os direitos e territórios que ele tomou na guerra contra Romualvo, seu sogro.
Uma boa conspiração, vingança e guerra entre parentes e familiares. Disto o Vaticano gosta, especialmente se vier com a conquista de mais almas e mais bolsas. O Vaticano deu a Righel o queijo e a faca, ainda que poucos sábios fossem contra. Righel aceitou de bom grado esse fardo. Rato que é, pegou o queijo todo para si. Covarde que é, pegou a faca para cravar nas costas de algum bispo ou cardeal, se assim a circunstância, a oportunidade e a chance lhe forem mais favoráveis para subir mais alto. Tendo traçado seu plano e operação, Righel apresentou-se diante de Paninfluo, o rei de Campânia e irmão de Romualvo.
– Saudações, Vossa Majestade. Esse humilde servo de Deus se apresenta diante de vosso poder para vos trazer um pedido da Igreja.
– Saudações, arconte Righel. Nós recebemos tua documentação e sabemos de antemão sobre o pedido da Igreja. Evidentemente que nós aceitamos tua causa, que é a causa da Igreja, a causa de Deus. O que nós queremos, em troca, é que, depois de acabarmos com os infiéis, o senhor venha fazer seu santo ofício em nosso reino. Nós sabemos que hereges se escondem em algum lugar desse nosso reino e nós cremos que apenas o senhor tem a capacidade para expurgar essa ignomínia.
– Vossa Majestade honra-me com tal pedido. Se assim for o desejo da Santa Igreja e de Deus, eu aceito este encargo.
Depois de trocadas gentilezas e presentes, Righel partiu contente e feliz para Astrésia, onde ele encontraria o rei Durval que, pelas intrincadas e complexas ligações de parentesco entre nobres, seria tio de Fillardis, o que não impediu a Igreja em indicá-lo para contrair matrimônio com a duquesa, um casamento arranjado por vantagens políticas, para a Igreja poder tomar para si o reino de Mântua sem esforço algum. Pouco importa os meios de Righel, desde que o Vaticano consiga dar uma lição ao rei de Gotardo e ainda ganhe Mântua como bônus.
– Saudações, Vossa Majestade. Esse humilde servo de Deus se apresenta diante de vosso poder para vos trazer um pedido da Igreja.
– Saudações, arconte Righel. Deus o abençoe. Nós confiamos em teu ofício para nos dar a oportunidade de reaver o que é nosso. De nossa parte, iremos solicitar ao papa para que o nomeie como bispo de todo nosso reino, assim que nos entregar a mão de nossa amada.
– Vossa Majestade honra-me com tal pedido. Se assim for o desejo da Santa Igreja e de Deus, eu aceito este encargo.
Nenhum biólogo acreditaria nisso. Uma criatura rastejante sorrindo. Righel sorria como um bebê sendo amamentado. Evidente que esse era o primeiro passo, mas depois ele pensaria em como tiraria vantagem dessa circunstância. Sonhando antecipadamente em ser rei de dois reinos, ter duas rainhas e seu próprio harém, Righel foi comemorar na primeira taverna que encontrou no caminho.
– Boa tarde, viajante! Seja bem vindo à Taverna da Macieira.
– Ora, agradeço, garçonete, a tarde é sempre boa, quando eu sou tão bem recebido por uma jovem com tantos atributos. Normalmente eu não sou recebido de forma educada.
– Todos são bem vindos, não importa quem seja, não importa de onde venha. Esta é a regra de toda taverna. Sente-se, por favor e faça seu pedido. Eis nossa carta de serviços.
– Hum, eu vejo que vocês têm boas bebidas. Traga-me então o melhor prato da casa e a melhor bebida da casa. Mas, diga-me, senhorita e quanto ao preço de outro serviço que não está nesta carta? O que acha de ganhar vinte dobrões de ouro por um serviço fácil?
– Vejo que o distinto cavalheiro é um senhor de posses e de bom gosto. Se tão distinto cavalheiro não considerar ser um demérito deitar-se com uma garçonete de taverna, onde tantos viajantes passam por suas portas, por trinta dobrões de ouro eu te indico o caminho do paraíso.
Righel fartou-se como pode. Saiu trôpego pela estrada, de volta à Gotardo, com a máscara de inocência estampada no rosto. Bendita seja a taverna, bendita seja toda a mulher da solicitude. Uma nos alimenta com comida e bebida, a outra sacia outras necessidades carnais. Não há templo maior e melhor do que este.
E que mistério a Fortuna e o destino preparam! Os clientes da taverna somente a conhecem como garçonete, poucos a chamam pelo nome, mas apenas afortunados a conhecem. Hildegarda ocupa seu posto na taverna até o fim da tarde, de noite ela atende como abadessa em Norfolk. A Igreja sequer desconfia da existência da abadia e das Irmãs da Solicitude que servem pelas estradas às necessidades dos homens, tal como conservavam suas crenças e práticas desde sua terra natal. Não era uma abadia cristã, se os leitores se escandalizam com isso. Muito devem as Irmãs da Solicitude ao rei Savério, então Hildegarda sofreu calada, em nome de seu ofício, debaixo de Righel. O homem tem muitas fraquezas e estas são rapidamente reveladas debaixo de lençóis, o ouro de Righel não era tão interessante quanto o que este confessara no ouvido da abadessa, entre gemidos de prazer.
Hildegarda sabia bem o que fazer, assim que se livrou do fardo. Primeiro, limpou-se com o leite curtido com ervas, uma receita antiga que seria esconjurada como bruxaria que a deixaria tão pura e virginal quanto uma debutante. Depois, livrou-se do avental e das roupas da taverna, vestiu seu sóbrio hábito, furtou o cavalo de algum bêbado, montou e pegou o atalho que a levaria até Gotardo onde sua irmãzinha Dolores certamente teria bom uso para a informação que ela carregava.
Quando os Romanos conquistaram a Gália, os territórios estavam ocupados por diversos povos descendentes dos Celtas e quando os romanos trocaram César por Cristo, estes povos trataram de disfarçar suas crenças, práticas e Deuses debaixo da roupagem cristã. Assim, vivendo na clandestinidade, surgiram diversas ordens, irmandades, conventos e mosteiros que, a despeito da cruz postada em seus pórticos, ainda celebravam seus ritos antigos. Estas coisas aconteciam amiúde nos campos e regiões ignotas e foi ali, em algum lugar da fronteira entre Mântua, Campânia e Astrésia, que surgiram as Irmãs da Solicitude.
As Irmãs da Solicitude compunham-se de freiras lideradas pela Madre Superiora Íris. Pelas roupas, linguagem e aparência, pareciam ter vindo de algum lugar além de Constantinopla. Chegaram trazendo junto com elas uma imagem que parecia ser de Nossa Senhora, os padres e habitantes deram de ombros e julgaram ser cristão o suficiente. Havia tanta confusão, mesmo entre patriarcas e bispos da Igreja, o que era ou não cristão, existiam tantos conventos e mosteiros que professavam coisas que poderiam ser consideradas heresias que ninguém fez muita questão de se certificar o quanto as Irmãs da Solicitude comungavam ou não com os dogmas da Igreja.
O edil da cidade fez o que lhe cabia, cedeu terreno, material humano e físico para que a Madre Superiora pudesse erguer sua abadia. Com os braços de escravos, servos e voluntários, o prédio ficou rapidamente pronto e foi inaugurado com toda a pompa, com uma fila de mulheres querendo entrar na irmandade. Eu peço aos leitores de outras terras, épocas e costumes que não façam mau juízo destas mulheres. Nestes tempos obscuros, para as mulheres era uma questão de sobrevivência poder ingressar em alguma ordem religiosa. Antes ser “noiva de Cristo” que, pregado que estava, mal não lhes fazia, do que ser loteada ou vendida por suas famílias em troca de um bom dote.
