quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Heterogênese XX

Essa é a vantagem de se ter um espírito alimentado por uma mente desenvolvida: consegue-se viver ainda mais, pela força e pela vontade. Desimpedido da casca mortal, pode-se ver melhor ainda. Como, por exemplo, ver os espíritos que rondam os mortais e os influenciam, por conselhos e orientações. Inclusive pode-se ver claramente o caminho que leva ao Império das Luzes e ao Reino das Trevas. Como bom filho sabe o caminho do lar, segui a trilha das Trevas. Dirigi-me ao primeiro comando que encontrei, para saber como estava indo a guerra. Reconheceram-me de imediato e acharam melhor pôr-me a salvo da área do fronte, levando-me aos comandos centrais.
A cidade fortaleza para onde me levaram era magnífica, sombria e tão receptiva quanto uma cripta, toda em granito negro. Tinha algo nela que me parecia ser familiar, como se já estivesse estado ali, como já pertencesse há muito tempo a este lugar.
Disseram-me que o nome era Ogiel, capital do reino de Gamaliel, cuja reinante não era outra que a minha adorada deusa da Lua Negra, Lilith. É óbvio que devia me sentir à vontade, pois estava bem próximo de minha venerada rainha. Quantas coisas que passaram na minha cabeça para agradá-la e impressioná-la! Eu desejei inclusive lutar, mesmo sem treino, contra o Império das Luzes, pela bandeira dela. Mas me reservaram, infelizmente, a escrever o que foi omitido no Apocalipse.

Tendo o Cordeiro terminado sua obra, foi descansar um instante no trono que lhe custou tanto conquistar. Lamentou durante alguns instantes, os extremos a que teve de chegar, mas era necessário, para que finalmente o Reino de Deus prevalecesse sobre as forças das Trevas malignas, para salvar a Terra.

O falso profeta balançava feito pingente na ponta de uma corda. A Besta foi lançada aos Infernos, onde ficaria encarcerada junto com o Dragão de Sete Cabeças e Dez Chifres. Tudo estava finalmente tranqüilo e a construção da Nova Jerusalém terminada, estava instalado o Paraíso na Terra, sinal da vitória de Deus Pai Todo Poderoso, conhecido aqui como o Espírito das Luzes. Agora a Terra pertencia aos eleitos de Deus, os justos e os santos, junto com os humildes.

Foi quando lhe ocorreu um raciocínio assustador. Como havia utilizado todos os recursos de que dispunha, estaria vulnerável aos contra-ataques das forças malignas, pelo menos durante algum tempo. Tranqüilizou-se, ao pensar que seus súditos acudiriam ao primeiro sinal de invasão. Neste momento, a massa dos eleitos era um imenso exército, mais que necessário para se garantir a segurança.

Foi dada então, ao que foi denominado de falso profeta, uma tarefa, já que se mostrava tão ansioso a ajudar sua rainha de alguma forma. Levaram-no até próximo dos portões da Nova Jerusalém, vestido de camponês, querendo terras para plantar.

O camponês entrou na Nova Jerusalém com a semente da verdade, mas a verdade que é trazida pela iluminação da mente pelo Fogo Negro. É como se costuma dizer: o melhor método de ruir um Império é fazendo-o de dentro para fora.

Dirigindo-se a uma praça pública, começou a gentilmente plantar as sementes. Ninguém o parou ou protestou, pois sua aparência era inocente, assim como suas ações. Da mesma forma que entrou, saiu, dizendo que ia trazer água potável, de fonte conhecida por ter trazido grandes revelações, porém jamais retornou.

O Cordeiro, um certo dia, após ter acabado todos os seus afazeres, que foram tomadas todas as decisões que precisava, foi passear pela sua bela cidade. Foi quando notou o crescimento de uma bela árvore, já com flores abundantes, prestes a se transformarem em frutos. As flores pareciam-se com orquídeas, só que tinham mais pétalas, de bordas recortadas em dentes, com um tom de cores, variando do azul, ao violeta, ao negro. O perfume que exalavam era sensacional, faziam com que, quem cheirasse, sentisse se elevar, o pensamento funcionar mais intensamente. Até mesmo o Cordeiro não pode resistir aos efeitos, dos quais, num momento, pôde vislumbrar os primeiros momentos da criação. Pôde lembrar que, foi por uma árvore e seu fruto tentador, que todo pecado começou. Neste exato instante, o Cordeiro, esquecendo-se de sua condição, começou a atacar e depredar a árvore indefesa. Todos que ali estavam olhavam abismados, mas nada comentavam, com medo do que lhes podia acontecer.

Porém, como era uma árvore do fruto do Fogo Negro, cresceu mais forte e resistente,no dia seguinte. O Cordeiro temendo o que poderia acontecer, cercou a árvore com grades e guardas, para que ninguém dela se aproximasse. O Cordeiro logo perdia aquela tranquilidade e serenidade que deveria caracterizá-lo.
Tomado de pânico, que ainda assim poderia haver quem comesse do fruto proibido, decretou lei marcial, ninguém podia ficar nas ruas depois das 19 horas. Além de serem proibidas quaisquer reuniões, públicas ou privadas, para evitar que houvesse tramas contra o Cordeiro.

Mesmo sem o fruto, todos os justos perceberam que seu redentor, o Cordeiro, não era exatamente a pessoa que dizia ser. Descontentamento geral leva a protestos e seus respectivos choques com os anjos. O povo todo já estava disposto a rebelar-se por completo, contra o Cordeiro, de qualquer forma.
Quando tudo parecia desfavorável aos revoltosos, surge avançando, em direção das muralhas da Nova Jerusalém, o exército das Trevas, que foi recebido pelo povo nas portas que estes abriram. Foi aí que o Império das Luzes sentiu a força real das Trevas, apanhou feio e não tinha mais nada a fazer, senão render-se. O Cordeiro sofreu o escárnio público, depois que todos viram sua verdadeira face, antes de ser abandonado, sem condenação, pois não era preciso.

Todos os arcanjos não puderam conter os arquidemônios. Não sem o apoio dos que foram o povo eleito, agora somados às legiões das Trevas. O Espírito das Luzes, para que seus colaboradores não sofressem, capitulou, baixou a bandeira nos pés do Espírito das Trevas. Todo o Império das Luzes deixou de existir, junto com a renúncia do Espírito das Luzes.