Os habitantes locais acharam estranho quando a abadia colocou cadeiras, mesas, tonéis ao invés de ara, santuário e santos. Alguns ficaram constrangidos no início, ao verem que não havia missa ou oração, as pessoas podiam entrar e sair quando quisessem, podiam sentar e pedir comida e bebida. Mas não demorou muito para que os homens, principalmente, começassem a nutrir um interesse profano pela abadia e suas freiras. Ao invés de claustros, a abadia mantinha nichos ricamente decorados e estofados dentro de suas paredes, onde as irmãs atendiam, solicitamente, aos desejos das almas famintas.
A despeito desse serviço carnal, um escândalo para um bom cristão, não faltavam candidatas ao noviciado. Hildegarda apareceu na porta da abadia, sem mais nem menos, pois o serviço sagrado era melhor do que aceitar casar-se com um velho beberrão que ela sequer conhecia. Iris não a questionou nem a interpelou, pediu para que lhe colocassem o hábito de noviça e a colocou para os serviços mais simples. Varrer a abadia, limpar as mesas, regar o jardim, carregar mantimentos ou qualquer outro serviço que suas agora irmãs passassem para ela, o fazia. Somente depois é que Hildegarda pode aprender como atender os penitentes, como servir comida, como servir bebida. Apenas bem mais tarde é que Hildegarda pode entrar nas salas internas da abadia, conhecer os nichos e conhecer a quem realmente a abadia estava consagrada: Ishtar, conhecida por Vênus pelos Romanos e por Afrodite pelos Gregos. A abadia ensinava o caminho espiritual pela consumação carnal. Hildegarda deu de ombros, afinal, se aquela que é chamada de Mãe de Cristo deitou-se com Deus, não havia pecado algum em receber dinheiro por tais favores.
Foi comprando mantimentos para a abadia no mercado central da capital de Mântua que Hildegarda encontrou e conheceu Dolores. Ela era mais jovem há alguns anos, ela estava visivelmente nervosa, ainda na expectativa de ser aceita na guilda das damas da corte e estava precisando de um apoio espiritual. Em poucos instantes, conversando, ambas começaram uma forte amizade e foi graças aos serviços de Hildegarda que Dolores não apenas foi aceita na guilda das damas da corte como foi admitida para ser aia da princesa Lúcia de Gotardo.
Hildegarda visitou Dolores e seu local de ofício, gostou muito do que estava acontecendo em Gotardo e fascinou-se com a princesa Lúcia. Então Hildegarda sabia perfeitamente que a confissão de Righel seria útil para suas amigas e assim ela fez. Diante do portão da guarda, Hildegarda se apresentou e solicitou audiência urgente com o rei ou com a princesa. Este humilde escriba estava passando casualmente quando notou o guarda do portão comunicando ao capitão da guarda sobre a solicitação. Sabedor que eu sou da burocracia e protocolo desnecessário que existem no funcionamento de um castelo, eu fui direto falar com Dolores.
– Dolores, eu tenho que conversar com sua senhora.
– O que aconteceu, escriba? Perdeu o pouco juízo que tinha? Eu não vou incomodar minha senhora para o senhor contar suas estorinhas. Eu sei bem aonde isso vai dar, eu caí em sua lábia porque era jovem, ingênua e inexperiente, mas eu não vou deixar o senhor sequer tocar um fio do cabelo de minha senhora.
– Meu ofício sem dúvida contribuiu para eu ser tão perturbado, mas saiba que nenhuma pessoa tem poder de obrigar outro a fazer o que não quer e você bem que gostou do que fizemos. No entanto, eu sei meu lugar, eu não irei tocar em sua senhora, isso seria o mesmo que tocar a lua. Ouça-me, ao menos, pois eu vim do portão onde uma mulher, apresentando-se como abadessa Hildegarda, solicita falar com sua senhora.
– Hildegarda? Aqui? Diga-me sem demora o que ouviu!
– A abadessa sabe de coisas sobre Righel que nosso rei deve saber.
– Sobre Righel, hem? Bem que eu suspeitava que este não era um cavalheiro. Venha comigo! Vamos nós mesmos conduzir a abadessa até minha senhora! Se o que ela tiver for bom, eu posso reconsiderar em voltar a fazer nossos saraus.
Dolores estava cheia do espírito, ela tomou meu braço e eu fui arrastado atrás dela, de volta ao portão onde ela, usando o nome da princesa, fez entrar a abadessa.
– Hildegarda, que bom pode vê-la novamente!
– Dolores? Oh, Dolores, que saudades! Mas… quem é este?
– Ah, um João Ninguém, um mero escriba. Venha, eu vou te levar até a minha senhora.
Eu, pobre coitado, mercador de palavras, sou vetado em exercer minha profissão. Diante de beldades tão decididas, sigo eu, arrastado, através dos corredores e salões do castelo até chegarmos em um rico portal decorado onde, debaixo de tal ameias, tinha uma grande e pesada porta, onde, mediante toques ritmados, Dolores indica para alguém do lado de dentro nossa chegada.
– Lúcia, sou eu, Dolores. Eu gostaria que a senhora conhecesse e conversasse com Hildegarda, uma velha amiga.
– Uma velha amiga? Entre, Dolores, que eu quero conhecê-la.
Em minha profissão eu vi diversos espetáculos de prestidigitadores e ilusionistas, mas não me canso de ficar maravilhado como esta porta abre-se como mágica e desvenda um universo totalmente fora da minha realidade. Conhecedor dos textos e lendas antigas, o dormitório da princesa certamente faria ciúme em muitas Deusas. Ver a própria, em sua pose tão formal, apoiada no costado de uma poltrona ricamente decorada, em nada deveria em beleza, majestade e esplendor a tais Deusas. Eu escondo estas notas, pois ela lança aquele olhar que pode tanto matar um pardal quando gelar o coração de um homem.
– Eu te dou boas vindas, abadessa Hildegarda. Uma amiga de Dolores é minha amiga, então dispense o tratamento protocolar. E… isto… o que é isto, Dolores?
– Ignore-o Lúcia. Isto não é sequer merecedor de ser esmagado debaixo de seus pés.
– Não sejam tão duras com o coitado. Que culpa tem por ser escriba?
– Eu vejo que a senhora é realmente uma boa alma. Só mesmo pessoas consagradas teriam compaixão e misericórdia com um escriba. Mas vamos esquecer essa criatura. Diga-me, Hildegarda, tudo o que você tem a dizer.
Oh, cruel sina que nós escribas carregamos. Desprezados e ignorados até por nossa própria família e parentes. O leitor é nosso único amigo, se bem que também nos apedrejaria, se nos vissem na rua. Ainda assim, poupá-los-ei de desnecessárias linhas e lhes direi que Hildegarda contou as confissões de alcova ditas por Righel. Oh, Fortuna, oh, Destino! Eu chego a sentir pena de Righel.
Lúcia ouviu tudo o que Hildegarda tinha para lhe contar e Dolores está de olho no que eu anoto então o leitor me desculpe se eu omitir tal diálogo. Eu me encontro emaranhado nisso até a medula, então mais uma vez lá vou eu, arrastado através do castelo, até a sala particular do rei Savério onde as três mulheres entram e me jogam ao chão, diante de um rei surpreso.
– Ora, ora, se não é minha bela Lúcia e sua amiga! Entrem sejam bem vindas. Poderiam me apresentar para estes visitantes que vocês me trouxeram?
– Meu senhor, esta é Hildegarda, da abadia das Irmãs da Solicitude. Ela é amiga de Dolores e tem revelações que podem livrar Gotardo de um grande mal.
– Um grande mal? Não há grande mal, apenas homem pequeno. Mas falando em homens, que é este que tanto rabisca em um caderno?
– Ninguém, meu senhor, esta criatura sequer é merecedora de ser chamada de homem.
– Ah, Lúcia, se você soubesse quantas vezes este homem velho foi olhado com desprezo por pessoas que acreditam serem superiores, não diria isso. Adiante-se, homem, apresente-se.
– Meu Supremo Soberano, eu sou um pequeno, pobre e humilde escriba às vossas ordens.
– Ah, viram? Não foi assim tão ruim. Diga, homem, o que tens com estas beldades que o faz vir até aqui?