Tomando a administração de todos os planetas, sóis e galáxias, o Espírito das Trevas permitiu que seu irmão lhe auxiliasse, fornecendo luz e energia necessária para alguns tipos de vida de certos planetas, como a Terra, que não podiam viver sem luz.
Tornou o Espírito das Trevas a falar com seu Pai, o Universo. Pois cometera, de certa forma, os mesmos erros que seu irmão, o Espírito das Luzes, esperando um perdão de seu Pai.
O Universo sorriu e suas partículas coroaram o Espírito das Trevas. A euforia tomou conta das criaturas, de qualquer nível existencial, sem se importarem se eram notívagas ou diurnas.

Tenha isto nas mãos, como um guia básico para que aprenda definitivamente que deve tomar cuidado com as aparências superficiais, evitar ser dominado pela força e pela estupidez religiosa. Nunca se pode, efetivamente, falar contra algo que não se conhece ou se experimentou.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Sahasetaum

Esta é outra versão de como poderia ser o conflito final entre o Império das Luzes e o Reino das Trevas, pela conquista do Cosmo e das criaturas evoluídas, a fim de agradar ao Universo e mostrar qual dos filhos é o melhor soberano de suas posses.
Ao menos, essa era a intenção do Universo, criou Leviathan e Iahravel para ajudá-lo a comandar o Cosmo em toda sua extensão, mas não imaginou que isso iniciaria uma luta entre os irmãos, pela conquista de mais galáxias para suas possessões.
Isso o deixou irritado, tanto com seus filhos como consigo mesmo. Entretanto ele não era capaz de tomar atitudes drásticas. Se fosse para punir seus filhos, deveria punir-se primeiro. Mas o conflito tomava dimensões assustadoras e isso o angustiava.
Suas partículas, prestativas, puseram-se a trabalhar para tranqüilizá-lo, tirando dele o fluxo irado até este assumir uma forma de vida independente e pronta para agir pelo Universo, já que este não queria.
Foi com satisfação que o Universo viu surgir um quase meio irmão, pronto para ser a força da justiça, pelo bem da harmonia no Cosmo, mais a sua própria, antes que ficasse conturbado e tudo acabasse. Melhor que isso era então dar boas vindas a este e deixá-lo trabalhar. Assim surgiu Sahasetaum, que partiu em missão para advertir Leviathan e Iahravel de que este conflito estava tomando proporções perigosas.
Como a reclamação de inúmeras criaturas imoladas era em maior número contra o Império das Luzes, para lá se dirigiu Sahasetaum.
No castelo de Iahravel, a corte estremeceu ao perceber algo estranho acontecendo no firmamento. Foram perguntar ao Imperador o que ele estava fazendo, pois o julgavam responsável, já que dizia sempre ser o Deus único e todo poderoso. Talvez o fosse, mas entre os seus, mas não muito diante de seu irmão e nem um pouco diante de seu Pai. Como sabia que seu Pai não o atacaria, achou que só poderia ser coisa de seu irmão.

-Meus filhos! Eis que vejo que as forças infernais têm a ousadia de vir até nossa presença e nos atacar! Preparemo-nos e vamos enfrentá-las!

Assim se equiparam com todas as armas, o exército inteiro, paramentado e pronto para enfrentar todo tipo de força. Quando Sahasetaum saiu dentre os redemoinhos de estrelas e energias cósmicas, o exército inteiro entrou em comoção, o próprio Iahravel se assombrou com semelhante aparição. Mas logo deu o comando de ataque, sendo seguido por inúmeros disparos das armas mais pesadas.
Os fachos luminosos ricocheteavam pelo corpo de Sahasetaum, como pipocas na panela, mas o ataque o enfureceu. Simplesmente com uma de suas patas, golpeou toda a tropa, jogando-a de volta ao castelo de Iahravel, que quase não vem abaixo com o impacto.
Embora desacordado, Iahravel pode escutar bem a advertência de Sahasetaum que, se me permitirem, irei omitir, pois é terrível demais para que se escreva e pior ainda de se ler. Avisado o primeiro filho, Sahasetaum dirigiu-se ao outro. Esperemos que Leviathan receba melhor Sahasetaum, que já está irritado. Que o faça ainda ter confiança ao menos em um filho e o tranqüilize, senão, toda luta terá sido em vão!
Do mesmo jeito que se aproximou do centro do Império das Luzes, Sahasetaum aproximou-se do centro do Reino das Trevas, com as mesmas consequências disso.
O Conselho das Trevas, receoso de que isso fosse um plano de Iahravel para derrotá-los, estava para ordenar a prontidão,quando Leviathan acordou e ergueu-se.

-Soberano Leviathan! Melhor se esconder e vestir tua armadura! Sentimos que teu inimigo está tramando tua morte!
-Não sabem o que dizem, amigos. Este não é meu irmão, senão já o sentiria. E? algo maior, que me toca o coração. Devo recebê-lo em minha casa e tratá-lo bem, seja lá qual for o motivo de vir me visitar.

Apesar dos pedidos, Leviathan sai, dispensando sua guarda e até seus ministros de acompanhá-lo, sai sem uma arma sequer. Não contendo sua euforia, deixa ser visto em seu poder, como o Dragão de Sete Cabeças e Dez Chifres. Diante da tempestade cósmica faz uma saudação reverente.

-Pai, o que queres de mim? Diz o Soberano das trevas. No que surge Sahasetaum e lhe explica:
-Não sou seu Pai, mas vim por causa dele, para advertir a ambos os filhos de que o conflito deve ter fim.
-Se não é meu Pai, quem és, criatura, capaz de trazer ternura ao meu negro coração?
-Eu sou Sahasetaum, o que foi designado pelo Universo, para controlar as atividades das Luzes e das Trevas. Se necessário, julgá-las!
-Então entre e seja bem vindo. Nada tenho a esconder ou me envergonhar. Antes de dominar, prefiro mais a livre associação dos seres à minha causa. Se eu luto, é para manter a salvo tantos planetas e vidas que existem pelo Cosmo, sem esperar destes, gratidão ou reconhecimento. Como criaturas racionais e feitas da mesma matéria que a minha, embora mortais e frágeis, devem ser livres para terem seu destino e sua crença, seja nos princípios das Luzes ou das Trevas.

Tendo escutado e visto tanta sinceridade, sabedoria e nobreza, Sahasetaum acalmou-se, até esquecendo-se do incidente com Iahravel. Aceitou o convite e entrou na casa de Leviathan.
Foi então apresentado à rainha das Trevas, Nahema, esposa de Leviathan. Apresentou-o à princesa das Trevas e sua filha, Lilith, mais seu companheiro, Samael.
Lilith saudou o imponente guerreiro, com o mesmo beijo carinhoso que uma neta daria a seu avô. Tanta força e poder lhe provocavam, mas apesar deste amor súbito, sua paixão verdadeira era por Samael.
Sahasetaum até poderia tirar partido disso, mas para ele, Lilith era quase menos que uma criança. Nahema era tão bela, senão mais que Lilith, mas sentia-a como sua própria filha. Então preferiu continuar só.
Leviathan levou-o então ao Conselho das Trevas, que o recebeu atordoados, tamanha era a potência. Era o mesmo que um ancião ter entrado numa brincadeira de roda.
Preparou-se então uma festa de boas vindas, para apresentarem-se todos ante Sahasetaum. Satan e Moloch pediram-lhe para que abençoasse a união deles, mas Sahasetaum era mais juiz que sacerdote. Belphégor fez uma bela explicação dos princípios das Trevas, mas Sahasetaum a escutava, como um professor que tentava prestar atenção à apresentação de uma aluna. Lucifuge apresentou sua tese de acusação contra o Império das Luzes, mas Sahasetaum como juiz sabia perfeitamente os prós e os contras dos dois filhos do Universo. Belzebu e Baal Chanan fizeram um verdadeiro espetáculo aéreo, mas Sahasetaum, que já tinha visto a dança das estrelas, planetas e galáxias, nem se entusiasmou. Enfadonho, para Sahasetaum, foi ouvir as abordagens alquímicas sobre fenômenos naturais e sobrenaturais de Astaroth, já que Sahasetaum era a própria essência do que existe de mais sobrenatural. Uma última tentativa por Asmodéia, em sua dança de fogo com serpentes inflamadas, apresentação aparentemente inútil, já que Sahasetaum poderia facilmente brincar com o maior e mais poderoso dos sóis. Mas não poderia deixar de admirar, com que determinação defendiam seu Reino. Os acompanhava com os olhos quando estes, exaustos, voltavam aos seus lugares.
Foi ao observar Asmodéia que notou uma criatura sem igual em toda a extensão do Cosmo. Estava a cobrir com uma manta a Asmodéia e a servi-la com vinho para relaxar, refrescar e acabar com a sede dela. No meio daquele carnaval, era a única que, calma e dedicadamente cuidava do seu trabalho, sem nunca desviar a atenção a ele, o convidado e o festejado. Quis conhecê-la melhor, mas naquela folia era impossível. Então se retirou junto com ela, para outro espaço, a fim de conversar.
Assustada com a repentina desaparição de todas as coisas em torno dela, olhou para o único lugar onde havia mais alguém, que era Sahasetaum.

-Quem é, adorável criatura? Perguntou o gigante.
-Que quer de mim, senhor? Não sou mais que a governanta de Asmodéia.
-Não serás mais, se assim quiseres. Peço-te que me acompanhes.
-Onde irás levar-me, senhor?
-Quero levar-te até onde criatura alguma jamais foi.
-Mas por que eu, que te sou completamente desconhecida?
-Pois então, apresente-se. Eu sou Sahasetaum, incumbido de julgar as Luzes e as Trevas. Agora é tua vez.
-Eu sou Vrtra, venho da mesma tribo de Moloch e fui incumbida de cuidar de Asmodéia, enquanto ela não alcança a idade da responsabilidade.
-Criaturas como tu foram feitas para comandar. Como eles puderam relegar-te tão degradante serviço, a tão pueril criatura como Asmodéia? Agora vejo porque tentam enganar-me. Tentaram esconder-me essa injustiça!
-Oh, não, senhor! Não foi por injustiça! Na verdade, Asmodéia cuida de sua parte, mas eu a administro, sugerindo-lhe indiretamente, por conselhos.
-Pois então, deixe-a agora, deve ter tido aulas suficientes, ela já está bastante crescidinha para precisar de uma governanta. O que me diz, queres ir ou não?

Vrtra aceitou, pois temia o que poderia lhe acontecer se recusasse. Sahasetaum a fez voar consigo pela imensidão do Cosmos através de todas as regiões, tanto das Trevas quanto das Luzes. Levou-a então, por através da região que o Universo regia, o lar de Sahasetaum e ela maravilhou-se.
Pousaram em um lugar que superaria qualquer definição de beleza ou feiúra, porque simplesmente ali tais conceitos não tem utilidade, já que na região mantida pelo Universo estão os planetas, galáxias e seres que superaram todos os medíocres referenciais de valor.

-Seja bem vinda Vrtra, ao coração do Universo e ao meu lar. Onde coração e mente são coisas únicas, existindo por todos os princípios negativos.

Sahasetaum pousou suave, delicadamente e ternamente uma de suas mãos no ombro de Vrtra que estremeceu.

-Compreendo teu temor, criatura. Eis porque te trouxe para cá. Somente aqui poderia fazer-te tocar no nervo do universo e torná-la como uma galáxia ou algo de uma existência tão complexa como Leviathan, Iahravel e quase tão poderosa quanto eu.
-Senhor! Mas eu?!
-E mais ninguém conheço que pudesse ser assim. Só assim perderá o medo por mim, terá tua liberdade. Se algum dia tu vieres a nutrir apreço por mim, terá capacidade de me falar por igual, como igual será recebida e viverá comigo. Acha que é possível? Por mérito e esforço, uma criatura evoluir tanto?

Das garras de Sahasetaum surgiu uma esfera que mais parecia a própria vontade do Universo, a mesma vontade que criou tantas coisas

-Sim, é possível! Eu mesma vi inúmeras vezes, criaturas menos evoluídas que nós, chegarem ao extremo. Faço parte de um reino, cuja característica e formação está em criaturas que conquistaram formas de existência mais dignas. Então...eu também...

Vrtra tocou,ainda receosa a esfera, na expectativa de que fosse sentir dor ou de que seria destruída. Mas a esfera desvaneceu ao seu toque, como uma bolha de sabão. Tão simplesmente como a chuva cai de nuvens carregadas, Vrtra agora irradiava essa força, que antes era a esfera.

-Agora retornaremos. Dar-te-ei o tempo que quiser para decidir teu destino, pois agora tempo é o que não lhe faltará.