– Oh, Bom Senhor, esta é a minha sina. Eu sou carregado pelas palavras e pelos livros. Eu sou como que possuído por um espírito que me conduz a ler e escrever. Seja por Fortuna ou Destino, este pobre escriba teve a graça de conhecer Dolores e é por ela que me vejo conduzido à vossa presença.
– Oh, meu pobre homem, eu sei pelo que passa. Quantas vezes eu, apesar de regente deste reino, não me vi sendo conduzido por amor por minha Fillardis? Se for deste mal que sofres, sofra-o com orgulho, pois é um sofrimento prazeroso. Venha um dia desses e me traga seus escritos que eu quero ler todos.
– Meu senhor! Não pensa em dar a tão baixa e vil criatura tal distinção?!
– Ora, um homem que conquista o coração de uma mulher merece o respeito de um rei que conquista um reino, pois vejam que é a mesma coisa! Se ele não fosse importante ou significante ao menos para uma de vocês, não o teriam trazido até aqui. Então vamos deixar de cerimônias, pois a acusação contra Righel é grave e nós devemos pensar bem em nossa estratégia.
Oh, Themis, oh, Musas, ouvistes minhas preces! O meu senhor e soberano não apenas me tem por conta de ser humano, como me considera digno de ser lido! Sim, eu vejo que a santa Hildegarda sorri, aquiescendo diante da sabedoria do rei, ainda que a contragosto de Lúcia e desconfiança de Dolores. De uma, eu sei que tenho muitos pecados a me justificar, mas eu peço a vós, Deusas, pleiteiem por mim diante de minha senhora, a quem ofereço a mais profunda admiração e devoção!
– O que você tanto murmura escriba? Mais tarde dou-te conta!
– Oh, Dolores, porque faz tão mau juízo deste pobre homem que apenas deseja dar-te seu carinho, atenção e amor?
– Pelo que roubaste de mim! Bem sei o que fazes entre as árvores nas noites de lua cheia, então peça mercê a Diana, pois maculada que eu fiquei por ti, não poderei encontrar um bom partido e minha família certamente ficará desonrada se oferecer meu dote a um cavalheiro distinto!
– Oho! Uma pequena discussão entre dois enamorados. Creia-me, Dolores, não há diferença alguma entre este escriba e qualquer cavaleiro, mesmo o de nobre nascimento. Nós, homens, somos exatamente os mesmos, sem roupas e debaixo de lençóis.
O rei Savério diz isso bem ao lado de Dolores enquanto gentilmente rodeia seu tronco com seus braços e pousou uma de suas mãos no quadril dela. Eu estou salvo da fúria de Dolores, então eu engulo meu ciúme por ver os olhos dela brilharem e suas faces ruborizarem diante da proximidade e do abraço do rei. Lúcia pigarreia, como que para retomar o foco para o que eles se propõem a discutir e o rei dá uma piscadela para mim antes de sentar-se ao lado de Hildegarda. O rei debaixo de sua coroa é um homem e é rápido e objetivo ao escolher seu alvo.
O rei deixa as mulheres falarem conforme desejam, apenas acena com a cabeça e mantém uma feição de seriedade. Lúcia demonstra ter um tino praticamente genético em estruturar estratagemas, como se estivesse em um jogo de xadrez, antecipando e prevendo as ações de Righel. Dolores a animava, enérgica e encorajadora, reforçando como se fosse um eco algumas palavras que pareciam importantes. Hildegarda sorria e de vez em quando olhava, ora para o rei, ora para mim. Nenhum alquimista saberia o mistério que esta mente divina está urdindo. Ela não parecia nem um pouco incomodada ou ofendida com a evidente atração carnal que exercia no rei e este certamente deve estar imaginando mil estratagemas para levá-la para sua cama real. Eu acho que eu mesmo coraria, se ouvisse os pensamentos que o rei nutria por Hildegarda. Eu certamente iria para a forca se tentasse algo assim com a Dolores. Quando as mulheres despejaram seu rol de ideias, o rei, ao ver que quedavam pensativas e em silêncio, interrompeu a reunião, batendo com o punho fechado por sobre a mesa.
– Muito bem! Tudo que dizem é sensato e correto. Eu peço a tais beldades que confiem nesse homem velho para que cuide de tudo. Eu também devo pedir a vós que fiquem no antigo santuário que existe na Montanha de Falcis, onde um bom e velho amigo de confiança que eu chamarei lá estará para que as protejam.
– Meu senhor! Acredita mesmo que eu não seja capaz de vestir uma armadura, montar um cavalo de batalha, tomar lança e espada e estar na frente de batalha contra nossos inimigos?
– Oh, minha majestosa e luminosa princesa, eu jamais pensaria tal coisa! O que mais me acalenta diante da batalha é saber que mesmo os Deuses temem quando uma Deusa está vestida para a guerra. Mas minha vida é dispensável enquanto a tua é mais preciosa do que todas as terras de meu reino. Você, encarnação de Vênus, terá a incumbência de cuidar de minha esposa, Fillardis.
Lúcia ficou embaraçada, mas aceitou o conselho de seu rei, levando consigo a rainha e sua Dolores. Com a desculpa de que diante de inimigos poderosos que teriam o Deus Usurpador ao lado deles, o rei solicitou para que a abadessa ficasse mais um pouco ali, pois com a ajuda dela poderiam conseguir o apoio do Deus Legitimo. Antes de eu ser arrastado novamente, eu pude ver Hildegarda com um sorriso estampado no rosto, satisfeita pela oportunidade de poder experimentar o poder do cetro do rei entre suas pernas.
Oh, Musas, porque pousaram em Brundísio, Florença, Stratford, mas não em Vila do Piratininga? Quisera eu ter uma língua boa, mas nasci com um trapo entre os dentes. Oh, Ceres e Demeter, porque fizeram dos filhos da loba uma civilização, mas da Terra de Vera Cruz fizeram uma piada para a humanidade? Cem macacos com pena, tinta e papel produziriam obras melhores que as minhas. Oh, meus mestres do ofício de escriba, que desgraça meu nome deve trazer a esta guilda. Eu os ouvia falando de como Ulisses logrou as sereias, por quem a lenda nos ensinou lição severa, pois eu ousei a ver pelos olhos de Homero e que mistério eu tenho que me calar, não pelas sereias serem tanto meio mulheres e meio aves e peixes, mas porque elas são filhas das Musas e netas de Mnemosine! Filha de Gaia, cujo ventre divino gerou a titanesa Metis, aquela que, engolida por Zeus, deu origem à Atena, a Deusa da Civilização e Górgona! A maldição do escriba é ousar saber e ter que calar, pois o poeta que come da fruta da Deusa conhece tudo, mas o preço é a morte.
O leitor pergunta o que eu tenho com Ulisses, pois eu explico. Assim como Ulisses aproximou-se da caverna sagrada guardada por sereias, eu me aproximei do santuário que existe dentro da Montanha de Falcis. Bem eu sei que alquimistas e doutores ensinados por padres ou outros acadêmicos desdenham da crença, mas é necessário buscar a Sabedoria como se caça um cervo na floresta, o Caminho do Bosque Sagrado está aberto a quem tiver coragem de enfrentar o labirinto que nos conduz à Verdade. Nessas poucas e breves mal traçadas linhas eu deixei uma pista do mistério que Ulisses desvendou ao ouvir as sereias.
– Ainda está perdendo seu tempo rabiscando este caderno?
– Oh, Dolores, por que tortura tanto meu pobre espírito? Esta é a minha sina e o leitor quer ler.
– Pois se tem que escrever, o faça sem rodeios! O leitor, se é que tem algum, não precisa de delírio ou fantasia, diga os fatos.
– Oh, meu coração, este é o trabalho do jornaleiro, não do escriba.
– Ah, bandido, quer novamente arrastar-me com suas palavras! Cale-se maldito e escreva. Dou-te conta depois.