No instante seguinte, já estavam de volta no mesmo lugar de onde partiram. Sahasetaum deu a entender que já partia, logo todos se puseram a fazer as despedidas.
Ao desaparecer Sahasetaum, Leviathan ainda parecia senti-lo presente. Notou Vrtra, que estava diferente. Esta lhe contou tudo, pois ainda o considerava o seu soberano.

-Então agora eu é que te devo respeito, Vrtra. Disse Leviathan, inclinando-se em reverência.
-Não, meu soberano. Ainda não decidi. Seria muito fácil tirar proveito de minha condição, para forçar Sahasetaum a ter preferência pelo nosso Reino.
-Tenho certeza que ele o faria por ti. Mas desconfio que, antes mesmo de a ter visto, ele já tenha nos julgado, nos considerando dignos de sua piedade e confiança. Caso contrário, não teria feito o que fez contigo. Antes, já o nosso Reino escolheu por viver, de forma a orgulhar o Universo. Agora, estamos praticamente morando no coração do Universo, graças a ti.

Eis talvez o porquê, leitores, no final, as Trevas venham a vencer as Luzes. Primeiro porque as Luzes perderam completamente o contato com o Universo, vivendo em seu estúpido fanatismo. Em segundo, porque as Luzes não souberam receber, nem reconhecer Sahasetaum, como enviado do Universo ou como um dos seus. Por outro lado, as Trevas, em primeiro, viveram sempre em acordo às regras básicas do Universo, sabendo viver seu destino. Em segundo, por ter Sahasetaum encontrado alguém com quem poderia deixar seu coração repousar.
Vrtra ainda não sabe se aceita a oferta, pois estará muito preocupada por vários milênios, com a ameaça constante que se tornou o Império das Luzes ao seu Reino. Talvez, quando tiverem paz em si, possa levar um pouco a Sahasetaum, ao simplesmente aceitar a oferta. Mas o mais irônico nisso é que só será possível, quando finalmente a prepotência do Império das Luzes for detido pelo reino das Trevas. Ou seja, o conflito que Sahasetaum queria deter, continuará. Só que, a partir deste momento, será ele que ficará angustiado e irritado, sem saber ao certo o momento exato de agir, já que foi criado com esse propósito. Mas isso não demorará, assim espero! Sahasetaum deseja dar fim a este conflito, viver o quanto mais cedo possível com Vrtra e ter um pouco de paz!

Consultem minha pequena versão sobre a criação, sobre o surgimento de Leviathan e de Iahravel, do reino das Trevas e do Império das Luzes. Tem um capítulo, onde faço uma pequena tentativa de antever como será tal conflito final entre os dois irmãos.
Pode lhes parecer um pouco pretensioso. Praticamente me delego a posição de escritor do profano e que serei para as Luzes, o falso profeta que anuncia a Besta, o que fará com que tenham de me eliminar.
Irão rir da minha fantasia, de que justamente um ser tão medíocre quanto eu, possa vir a tumultuar o Império das Luzes, após sua vitória provisória, ao plantar a árvore do Fogo Negro em plena Nova Jerusalém.
Bom, meus amigos, hão de convir que meu intenso trabalho já deve ter surtido algum efeito em minha Deusa, Lilith. Sem dúvida, ela comentou minha predisposição com Vrtra. Se esta me julgar merecedor de tal apreço, certamente irá pedir por minha proteção a Sahasetaum, para que minha missão seja bem sucedida. Porque não seria muito ético, da parte de ambos, tomarem nitidamente parte do conflito, então se servem de peças mais sutis, que possam trazer, enfim, o resultado almejado por ambos.
Afinal, por uma paixão a Vrtra, Sahasetaum se diminuiria a ponto de proteger uma vida mortal e tão medíocre quanto a minha. Sensacional vai ser testemunha-los consumando esse amor, ao fim do conflito. Podem ter certeza de que estarei observando como Sahasetaum ficará feliz com a recompensa desse esforço.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Quinta revelação

Não os consulteis, mas vossos corações. 
Não prestigiem os cultos que orquestram, 
mas antes, dais culto aos vossos lençóis. 
Aos homens foi dado um bastão, 
porque aí se encontra a verdadeira magia. 

Cuide bem de vossa chave, 
pois se quiserdes desvendar os mistérios da existência, 
vos é imperativo que saibais buscar a fechadura, 
o encaixe perfeito só se poderá alcançar na tentativa! 

As mulheres têm a coroa, 
porque aí se encontra a verdadeira sabedoria. 
Cuide bem de vossa fechadura, pois sem uso enferrujará 
e vos tornará em mulheres amargas, histéricas ou neuróticas. 
Como vos podeis querer manter um tesouro guardado? 
Sem ele não haverá evolução da humanidade! 
Somente pelo vosso portal que tal riqueza poderá passar, 
por isso que vos é necessário 
que deixeis que a chave experimente a fechadura!

Deixe de lado a vergonha ou o recato, 
que isso é submissão moral a pequenos! 
Eu proíbo-vos apenas isto: que se cubra ou vele vossa beleza, 
pois o que é bonito é para se mostrar. 
Cobrir-vos, somente com vossos lençóis, na cama, com vossos escolhidos. 

O único sacrifício agradável a Mim, seu Senhor, 
não é sangue de animal, mas o sangue virginal 
que ofertar em vossa primeira noite, uma única gota Me basta. 

O único louvor, não se encontra em templos, mas em motéis; 
não em cânticos, mas nos gemidos que precedem o orgasmo. 
Vós não encontrareis a salvação na observância das virtudes, 
nem na caridade, nem no dízimo, nem na oração, 
nem na busca obsessiva da pureza de espírito, como vos ordenam.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Heterogênese XIX

Eis que chega o dia do confronto entre o Espírito das Trevas e o Espírito das Luzes, quando o Universo, Pai de ambos e equilíbrio harmônico, julgará qual dos dois filhos foi mais bem sucedido na missão que lhes confiou.

O prazo, que o Universo concedeu a seus dois filhos para que provassem suas capacidades, está prestes a se consumar. Foi marcado que ambos deveriam mostrar seus feitos, quando a data de aniversário do surgimento de cada sol e cada planeta do Cosmo, coincidissem em um único instante.

Sabendo que não lhe restava muito tempo, que seus seguidores estavam divididos e que estava bem próxima a vitória do Espírito das Trevas na Terra, o Espírito das Luzes lançou um ataque de grandes proporções em ambos os níveis, tanto o material quanto o espiritual, pela reunificação total do Império das Luzes e a destruição do que consideravam o Mal, que estava representado pelo Espírito das Trevas. Deu a este ataque o nome de Apocalipse.

Entretanto, nunca o Espírito das Luzes foi superior ao Espírito das Trevas, por mais que este acreditasse. Como este ataque estava tomando dimensões assustadoras e estava mesmo com a intenção de aniquilar qualquer oposição, Leviathan, o Espírito das Trevas, convocou prontidão imediata de todos do Conselho das Trevas e dos espíritos das Trevas, pois a guerra estava declarada, embora todos preferissem evitá-la. Mas como o Império das Luzes tomou a iniciativa, cabe ao povo das Trevas o direito de defender-se e manter o Império das Luzes nos seus limites, senão a harmonia necessária para a existência do Universo estaria quebrada.

Embora pelo livro sagrado do Império das Luzes, chamado de Bíblia Sagrada, este Império fosse considerado mais forte e poderoso, portanto vencedor da luta, a verdade aqui se encontra, já que as Trevas não sentem necessidade de enganar ou falsear os fatos, já que esse é um método usado pelo Império das Luzes para garantir sua soberania sobre as mentes fracas dos humanos. Sabemos que as ações têm mais significado do que as palavras e justamente o Império das Luzes tem feito exatamente aquilo que condena.
Este é o livro das Trevas que será chamado de Crítica Sagrada que, como o próprio nome diz, as únicas coisas sagradas são as capacidades de criticar , de pensar e duvidar, capacidades que toda raça superior inteligente e racional deve ter.

Eu estava no exílio que a sociedade me trancafiou, junto com outros loucos por terem a audácia de reconhecer a superficialidade do Império das Luzes e da sociedade regida e controlada por eles. Ainda estava alheio a tudo, pois me concentrava em reescrever mais e melhor o Livro das Trevas.

Era uma bela manhã de domingo, com a rotineira visita de padres para realizarem a missa, a catequização e o recuperamento mental sadio dos internos. Algo mudou neste dia, eu até podia adivinhar porque. Pois os cardeais e um bispo, invadiram com uma centena de padres e freiras armados, o pátio do manicômio, sendo requisitada a presença de todos os internos. Isto foi rapidamente atendido, pois os enfermeiros e dirigentes faziam parte da sociedade normal e integrada ao Espírito das Luzes. Mesmo que não quisessem, teriam de fazê-lo ou serem metralhados friamente. Esta era a intenção daquele bispo gordo e ensebado, sentado num palanque, numa cadeira luxuosa, metralhar a todos nós, já que a loucura era sinal de possessão demoníaca, mas ele preferia dar uma chance aos internos.

Ficou claro para todos, para que tipo de missão esses santos homens representantes da Igreja vieram. Muitos começaram uma fuga desesperada, mas não havia saída. Logo foram cercados e postos a assar em uma imensa fogueira. Pude ver bem que os olhos de nossos executores faiscavam mais que as chamas, maravilhados com o poder que tinham, em prol da purificação do mundo.

Sabendo que, em breve acabaria também nas mãos destes carrascos, lancei um último e pesaroso olhar para meus amigos e enfermeiros. Foi justamente por isso que um deles me apontou, trazendo-me para perto do supremo assassino, nas vestes de um bispo.

Com presteza, armaram um cadafalso improvisado e um nó tosco em torno de meu pescoço. A forma do nó lembrou-me muito do que é usado em gravatas, embora as considere mais parecidas com coleiras humanas.

Veio o próprio canalha, para puxar a alavanca que acionaria a porta do cadafalso, debaixo de uma sombrinha de veludo vermelho, com os emblemas papais em dourado. Tudo por causa de alguns protestos dos internos, para que não se matasse o único com sanidade ali. O tumulto foi controlado pelos enfermeiros, especializados como uma tropa de choque no controle de comoções. Pela lógica, todo aquele que está no asilo, foi por causa de um mau funcionamento mental. Não poderia provar, agora que seria executado, de que fui afastado da sociedade, condenado a tal exílio, por uma conveniência: minhas obras desestruturavam o meio podre de viver da sociedade. E por uma conivência: de meus parentes em me entregar às autoridades, em troca de recompensa e prestígio social.

Meus ossos estavam para ser esticados neste estranho varal, para secar ao sol, quando a tarde feneceu, muito rapidamente. Logo chegam a noite e as sombras, parcialmente afastadas pelos holofotes elétricos, iguais aos que se usam em campos de futebol. Agora sim, minha execução virou um espetáculo circense, como qualquer execução o é.

O chão me falta. A cabeça estala. O corpo treme. Estou morto. Ainda assim, posso ver que, não contentes, perfuram meu corpo inerte com suas baionetas e bebem meu sangue, atirando o resto ao fogo.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Quarta revelação

O que fazeis tolas crianças? 
Por que negai-vos o desejo? 
Por que fugis do prazer? 
O que temeis, se não há nada que vos impeça? 
Acaso é a felicidade? Será que a satisfação é tão aterradora? 
Deveis obediência apenas a vosso Senhor, 
que é vosso corpo e à Lei deste, que é o instinto. 

Quaisquer outras obrigações, 
só façam por vosso consentimento, 
pois são deveres que, tal como os direitos, 
são concessões que existem para vossa época 
e a convivência em uma sociedade comum. 

Não vos fieis nestes que se apresentam em Meu Nome, 
pois não necessito nem constitui advogados. 
Nem crede em qualquer livro, 
por mais santo que se o considere, 
são obras humanas, não as minhas. 

Se quiserdes realmente seguir a Lei do Senhor, 
ausculta vossos corações,
pois é neles que escrevi com Meu próprio fogo, 
minha Palavra e a Lei. 