Afastado de rotas e estradas, o santuário está na base da Montanha de Falcis, um local que ainda preserva a floresta e as ruínas de um tempo remoto. Mesmo um guia hesitaria em atravessar tal região e o povo contam várias lendas sobre a sorte de viajantes e aventureiros que por ali passaram. Por arte ou por natureza, a rainha nos conduz em segurança até a entrada de uma caverna, cuja entrada está ricamente decorada com relevos. Eu olhei para a penumbra e pude perceber pequenos focos de luz bailando pelo ar, mostrando que ali é um lugar sagrado, por onde as almas entram ou partem deste mundo. Eu recordo de ter ouvido os anciãos terem dito que a montanha é o corpo de uma antiga Deusa e em seu interior habita o Senhor da Floresta, de quem nossos patriarcas míticos são descendentes e herdeiros. Este é um aspecto de semelhança que existe nos mitos e lendas da fundação das cidades e civilizações, onde um semideus ou filho de um Deus faz o fundamento de uma cidade e ensina aos homens a sabedoria dos Deuses. Dolores segura apreensivamente meu braço, mas não é para censurar, mas sim para alertar que algo ou alguém estava se aproximando.
– Evoé, a quem está dentro do santuário. Nada temam, pois eu vim em nome do rei Savério para lhes garantir a segurança. Este que vos anuncia a chegada pronúncia seu nome para que o reconheçam como servo do Senhor. Eu sou o barão Merovas, senhor do feudo dos Francos.
– Ieauo, a quem está fora do santuário. Aproxime-se que nós o estávamos esperando. Esta que te reconhece pronuncia seu nome, pois também é serva do Senhor. Eu sou a duquesa Fillardis, senhora do feudo de Mântua, rainha de Gotardo.
– Fillis? A minha Fillis? Ora, em nome de Morgana, é a minha pequena Fillis! Venha cá, minha preciosa! Faz um bom tempo que não a vejo.
O cavaleiro desce de seu cavalo de guerra, tira o elmo e revela uma face cansada e acostumada com batalhas. Seu estandarte porta um singelo dragão negro em um fundo vermelho, sua armadura é composta de um metal que eu desconheço e está decorada com veludo púrpura, indicando sua nobre linhagem. A rainha caminha apressadamente e abraça ternamente o cavaleiro para depois proceder com as apresentações.
– Meus queridos súditos e amigos, este é barão Merovas. Mas eu diria que ele é o rei dos Francos. Por intrincadas relações familiares ele é meu primo, o que faria dele seu tio, Lúcia.
Lúcia perscruta o cavaleiro de alto a baixo, com um olhar intrigado, com uma expressão de incredulidade e como se tentasse reconhecer sua face de suas memórias.
– Diz o sábio que não existem coincidências. Quis a Fortuna e o Destino que nos encontrássemos, então faremos algo disso. No momento, meu senhor, a presença da abadessa Hildegarda nos é necessária para invocar a presença do Senhor da Floresta e, através dos ritos apropriados, solicitar ao Senhor uma aliança para que tenhamos alguma chance de vitória contra nossos inimigos.
– Aqui estou, princesa.
O rosto de Hildegarda estava fulgurante, seus olhos brilhavam como as estrelas e seu sorriso parecia uma lua crescente. Eu não entrarei em detalhes do motivo por tal transfiguração na abadessa, mas creio eu que isso é devido ao tempo gasto em companhia do rei. Eu bem sei que os pobres cristãos veriam nisso escândalo, mas estamos em um tempo e uma região onde a Igreja não manda. A humanidade sempre teve regras e modos próprios para o amor e relacionamentos e o costume é de que um coração não é como uma fazenda, onde o meeiro ou ocupante é dono, o coração obedece a Eros e Afrodite e estes não definem classe, gênero, guilda, ocupação, número ou idade, o que há são pessoas amando pessoas. Assim, ao contrário do costumeiro dos hábitos da nobreza, a rainha não fez caso nem ciúme, felicitou-se por que seu amado foi capaz de satisfazer a abadessa e contentou-se pela abadessa ter tido o prazer de experimentar o gosto da geleia real.
– Excelente, abadessa. Por favor, inicie os preparativos para o ritual onde invocaremos o Senhor da Floresta.
– Imediatamente, vossa majestade. Mas e quanto a… isto?
Os olhos se voltam para a mesma direção em que o indicador de Hildegarda aponta e eis que apenas agora minha presença é notada pelo barão. Certamente a rainha, a princesa e a abadessa sabem bem desses ofícios clandestinos executados em ruínas, igrejas abandonadas e entre círculos de pedra na floresta, mas o que eu posso dizer de mim? Eu mal sou considerado gente, eu sou um escriba.
– O escriba não estaria conosco se não fosse necessário, além do que devemos considerar que Dolores também é profana, o que é igualmente propício para os antigos rituais. O Senhor da Floresta mostrar-se-á mais favorável à nossa petição se um homem e uma mulher forem apresentados e iniciados nos Mistérios Antigos.
– Ora, que interessante. Nós estamos considerando não apenas conceder ao escriba sua condição como homem como também faremos dele um iniciado! No entanto, isso depende de Dolores. O que me diz, cara amiga, aceita fazer este sacrifício?
– Minha rainha, eu sou uma mera serva a serviço de sua filha. Se este é o preço que me cabe, apenas vos peço que ordene e diga-me o que fazer.
– Isto será bastante simples, não há muito segredo, achegue-se aqui comigo e Lúcia, pois ela precisa também saber e preparar-se para quando o momento dela chegar. Enquanto isto, escriba, o barão há de te ensinar o que fazer e dizer.
Ah, o que eu ouvi e soube! Ah, o preço do conhecimento! Nenhum livro pode conter tais práticas e palavras, pois são chaves que abrem a realidade divina. Eu a tudo ouvia e acenava consciente e concordando, ao mesmo tempo em que observava Dolores ao longe, evidentemente nervosa e contrariada com a parte que lhe caberia. Evidente que eu estava contente e alegre, nunca em toda minha vida eu poderia sonhar com tal mercê. Como eu, mero escriba, poderia ser necessário, como eu poderia servir, como eu poderia almejar a consideração que cabe a um ser humano, nem mesmo meus maiores delírios chegariam a tanto.
– Muito bem, os preparativos estão concluídos. Apresentem-se o homem e a mulher que, segundo o desejo e vontade de seus corações, estão dispostos a oferecer o devido sacrifício ao Senhor da Floresta.
Seguindo a fórmula que lhe foi passada, Dolores entoa seu nome, não o nome que é dado no batismo, mas o nome que é o de sua alma. Eu, vendado, amordaçado, com mãos e pés atados, senti quando me aproximei da borda do círculo sagrado, proferi as palavras e os códigos para então ser admitido diante do altar central. Eu senti o frio da lâmina de uma espada tocar o alto de minha cabeça, o centro do meu tórax e minhas partes baixas. Eu tive minha testa, rim esquerdo, ombro direito, ombro esquerdo, rim direito e novamente a testa ungidos com óleo aromático. Quando eu tive minha venda removida, eu pude ver todo o interior da caverna tão iluminada quanto uma catedral. Então eu vi que o altar estava forrado como se fosse uma cama e Dolores estava por cima completamente nua. Eu devo consumar com ela o Hiero Gamos e, com isso, o Senhor da Floresta há de vir e ouvir nossa petição. Dolores me fitava com olhos raivosos, mas essa era a nossa oferenda, sacrifício que assim que teve início, Dolores passou a gemer e me fitou com olhos amorosos. Quando meus sentidos foram envoltos pelo arrebatamento do prazer e minha essência preencheu o ventre de Dolores, antes de desfalecer eu vi a face do Senhor.
Houve quem disse que a pena é mais forte que a espada. Dependendo do momento, um ou outro escriba, um ou outro pensador, um ou outro sábio reclama a ele a autoria da frase, mas eu queria ver estes esgrimindo com suas penas diante da espada. Isto é a guerra, apenas quem passou pela experiência pode declarar sobre seus terrores e eis que eu vi como que o céu sentindo a sede de sangue no coração dos homens. Lanças erguiam-se contra as nuvens, como se fossem pinheiros, cada banda do vale carregado de soldados, cavaleiros e armas. Cada lado tinha seu estandarte, sua insígnia e cores. Tanto ali como cá, pessoas que antes eram vizinhos, amigos ou familiares, agora podem muito bem estar em lados opostos e não hesitarão em se matar.