Muitos vós conheceis, que dizem conhecer-Me, 
mas sabei bem que nisso se empenham 
por que nada de mais útil sabem estes fazer. 
Não os sustente nem os coloquem em cargos, 
não os sacramenteis, mas sim a vós.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Lírios sangrentos

Ou conferências carnais sobre a materialidade humana, os objetivos das deidades e a justificativa de seus métodos.
Pois todo o futuro da humanidade está na corrupção da carne, do que sobra, entre vícios e virtudes, sirva-se de prazer a estas deidades que, não tendo a matéria para sentir, exigirão os sentimentos em essência de nós, para terem os prazeres que temos, mas tendo-os em nível espiritual.
Pois a eternidade é um ócio é um tédio, é preciso sentir a vida, esses nossos mortos e existentes sem existência, deidades e antepassados, tem necessidade de algo para distrairem-se e perceberem a própria presença por estas dores e exultações a que estamos expostos enquanto vivos.
Pois nos enganamos, acreditando que a presença na eternidade é melhor que esta na Terra, nos afundando e cercando de crenças, fornecidas pelas múltiplas deidades, cada uma em busca de mais simpatizantes, para aumentar seus pratos e diversificar mais a ceia.
Pois todo ser que é sem que o seja, alimenta-se da crença dos vivos, para que esses confiem a essas deidades o seu destino após a morte, na qual então tais deidades poderão digerir sem consumir o espírito dos crentes que se ofertam a eles, por uma vida após a morte, sem dor ou sofrimento, o que terão pelo preço da corrupção das carnes, mais o espírito, eternamente cedendo alimento, em troca de sua permanência junto a essas deidades. Se os prazeres destas deidades se decidem mais por experimentar virtudes ou vícios, não parece ser razão suficiente para distingui-las e separá-las entre o Bem ou o Mal. Os objetivos são os mesmos, embora a matéria prima seja diferente, assim como as sensações produzidas por estas. A Virtude, embora dependa de referenciais nem sempre confiáveis ou estáveis, é enobrecedora, ou melhor, os homens acham que isto os engrandece e os torna homens de bem, merecedores desta vida na eternidade, que resumem no Paraíso, quando o que terão é, na verdade, o que conhecemos aqui por relação simbiótica, uma troca entre codependentes que se auxiliam e alimentam-se mutuamente. Realmente, o que seriam de todas essas deidades se não houvesse tais homens, ou mesmo tal existência material, ou até tal vida inteligente?
Pois é de se notar que apenas a criatura humana tem tal capacidade de reconhecer e adotar comportamentos considerados agradáveis a tal deidade, por misteriosos meios de comunicação entre esses e o Homem, quer por escrituras, quer por outros homens que se dizem ter contato com esses. O que é lógico, pois incapacitados pelo seu estado, fazem-no através dos homens, para falar pela boca e pela língua de seus ouvintes e estes, para perpetuar a palavra, a registram nas linhas de um papel, e este livro também acaba tornando-se um testemunho dos desejos destas deidades aos homens, de como devem levar suas vidas, para merecer tal proteção e prêmio no final da etapa da vida.
Mas então se vê um paradoxo: tão poderosos e ainda assim como um Rei, depende de seus vassalos, para que assim o sejam, dependem da crença dos homens, em número e qualidade, para reconhecer-se e fazer-se presente, tanto a si como aos demais, que competem entre si, pela conquista do mais alto grau de poder de domínio. O mais estranho: vai ser essa quantidade e qualidade de criaturas aos seus cuidados que lhes darão o poder necessário, pela força de vontade destas.
Então digladiam-se as deidades em busca da preferência humana pela vontade que são dotados, a mesma vontade que nos tornam criaturas tão notáveis e capazes. Mas a partir do momento em que se deixa dominar por estes desígnios ou outros líderes temporais ou sagrados, corre-se o risco de se perder também a razão, tornando a vontade apenas uma força de coação, agindo pela uniformidade, prisão e extermínio da diversidade. Pois homens lutam pelo domínio dos seus, da Natureza e de toda a Terra em busca de conforto, poder e riqueza ainda em vida, ou de perpetuarem sua memória, ou de perpetuarem a memória das deidades em que acreditam. Pois tão confiantes estão de que esta é a portadora da Verdade, acabam tornando-se serviçais, se não das deidades, de seus ideais, que na forma de organização humana, acaba sendo transformados em uma presença que podemos considerar semelhante à que exercem as deidades sobre os homens.é interessante notar que quaisquer desses dois captalizadores das paixões humanas acabam negando a base primária de sua razão de ser: a matéria, à vontade e a humanidade.
Enquanto as deidades exigem um comportamento moral, os ideais comandam os modos de ação da vontade humana. Um comportamento moral tenta regrar as atitudes humanas frente à Vida, negando ou tentando coibir essas práticas mais apegadas à matéria, o que cada deidade entende por vicio, em precedência e preferência a outros, que são dados por virtudes, embora ambos são e precisam ser realizados ainda em vida, vida essa cuja base é a matéria. Mesmo as virtudes não se manifestam, sem se concretizarem em atos ou obras que possam ser reconhecidas como tais. Já os ideais tentam regrar o comportamento do Homem frente ao Homem, dentro de uma Sociedade, a qual é organizada por Estados, estes são formados pelos ideais dos líderes da Sociedade, que garantiram a legitimidade da formação destes ideais, estados e Sociedades, pelo esforço da educação e civilização dos hábitos dos demais, através de anos de História, separando e perseguindo o que é definido, por estes ideais, como marginais e criminosos. Muitos se tornam um elemento visado por não terem muitas escolhas diante da indiferença, total falta de orientação e oportunidades dentro destas sociedades, que são sempre privilegiadoras de um grupo, que contam com a garantia da força física para coibir desvios e a coopção contemplativa desses ideais pela maioria dos componentes das sociedades, através da formação de uma legislação, via hegemonia ideológica, garantida pela educação. É de se ver que tal lei e justiça só se mantém quando tem mais força física que os que estão enquadrados na marginalidade e na criminalidade, tais definidos pelo que entende tais ideais, agregados nos homens e na sociedade, transformando-se numa presença de domínio e controle das ações humanas, tal como as deidades, negando sua matéria de formação, o ser humano, todo ele, cada um, ser vivo, formador de ideais e sociedades, mas que pela ação de um geral organizado, acaba sendo proibido de ter seus ideais fora do organizado socialmente, ou mesmo de ter sua participação nesta, apesar de ser sócio ao seu modo de participar nesta, ainda que limitadamente, por não preencher as exigências necessárias para tornar-se um líder social ou até um cidadãos honesto, que são todos aqueles que seguem as leis e as condutas sociais organizadas e orientadas por estes líderes sociais.
Agora, tentemos imaginar afinal o que então, qual que justifica a presença do outro, devemos nós sermos gratos a ponto de nos entregarmos incondicionalmente a estes que nos formaram, tanto as deidades como as sociedades, ou caberia a nós, justamente por sermos racionais, buscar regras de convívio entre o indivíduo e cada uma dessas entidades coletivas, de formas mais abertas e livres, com melhores ofertas e oportunidades iguais em prol do próprio sucesso destas? Ou então devem estas procurar agir mais pelo Homem, enquanto indivíduo, pois não é a união de todos e cada um que possibilita e realiza a presença concreta dessas entidades?
Como se vê, a solução está em ouvir e permitir o acesso de cada participante e crente, para melhorar, atualizar e efetivar como poderes de decisão, as deidades e as sociedades, porque estarão finalmente garantindo a total capacidade de manifestação de cada um. Só desta forma se chegará com sucesso ao objetivo de toda deidade e sociedade, que é captar, coletar a maior quantidade e a melhor qualidade de pessoas, congregá-las nesse meio que só será legítimo quando a vontade coletiva for reflexo de cada vontade individual.
Por outro lado, se existem as deidades que se alimentam das virtudes e as sociedades que se alimentam dos ideais, da mesma forma terá o grupo que, pelo mesmo objetivo mas movido por outras matérias primas, faz sua presença pelo motivo dos vícios, crimes, imoralidade, dissociação, individualidade radical, anarquismo. Mas é bom notar que isso é assim nomeado por um juízo de valor definido pelos primeiros partidários, que considerando ser sua vida exemplar, desta forma a defendem ardorosamente, caracterizando os demais comportamentos e atitudes por estas palavras depreciativas. Não se pode condenar quem, na falta de expectativas e perspectivas, acaba criando todo um método e atitudes segundo um referencial próprio.
Já que existe dissidência, é porque não são tão perfeitas as deidades e muito menos os homens, seus ideais e suas sociedades. Por que não se ouve, ainda que sejam minoria, pois resolvendo os problemas e desajustes destes, evita-se toda a consequência criminosa que realizam em busca de sobrevivência ou afirmação como seres vivos e merecedores de alguma atenção e cuidados. Essa seria a função da organização humana enquanto sociedade, garantir a participação de todos os sócios. As deidades simplificariam bastante seu trabalho sem adversários, pois as atitudes tidas como pecaminosas ou viciosas são apenas formas de expressão de protesto e descontentamento, o que não lhes tira a legitimidade de, como atitudes de vontades conscientes, de serem proveitosas a essas deidades. O que temos na verdade não é a luta entre o Bem e o Mal, mas de conceitos e sentimentos que devem ser discutidos e vivenciados, pois são parte da personalidade de todo ser.
Não se pode condenar qualquer um que seja, por ter tomado medidas drásticas, mesmo o assassinato, pois nós não consentimos, muitas vezes de alguma forma até colaboramos, para a morte por frio, doença, fome, abandono ou violência contra crianças, homens, mulheres e velhos? Muitos não desejam tal destino, incomodados e inconformados, reagem contra quem acredita ser seu agressor, ou seja, a sociedade. Mas o defeito está na organização e nos organizadores dela. Cabe a nós, como parte disto tudo, lhes exigir atitudes mais eficazes e eficientes que não simplesmente matar, surrar e prender, o que acaba agravando o problema, já que este surgiu por esses fatores. Basta dar acesso e orientar todos para serem indivíduos produtivos, receberem adequadamente para isso, para serem consumidores, para haver mercado, gerando mais riquezas,menos diferenças, miséria, mendigagem, criminalidade.
Então, nenhum ato pode ser considerado criminoso, pois todo ato tem um motivo e um objetivo claramente definível, caso não o seja, tem origens psicológicas, sendo assim, não é natural, foi conduzido a tal estado de demência pelo meio em que interagia.
Podemos imaginar o crime como uma forma da humanidade manter seus níveis populacionais, selecionando apenas os mais capacitados a viver na sociedade, já que o Homem é um dos animais no fim da cadeia alimentar, é até natural considerá-lo predador de todas as espécies, inclusive da própria. Para isso existem os crimes, puníveis ou imputáveis, pois a guerra é crime, mas os que sobrevivem são condecorados como heróis. Mesmo em paz a sociedade sabe como separar, isolar, incapacitar e matar por fome, doença ou violência policial, coisas cujos verdadeiros culpados nunca serão levados a júri, simplesmente escolhe-se um indivíduo para pagar por toda uma situação causada pelo sistema.