– Ora, quem diria! Vendo-o assim, em gibão, cota de malha, cinturão, bainha e espada, eu não saberia que é um escriba. Veremos se é tão bom no manejo de uma espada como é bom no manejo da pena.
– Dolores, meu coração, eu fico muito feliz que tenha dito que eu sou bom na pena e te prometo que voltarei vitorioso da batalha. Eu peço apenas em troca que aceite de vez meu amor.
– Amor? Você acha mesmo que sabe algo sobre amor, por saber usar palavras bonitas? Você acha mesmo que há amor entre nós apenas por causa de minha fraqueza? Nem mesmo os Saxões que conquistaram a Bretanha conseguiriam conquistar o coração de Boudicca.
– Bem que o rei ensinou-me essa verdade. Mais valoroso e honrado é o herói que conquista sua amada. Pois mate-me aqui mesmo em campo de batalha e ainda assim eu morrerei feliz.
– Que raro! O escriba mostrando que tem língua afiada! Muito bem, isto eu lhe concedo. Volte vitorioso e eu te darei a oportunidade de provar seu valor em uma batalha contra mim.
Dolores diz e promete isto, saindo em seguida como se tais palavras coisa alguma significassem. Ao meu lado, o barão Merovas balança a cabeça para os lados, com um olhar triste, como se fitasse um soldado que corre para sua morte. A cavalaria posicionou-se adiante, a infantaria atrás e pelas laterais. Nos cimos dos morros, as máquinas de guerra e os arqueiros. A estratégia consistia em avançar apenas um terço e depois os outros dois terços avançassem contra as tropas que avançavam do outro lado.
– Escriba, a hora está chegando. Tem certeza de que quer fazer isto?
– Sim, barão Merovas. Por um breve instante eu fui respeitado e tratado como um ser humano. Se a luta pode me conceder o louro da glória, se desembainhar uma espada tornar-me-á digno de poder andar pelas ruas em paz, eu vou sem temor.
– Escriba, não há honra e glória em morrer. Nenhum mérito, medalha ou louro vale o preço de uma lápide.
– Disto eu sei, o rei assim ensinou-me. Mas eu devo ir adiante, senão como eu poderei encarar Dolores?
– Então, meu caro, coloque a força de seu coração na espada. Se teu amor for tão forte assim, você tem chances de sobreviver.
Trombetas ressoam pelo vale. Eis a hora! O chão treme com a movimentação dos exércitos, projéteis zunem pelos ares, homens gritam por coragem e dor. A terra fica empapada de sangue, ossos e vísceras. No chão os corpos vão aumentando de número e ali estão também crianças, jovens e mulheres, com e sem uniforme de batalha. O horror do campo de batalha é tanto que o sol não demora a se refugiar atrás do horizonte. Fome, sede, cansaço, ferimento, músculos doloridos. Conforme a lua passeia com sua lâmpada, os homens em batalha parecem indicar uma breve trégua. Eu quedei atrás do Muro de Adriano, recuperando o fôlego e observando se há algum ferimento letal em meu corpo. Mais dois somaram-se em meu refúgio e eu notei que era a princesa e o barão.
– Então, escriba, o que acha do ofício do soldado? Por acaso há tanta agrura em teu ofício?
– Meu senhor, eu te peço que poupe seu fôlego. O escriba provou que é digno da missão que lhe foi conferida e, se daqui voltarmos vivos, eu mesma tomarei as providências para que ele possa desfrutar de seu triunfo. No momento, nós temos que pensar no que podemos fazer. Não que estejamos perdendo, mas não estamos ganhando. Nós temos reforços? O adversário tem reforços? Até quando podemos aguentar? Até quando o adversário pode aguentar? O que mais podemos fazer? O que mais o adversário tem para oferecer?
– Minha princesa, quisera eu ter as respostas. Mas eu não estou em condições. Eu acabei de matar com minhas próprias mãos pessoas que eram meus parentes e familiares. Isto é o que tem acontecido na Europa, desde que os reinos aquiesceram e adotaram o Deus Estrangeiro imposto pelos Romanos. Os reis de antes poderiam ter lutado, resistido. Ficamos assim tão fortes e poderosos? Eu espero que sim, porque apenas com a força de um Deus nós poderemos vencer.
– Acredita mesmo que os Deuses estão nesta luta, barão? Acredita mesmo que um homem pode conter em seu corpo o poder de um Deus? Pergunte ao escriba a sensação de ver com os próprios olhos o Senhor. Eu poderia facilmente possuir seu corpo e usá-lo na batalha, mas você aguentaria? Você possui grande poder, mas mesmo todo seu poder é meramente físico. Não, teu corpo não me serviria, mas a princesa tem um poder que vai além do físico. Então eu ouso a te perguntar, Lúcia, você quer ganhar essa guerra ou ainda está dispersa em teu orgulho e vaidade?
Nós três olhamos assustados e espantados para a parte de cima do Muro de Adriano onde um dragão devia estar nos observando e ouvindo há algum tempo. Em qualquer outro lugar e região este dragão seria perseguido, caçado e morto. Cavaleiros contam, orgulhosos, de como enfrentaram e venceram um dragão, descrevendo-o como uma fera irracional e de aspecto ameaçador. Mas este dragão que eu conheci era bastante simpático, tinha algo de feminino e vestia roupas humanas.
– Diga, grande espírito da natureza, conhece-me?
– Sim, Lúcia, eu a conheço desde antes de assumir esta forma carnal.
– Como isso é possível? Eu existia antes de agora? Como eu não me lembro de coisa alguma?
– Não te recordas porquê está presa neste vaso. O aparelho que dispõe é limitado e falível. Então teu espírito adormece para que tua alma possa preencher e usar este vaso. Mas se confiar em mim, eu posso te despertar. Eu só precisarei da chave certa e da fechadura adequada.
– Diga-me o que devo fazer, grande espírito da natureza!
– Pois bem, uma vez que está disposta e pronta a aceitar e confiar em mim, eu te digo. Aqui e agora, eu irei preparar o devido ritual, onde eu irei invocar o Senhor da Floresta. Este escriba vem a calhar para ativar em mim o necessário. A ti, princesa, caberá fazer o sacrifício. Você deverá deitar-se no altar e então deverá receber em teu ventre a essência do barão. Somente com a sua união carnal com ele é que eu poderei despertar seu verdadeiro espírito.
– Isto que me exige é demais! Eu ainda não conheci homem e ainda não estou inteiramente crescida! Além do que o barão é praticamente meu tio!
– Quantas bobagens te ensinaram! Qual a idade que você possui? Esta contada e definida pelos homens, ou a que efetivamente tens desde sua geração na formação do mundo? Com qual medida esquadrinha teu corpo, por aquela definida por homens, ou pela tua própria? E mesmo que nos atenhamos à tua forma carnal presente, de maneira alguma o toque íntimo é desconhecido. Pouco ou quase nada difere o que faz um homem com uma mulher do que uma mulher faz com uma mulher, pois tudo é o mesmo amor. Qual a sua linhagem? Esta, que pertence às estrelas, ou esta mortal que é intrincada? Ainda que este homem fosse teu parente por parte de sangue, nada os impede de tal ato e saiba que a família é a melhor escola para tal jogo. Acalme seu coração, ele não tem parentesco sanguíneo e eu não estou te pedindo para que tenha filhos com ele. Depois de você despertar, achará engraçado toda essa conversa, irá lutar e vencer. Após sua vitória, seu espírito se acalmará e isso será esquecido. Eles esquecerão.
Righel estava em sua tenda de batalha, a milhas de distância do campo de batalha e observava, com imenso prazer, os homens se matando para realizar os seus sonhos. Ele levantou uma taça de vinho para celebrar a estupidez humana, quando um enorme clarão, seguido de um estrondo e calor, apareceu em algum ponto da carnificina. Righel custou a acreditar em seus olhos, mas de alguma forma, surgindo do meio da fumaça da batalha, eis que ele via a Estrela da Manhã pairando acima das árvores. As mãos, pés e o tronco de Righel tremeram de medo. Ele tentou achar algum padre para exorcizar tal aparição, mas estes tinham fugido, provavelmente correndo na mesma direção que o Deus Tirano corria. Righel quis rezar alguma coisa ensinada pela Igreja, mas esta certamente estava tremendo diante da aparição do que ela chama de Lúcifer, mas que foi chamada de Ishtar pelos Acadianos, de Vênus pelos Romanos e de Afrodite pelos Gregos.