Então, o que vale a pena, por qual meio devemos levar nossa vida se é tão inútil e cheia de enganos acerca da real intenção de tais deidades por nós? Já que, de qualquer forma, teremos que ser devorados pela morte e só depois viver com nossos deuses, que irão conviver conosco nessa relação simbiótica eternamente, eles nos digerindo e nos mantendo inteiros ao mesmo tempo, por que nos perturbamos tanto com as atitudes e as separamos entre boas e más, se isto não é sincero? Qual é a verdade senão uma boa mentira em que se acredita e pela confiança se dá o valor de verdade? Já que não se difere o casto do libertino, todos deveremos morrer, por que então não viver todas essas maneiras de ser, sentir o mais que puder o prazer tanto das virtudes quanto do vício?
Justamente porque tanto os homens quanto as deidades precisam se justificar a si e a seu outro dependente, já que a existência de ambos seria tão vazia sem uma projeção que estabeleça a realidade como algo concreto, que só é perceptível aos sentidos, por meio dos quais satisfazemos nossos desejos de prazeres, por meio desses objetos, dessas crenças e atitudes humanas. Ou seja, o real é uma mera produção de determinados desejos e necessidades que, ao estarem satisfeitos, acarretam no prazer e no alívio de, com isso, sentir que estão vivos e justificando sua presença neste espaço hipotético.
Até mesmo aqueles que buscam a renúncia a tais sentimentos e objetos materiais o fazem na satisfação de justificar a própria existência. Baseados na crença, acreditam que se provando, privando, recusando, renunciando ao mundano, demonstram força e coragem, mesmo porque nesta renúncia, as reações biológicas proporcionam uma sensibilidade maior pela ausência desse material. Não negam o material, mas sim o valorizam, por causa de tal sensibilidade mais desperta, mesmo não o desejando, acabam vendo-o com mais esplendor que qualquer outro acostumado a tais objetos. Além do que, ao torná-los proibidos, os tornam mais desejados, conduzindo à sensações de prazeres ainda maiores que tinham ao usá-los.
Ao inverso, se se busca muito os vícios, eles perdem toda aquela carga de proibição, até diria pecado, pelo excesso de uso. Mesmo fontes de prazer se se tornam rotineiras, automatizadas, repetitivas, perdem o fascínio, porque agora é um objeto comum. Por ser comum, nem se nota mais quais os prazeres e necessidades que queremos satisfazer, o usamos porque se tornou um hábito, chega-se ao absurdo de o usarmos por instinto, o objeto chega a perder totalmente seu significado e passa a fazer parte do real, ainda que distante, no horizonte.
Não é sem motivo então que seja tão difícil deixar tais hábitos, nem tanto pelo prazer, que estes já não tem, mas sim por fazer parte do referencial do que se considera como realidade, parâmetro que os faz sentir parte deste real.
É então, por precisar de tais justificativas de se considerar inscrito no real, que os homens seguem tais determinações, vindas de seus líderes, ou vinda dos preceitos deixados por tantos profetas que se arrastam atrás das religiões deixadas pelas deidades que, para terem esse grau elevado sobre os mortais, devem sem dúvida estabelecer tais limites do real e do sobrenatural, assim como as regras de viver bem, para os homens merecerem tal local, ao findar o tempo material carnal destes homens. De qualquer forma, todos buscam seu tipo de prazer através das diversas formas de sensibilidade, isto sem dúvida é o que se verifica.