– Escriba? Ainda está vivo?
– Sim, princesa.
– Eu te peço que use sua arte para esconder o que você testemunhou.
– Pela primeira vez meu ofício é respeitado. Para que o que aconteceu não se perca, para as futuras gerações, permita-me, majestade, contar com sutileza de nossa aventura.
– Faça-o com cautela. Eu recuperei minha forma humana e carnal, então não convém que meus futuros súditos saibam sobre minha verdadeira natureza.
– Saberei usar as palavras adequadas, princesa.
– Quanto a você, barão, eu te peço que não tome esse evento recente em mérito para propor minha mão em casamento.
– Isto nunca passou pela minha mente, princesa. No entanto eu te peço que me permita escoltá-la em seu retorno ao teu palácio. Com alguma sorte, nós poderemos reencontrar com nossas amigas.
– Eu bem sei que quer ver novamente minha mãe, mas isto é com ela e meu senhor. Minha preocupação no momento é com meu senhor e minha Dolores.
– O dragão… sumiu. Quem seria ela?
– Eu tenho um palpite de que este dragão é o espírito da natureza que tutela todo o reino de Gotardo. Meu senhor contou-me como seus avós descendem dos dragões, por isso que o estandarte de sua família e do reino tem um dragão.
– Ainda que eu tenha feito minha parte e ajudado nesta vitória, minha batalha está apenas começando. Eu ainda tenho que conquistar Dolores, se é que ela vai me dar alguma chance. Do contrário, com sua permissão, princesa, eu vou partir de Gotardo em busca do dragão.
– Escriba, como você me auxiliou e ainda tenho um resquício de minha verdadeira natureza, eu te digo que há de encontrar o dragão dentro da sua e da minha Dolores. Fique conosco e talvez eu te ajude a descobrir o mistério.
– Ora, isso não é justo! O escriba está conhecendo mais mistérios, sendo novato no Caminho Antigo, do que eu mesmo pude desvendar em toda minha vida!
– Do que reclama, barão? Acaso saborear de minha carne não foi suficiente? Você mergulhou no mais profundo mistério e ainda quer mais?
– Desculpe, princesa. Eu quis apenas provocar o escriba.
– E eu apenas quis te provocar. Vamos, meninos, pois temos muito ainda a fazer.
O que pode ser dito depois da manifestação divina é que Gotardo manteve-se livre e independente. Righel teve o fim que todo traidor merece. Savério providenciou para que a abadia de Hildegarda mudasse em definitivo para seu reino. Merovas visitou Lúcia mais vezes. A Igreja continuou seu projeto de expansão e domínio total da Europa. Lúcia deu ao escriba seu dia de triunfo e este passou o resto de seus dias enrolado com Dolores. O Senhor da Floresta continua escondido em seu santuário. O dragão misterioso está andando por aí.
Cenas de alegria incomensurável podem ser descritas, como se o escriba tivesse um final feliz com Dolores, mas não há um final feliz e sim um começo feliz. Eu poderia incluir algumas cenas eróticas entre o barão e a princesa, ou entre o rei e a abadessa. Muitos maiores e melhores que eu o fizeram com mais propriedade.
Ora, tudo que vive tem seu fim, isso inclui um texto. Eu contei, como se fosse um segredo, uma confissão. O leitor empresta, por conta e risco próprio, credibilidade a este escriba. Como disse o sábio, um bom escriba [ou, como dizem, escritor] é um bom mentiroso. Pacientemente expus minha arenga e o leitor é meu cúmplice. Mas verdade seja dita, eu invento, troco e inverto os personagens, os nomes e os lugares.
Não há desfecho no que não há fecho nem trava. Eu gostaria que minhas histórias fossem mais verídicas, mas muita coisa deve ser ocultada. Não há graça nem maravilhamento algum em falar que Constantino e Teodósio impuseram Cristo a todo mundo ocidental. Nada podemos fazer senão lamentar que a Europa foi cristianizada pela força e pela espada. Nada podemos alegar senão chorar, pois o conhecimento das coisas passou severa restrição até a Renascença. Desde que César cedeu a Cristo, a Europa conheceu mais guerras, desavenças, pragas e miséria do que em todo seu passado pagão. Por ouro, título, nobreza, armas e exércitos, reis ajoelharam-se para a Igreja.
Felizmente não há mal que perdure e a Europa foi reconstruindo e recuperando suas raízes e origens. Aos poucos, por forças além da compreensão, a Igreja foi perdendo seu poder ditatorial e a humanidade pode procurar outros caminhos e redescobrir sua liberdade. Diante do futuro que se descortina, declamar qual foi o destino do escriba com Dolores torna-se irrelevante. Falar que Lúcia nunca existiu sequer faz cócegas. Falar que Merovas é o mítico Meroveu, que deu origem a Carlos Magno e ao Império dos Francos, fica sem sentido. Falar que a Deusa que reina na Europa disfarçou-se de Santa Maria é heresia desnecessária. Falar que o Senhor da Floresta foi difamado e distorcido para refletir as pavorosas imaginações dos cristãos sobre o Diabo é ridículo.
A Igreja somente tem poder porque ainda tem gente que assim deseja. Os governos de todos os países são o que são por reflexo de seus cidadãos. Crendo ou descrendo, somos pessoas, limitadas e falíveis. Então o escriba não insere seu desfecho, deixa seu caderno em branco, para que cada ser humano escreva como quer sua vida, de hoje em diante.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Meu daimon

Cipriano estava chegando próximo da idade em que ele deveria pegar seus brinquedos e oferecer no templo de Juventas, cortar o cabelo e trocar sua túnica. Seu pai, Tertuliano, o havia ensinado como honrar os ancestrais, como ofertar aos Penates, como ofertar aos Lares e como adorar o Deus de sua Gens. Sua mãe o ensinou igualmente como ver, ouvir e falar com os espíritos e gênios locais. Seu pai era totalmente romano, patrício filho de patrício, sua mãe era romana por cidadania escolhida, ela era etrusca. Cícero herdou as crenças de Roma e da Etrúria. Vivendo entre o norte e o sul, entre a urbes e a villae, Cícero não se sentia ambientado em nenhum dos mundos.
– Cipriano meu filho, para honrar seus ancestrais e prestar o devido culto aos Deuses, que tal irmos à casa da vovó? Ali naquela cidade existe um lugar que dizem ser próximo do Orco. Com ajuda de sua avó, podemos pedir aos nossos ancestrais e Deuses que te concedam um daemon.
– Que bom, mamãe! Ali na casa da vovó eu me sinto mais à vontade. Mas eu notei que ela não faz nem suas oferendas, nem as do papai.
– Isso porque, Cipriano, sua avó segue uma crença campesina, uma crença muito antiga que provavelmente existia antes dos Etruscos e Romanos.
– Podemos ir agora? Eu estou cansado de não me encaixar em lugar algum.
– Cipriano, você não devia se preocupar com isso. Você ainda é jovem, mas caixas foram feitas para guardar coisas, não pessoas.
Tertuliano, o pai de Cipriano, tomou-o em mãos e foram se arrumar. Uma caravana de comerciantes persas passaria em breve por Nabância e com sorte conseguiriam um bom assento para ir a Saragoza.
– Querida, melhor levar Cipriano hoje mesmo. Estamos próximo das calendas de Lemúria, o dia está propício para ofertar aos ancestrais e pedi-los por um daemon para nosso garoto.
Leucótea, a mãe de Cipriano, concordou e o garoto foi alegremente arrumar-se para ver sua avó.
Cipriano chegou com seus pais na cidade de Zaragoza, onde foram recebidos por um tio de segundo grau que os levou até a Nona Guardia, como a avó de Cipriano era conhecida. Inquieto, Cipriano chamou de longe sua avó.
- Nona! Nona!
- Eu vou agora mesmo! Cipriano! Que bom destino te traz aqui?
- Boa tarde, dona Serena, eu trouxe meu filho para que ele possa ter seu próprio daimon.
- Oh, que bom! Obrigada por confiar ele a mim, Tertuliano.
- Leucótea vem em seguida. A carruagem onde ela estava quebrou o eixo da roda.
- Então vamos todos arrumar a mesa, assim podemos todos comer assim que meu bebê chegar.
Foi o tempo de requentar a comida, arrumar a mesa, posicionar os pratos e talheres, abrir uma garrafa de vinho e cerveja e servir o assado que a mãe de Cipriano chega, senta e se serve. Depois de todos se alimentarem, esperaram o tempo da digestão conversando, fazendo piadas e música.
- Bono, bono! O sol se foi. Podemos ir até a Casa di Averno onde Cipriano poderá encontrar com alguns daemons. Eu espero que vocês tenham vindo com os preparativos.
- Mamãe! A senhora acha mesmo que eu iria esquecer a herança de nossa família?
- Ah, querida, muita coisa nós deixamos de lado quando vivemos nas urbes. Mas se vocês estiverem preparados, vamos andando.
Cipriano chegou acompanhado de seus pais e sua avó na Casa di Averno, uma gruta na base das Estepas de Belchite, cuja entrada era resguardada por colunas, arcos, muros e outras construções em ruínas. Diante de uma ara, onde resquícios de muitos rituais repousavam ao redor, dona Serena, chamada Nona Guardia, colocou um cálice de porcelana, duas velas e um incensário. Tertuliano cuidou de amarrar um carneiro jovem. Leucótea cuidou da bacia de oferenda e de manter a pira acesa. A avó de Cipriano entoou um cântico em uma língua desconhecida, mas que soava familiar para a alma do jovem.
– Agora, queridos, chamem pelos seus ancestrais. Depois nossos ancestrais trazem os daemons e Cipriano escolhe ou sente aquele que for mais adequado a ele.
Tertuliano entoou os nomes de sua descendência até a sétima geração. Não demorou para aparecerem muitos dos fantasmas com seus daemons. Leucótea entoou os nomes de sua descendência até a sétima geração. Não demorou para aparecerem muitos dos fantasmas com seus daemons.
– Agora é contigo, Cipriano. Olhe bem, sinta, escolha.
Cipriano andou por entre figuras tão distintas, alguns daemons pareciam guerreiros grandes e poderosos, outros pareciam antigos sábios e doutores. Andou até a beira da gruta e, ali escondido na sombra, ele viu pequenos olhos vermelhos. Como se tivesse sido chamado, Cipriano aproximou-se para ver de quem eram tais olhos. Viu uma criatura pequena, acanhada, coberta por um longo e grosso pelo negro. Sentindo compaixão, Cipriano tentou conversar com a criatura.
– Olá, meu nome é Cipriano. Você veio com alguém? Você está sozinha? Eu gostaria que você fosse meu daemon, se você aceitar.
A criatura olhou espantada para Cipriano. Então se ergueu, mostrando que era apenas um pouco menor do que Cipriano e parecia ser uma garota muito peluda. Chegou perto, olhou, cheirou, pegou no cabelo de Cipriano, tocou em seu braço.
– Kelek gosta jovem humano. Kelek fica jovem humano.
Cipriano voltou alegre para seu lar, acompanhado de Kelek, que observava tudo com curiosidade e interesse. Anoitecia, então Cipriano tratou de trocar suas vestes, quando se lembrou que agora tinha uma companhia.
– Kelek, você se importa se eu trocar de roupa?
– Kelek não sabe o que é roupa.
– Esse pano que uso por cima do meu corpo. Eu tenho que tirar esse e colocar outro.
– Trocar de pele? Muito trabalho. Kelek vive e dorme com mesma pele.
– Então Kelek não vai ficar envergonhada ou brava comigo se eu “trocar de pele”?
– Kelek quer ver mestre trocando pele.
Meio envergonhado, Cipriano tira sua túnica que usa durante o dia e coloca pouco mais que uma faixa ao redor dos quadris. Kelek não deixa de observá-lo, com atenção, curiosidade e interesse.
– Corpo do mestre bom, forte. Não tem pelo. Tem apenas um pedaço pendente. Corpo do mestre bom.
– Ahm…você deve estar falando do meu trabuco, Kelek. Não era para você ver. Eu fiquei envergonhado.
– Trabuco do mestre? Kelek viu muitos trabucos no Orco. Kelek gosta mais trabuco mestre. Por que mestre envergonhado? Trabuco bom.
– Eu fui educado assim Kelek. A moral diz que eu só posso mostrar o meu trabuco apenas para a garota que eu estiver amando.
O daemon feminino ficou com sua negra pelagem eriçada e seus rubros olhos brilharam. Cipriano acha que viu um rubor na face de Kelek.
– Mestre gosta de Kelek? Kelek gosta mestre. Kelek mostra sua concha para mestre.
A criatura afasta algumas mechas do seu pelo na parte íntima revelando uma entrada tão normal e comum como de qualquer garota humana. Cipriano tem a reação que qualquer homem teria em ver as partes íntimas de uma mulher. Tendo o corpo nu, a ereção ficou ainda mais evidente. A criatura observa, com atenção especial.
– Mestre quer concha Kelek? Kelek quer trabuco do mestre. Mestre quer amar Kelek?
Apesar do recato e da vergonha, Cipriano vivia em um tempo feliz onde o contato físico entre homem e mulher era algo normal, natural e saudável. A criatura parecia muito uma garota peluda. Cipriano fez aquilo que parecia inevitável. Deitou-se em seu catre e chamou Kelek para compartilhar o leito com ele naquela noite.
Cipriano acordou no dia seguinte com Kelek aconchegada ao seu lado. Sua cama estava bem bagunçada e com sinais de que ele teve um contato bem íntimo com Kelek. Sentindo seu corpo dolorido, com arranhões e mordidas, Cipriano levantou, sentindo as pernas bambas, mas decidido a ir à cozinha para o café da manhã, sacudiu Kelek.
– Oi Kelek. Bom dia. Vamos tomar banho antes do café?
– Banho? Kelek não sabe se banho é bom.
– Venha comigo. Você vai gostar.
Curiosa e interessada que Kelek era em aprender tudo sobre os hábitos humanos, ela segue Cipriano até uma banheira escavada em um tronco de árvore. Cipriano pega água do fogareiro e põe na banheira, completando com água tépida dos vasos. Em seguida, pega o sabão, tira a túnica e entra na banheira.
– Venha! A água está ótima!
Kelek olha com um pouco de desconfiança, aproxima, toca a superfície da água com seus dedos. Cipriano oferece um pouco de sabão para ela cheirar, para tentar tranquilizá-la. Kelek abre um sorriso e pula dentro da banheira.
– Banho bom. Sabão cheiroso.
Conforme se banham e se esfregam, as brincadeiras acabam provocando outra ereção em Cipriano que é imediatamente aproveitado por Kelek. Inclusive com arranhões e mordidas. Quando acabaram, Cipriano saiu primeiro e mostrou a Kelek a toalha para se secar, pente, perfume. Kelek imitava tudo o que Cipriano fazia e sorria satisfeita.
– Agora nós podemos comer o café da manhã.
– Kelek com fome.
Leucótea, a mãe de Cipriano gostou de ver seu filho e seu daemon se darem tão bem. Colocou na mesa bastante leite, pão, queijo, presunto, biscoitos. Cipriano comia, Kelek imitava.
– Queridos, assim que acabarem não esqueçam que hoje o Cipriano tem que ir ao templo de Juventas para ofertar seus brinquedos e sua velha túnica.
Cipriano arrumou-se com sua melhor túnica e saiu à rua, acompanhado de Kelek, que andava com seus quatro membros ao lado de Cipriano, sem roupas humanas, com todo aquele pelo negro ela mais parecia um cachorro grande. Alguns velhos praguejavam nas esquinas dizendo que um cachorro deveria andar com coleira. Cipriano não atinava, pois para ele Kelek era uma garota peluda.
Diante do templo de Juventa Cipriano encontrou Helena, uma amiga de infância. Ela ficou assustada com Kelek, mas gostava muito de Cipriano. O convidou para uma conversa particular. Cipriano levou Kelek porque ele não queria que tivesse segredos entre eles.
– Cipriano, hoje nós entramos para a vida adulta. Eu queria que soubesse que eu te amo. Aceite-me como sua mulher.
Helena abriu seu roupão mostrando seu corpo jovem em formação, os quadris curvilíneos, os seios firmes e suas coxas esculturais como colunas e seu arbusto de pelos negros. Cipriano gostava de Helena também e teve a reação que qualquer homem teria diante da nudez de uma mulher. Kelek nada disse, apenas observou curiosa. Saindo do templo, Apolônio, um rival de Cipriano, que trabalhava com os estranhos sacerdotes do Deus Cadáver, não gostou de ver Helena entregando-se a Cipriano. Ignorando a presença de Kelek, o empurrou com força.
– Saia daqui, Cipriano! Você ainda é criança! Helena deve ter um homem! Saia daqui e leve esse seu cachorro feio!
Kelek não gostou de ver seu mestre machucado. Colocou-se em pé, sobre suas pernas e esmurrou Apolônio, jogando-o longe, para o outro lado da rua. Helena, assustada ao ver Kelek sobre duas pernas, como humanos, saiu correndo. Cipriano olhou para a cena, mas não repreendeu Kelek.
– Venha, Kelek, nós temos que entrar no templo de Juventa. Eu quero ser homem.
Ambos entraram no templo, sem que os sacerdotes protestassem com a presença de Kelek. 
Diante da estátua de Juventa, Cipriano ofertou seu brinquedo mais querido, sua velha túnica e seu cabelo cortado e enfaixado com uma fita vermelha. Kelek observou em silêncio e com respeito. Assim que saíram, Kelek resolveu falar.
– Mestre é homem. Desde que nasceu, mestre é homem. Kelek não entende templo. Vazio. Mestre deve ofertar a alguém presente. Kelek gosta mestre. Pode ensinar a evocar Deus. Mestre ama Helena? Kelek tem mesma coisa que Helena. Kelek pode cortar pelo como mestre fez.
Usando suas garras, Kelek desbasta seu pêlo até restar uma cabeleira sobre sua cabeça e uma touceira entre suas pernas. Cipriano ruborizou ao ver Kelek, idêntica a uma garota.
– Kelek, se quer andar como humanos, deve usar uma segunda pele, como eu. Vamos, eu acho que podemos achar uma túnica feminina para você no templo de Juventa.
Andaram ao redor do templo de Juventa e encontraram, como se fosse uma benção da Deusa, uma toga feminina aos pés da estátua da Deusa. A toga milagrosamente serviu perfeitamente para Kelek. Cipriano ficou feliz em ver Kelek parecer mais humana, mas achou por bem não fazer pouco dela em dizer que aquele era um presente de Juventa.
Quando Cipriano chegou em casa com Kelek transformada a mãe dele, Leucótea, estranhou mas ficou feliz por Cipriano finalmente trazer uma garota para casa, para ser apresentada à família.
– Filho, quem é essa formosa dama?
– Mãe, essa é a Kelek!
– Nossa, como você mudou! Se você quiser, Kelek, eu tenho algumas túnicas que podem servir em você.
– Kelek gosta segunda pele. Kelek aceita oferta de senhora.
Tertuliano chegou vendo a cena inusitada na mesa de jantar, com sua esposa conversando com uma garota que ele nunca tinha visto antes e Cipriano.
– Ora, ora! Cipriano mal fez os votos no templo de Juventa e está trazendo sua namoradas para casa? Quem é a garota, Cipriano?
– Pai, essa é a Kelek!
– Entendo. Filho, você gosta de Kelek?
– Sim, meu pai.
– Kelek, você gosta de Cipriano?
– Kelek gosta muito de mestre.
– Nesse caso, eu lhes dou minha benção. Meu amor, precisamos combinar um dia para unir os dois diante de Juno. Cipriano e Kelek, sejam muito felizes juntos!
Cipriano acordou no dia seguinte, dolorido, mordido, arranhado. Na primeira vez sentiu medo, mas agora estava ficando acostumado e ele também começou a arranhar e morder Kelek. Ele percebeu algumas mudanças em seu corpo e em seu apetite. Enquanto Kelek ressoava, satisfeita, cabelos desgrenhados, arranhada, mordida e preenchida com a seiva de Cipriano, este desceu e foi preparar o café da manhã. Ambos ainda moravam com os pais de Cipriano, mas o jovem fez questão de fazer ele mesmo o desjejum e levar até a cama onde Kelek ainda dormia.
– Ei, dorminhoca! Bom dia! Acorde para tomar o café da manhã.
Com preguiça, Kelek ergue o corpo da cama, esfrega os olhos e vê uma mesa móvel com um prato com queijo, frutas, presunto, pães e vinho. Sorriu e foi se servindo, sem esquecer de deixar Cipriano se servir.
– Mestre alimenta Kelek. Mestre bom.
– Kelek, nós vamos viver juntos não como mestre e daemon, mas como homem e mulher. Então, por favor, pare de me chamar de mestre. Eu não sou seu dono. Nunca fui. Você me aceitou como seu parceiro e eu te aceitei como minha parceira. Nós somos iguais.
Kelek parou de comer, até engasgou-se e Cipriano custou a crer que a via ruborizar.
– Kelek tem medo. Mestre pode não gostar de Kelek. Kelek diferente de mestre. Kelek tem outra face que mestre não viu.
Um barulho e uma confusão na rua chamou a atenção do jovem casal. Era Apolônio, com um grupo de sacerdotes do Deus Cadáver, causando tumulto e briga com os vizinhos, tudo por causa de Cipriano e Kelek. Para os sacerdotes do Deus Cadáver, tudo que for diferente do que crêem ou diferente do que conceituam como Deus, eles dizem que é maligno. Cipriano era chamado de bruxo e amante do Diabo. Kelek era chamada de filha de Satan. Para defender seus pais e a sua casa, Cipriano desceu e enfrentou os agressores, homens fortes e armados, que não tiveram misericórdia ou compaixão, atacaram e feriram Cipriano.
A ferida não era muito profunda ou forte, mas o impacto fez com que Cipriano ficasse desacordado e sangrando. Kelek viu seu amado caindo no chão, desacordado. Ela então liberou toda sua fúria. Em instantes, aumentou de tamanho, seus pelos cobriram novamente seu corpo, chifres e garras apareceram. Muitos dos sacerdotes caíram feito moscas, suas vidas ceifadas de muitas formas, mas outros tinham um aparato que os deixava protegidos do ataque de Kelek e podiam atacá-la. O aparato era um artefato místico que havia sido consagrado pelas artes da Goecia, magia negra e apenas isto podia machucar Kelek. Os sacerdotes também não tiveram misericórdia ou compaixão, por Kelek, na verdade, tiveram muito prazer em atacá-la e machucá-la. Kelek também caiu ao chão e estava entregando sua vida aos Senhores do Orco quando Cipriano ressurgiu, avançou, desafiou e venceu os sacerdotes, quebrando os artefatos que carregavam.
– Kelek, eu vi sua outra face. Eu te acho linda em todas as suas faces. Agora que eu não sou mais humano, Kelek vai me aceitar como seu marido?
Kelek ficou constrangida. Ela não havia percebido o quanto Cipriano havia mudado. Ambos tinham dormido juntos, feito amor juntos, morderam-se, arranharam-se, lamberam o sangue um do outro. Cipriano nunca havia pertencido a mundo algum, agora ainda mais, pois tornara-se um ser que vivia no limiar entre humano e daemon.
– Kelek aceita Cipriano como marido.
Uma semana depois, celebraram a sua união, na entrada da mesma caverna onde se conheceram, abençoados por sacerdotes humanos e sobre-humanos. Naquele dia, todas as igrejas dos sacerdotes do Deus Cadáver ficaram em chamas e a região inteira ficou livre de tal praga.