Eu sei que sou uma pessoa comum média e sustento os meus próprios engodos. Afinal, o pior radical contra o sistema é na verdade seu maior defensor. Sua razão de revolta se acaba assim que lhe for dado o que deseja, logo entrando no esquema e até irá defendê-lo. Mesmo o rebelde fornece justificativas ao sistema e sua crueldade, pois é justamente para manter a situação, que se age contra os revoltosos, justificando assim essa relação de exceção e privilégios de uma minoria sobre a maioria. Por mais que se mude de mãos os governos, ainda haverá insatisfação, mesmo que a oposição vença e seja social-democrata, a linha de Estado não deixa de existir e estes, que até tem boas intenções, acabam prisioneiros de sua presa. Não é sem motivo que nada muda efetivamente.


A carne é boa
Para o espírito,
Mas o espírito
É bom para a carne?

O amor constrói,
Mas e quando o amor
É solitário, quando não é
Possessivo?

Fomos feitos à imagem de Deus
Mas foi Ele quem nos fez tão falhos?
Deus é o Pai dos homens
Mas por que os homens
Só respeita o Homem
Que os lideram como pai?

Se Deus é uno,
Não deviam as pedras
Também adorá-lo?
Mas tantos quantos existem
Como a variedade de raças humanas?

Como é que recebendo tão pouco
Ainda sustentamos um governo?

Muitos não procuram outros mundos
Por covardia de enfrentar este?

Se o dia de hoje
Nunca é garantia do amanhã,
Por que somos prisioneiros
De calendários e relógios?

Um jornal documenta os fatos da realidade
Ou ajuda a filtrá-la com um papel timbrado?

Todos consultam algo para saber do próprio futuro,
Mas fazem algo para garantir o futuro geral?

Se a juventude se acha tão rebelde
Por que aceita viver de maneira tão fútil?

Nenhuma manifestação ainda que artística
Poderá ser considerada anarquista
Pois ao se manifestar, estará organizada
Por algum critério estabelecido.

Minha função é a de lançar a dúvida.
Eis meu prazer e minha tortura.
Porque quem se dá ao trabalho de pensar
Deve estar bem nutrido de idéias.
Ao fazê-las em confeitos escritos,
Nutrir os vazios dos espíritos dos demais.
Estas obras em que me dedico,
Aos poucos definhando ao dar parte de mim,
Só são suculentas
Porque os ingredientes são os melhores.
As obras de melhores
E anteriores a mim,
Seus livros são minha hóstia.
Neste estranho templo da sabedoria
Pretendo ser o vinagre amargo
Tanto para engasgar os acadêmicos
Quanto para esterilizar seus vermes.
Cuide bem de mim,
Estou em tuas mãos
E cabe à tua cabeça
Fazer bom uso de mim,
Para que estas minhas carnes
Não tenham sido temperadas em vão.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Heterogênese XVIII

Comemoro 72 anos, a mesma idade que tinha na minha preexistência, na qual pude compartilhar com o Conselho das Trevas, meus melhores amigos e amigas, contra quem falhei e tenho uma dívida. Dez existências, por volta de 144 anos entre um renascimento e outro, fico na expectativa de estar perdoado por eles. Conheci tantos estilos de vida que precisaria de um livro exclusivamente para contá-las. Minha vida atual no ano cristão de 2037, embora não seja meu referencial favorito, está bem melhor que muitas outras. Os governantes finalmente perceberam que não adianta nada o poder, o dinheiro e a fama se o povo que governam morre de fome, frio e doença. Embora isto ainda esteja bem pouco adotado, melhorou, sinceramente!

Devo ficar muito grato se, em todas estas existências pude, depois de algum tempo, recuperar parte da minha consciência verdadeira, a despeito das pressões que todos sofremos. Estou certo de que sou um privilegiado, por ter tido tanta capacidade de entender os princípios das Trevas, lá na minha preexistência. Tenho que procurar não ser tão arrogante. Quem sabe tenha sido com isso que me conduzi ao erro de magoar meus únicos e verdadeiros amigos e amigas, minha família,meu reino?

Exulto de felicidade ao saber que estamos vencendo a luta, lentamente. O Império das Luzes está perdendo a credibilidade. Dentro das próprias fileiras está havendo divisões, novas religiões de diferentes tendências surgiram para cultuar o mesmo deus repressor, algumas até aproximando-se das Trevas, mas ainda com muitos enganos. Esta divisão não nos ajuda, apenas multiplicará os adversários que teremos que vencer, mas já aparecem brechas na intransponível barreira de alienação ideológica que o Império das Luzes exerce sobre a humanidade, através de seus métodos de coerção e adestramento.

Temos de nos preocupar, entretanto justamente com estas, que se dizem favoráveis ao controle libertário e participativo das Trevas. Primeiro, por se colocarem como demonófilas. Isto já é um erro, já que a ideia de que as Trevas e seus habitantes tenham tais características, vêm justamente da infâmia que o Império das Luzes propagou sobre nós. Segundo, que seus métodos estão nos dando justamente a má fama que queremos evitar. Métodos de aniquilação e rituais satanistas, que mais se parecem com os usados pela Inquisição e os nazistas, que não são os nossos grupos, mas os do Império das Luzes. Terceiro, que concentram seus esforços em um dos do Conselho das Trevas por considerá-lo o grande chefe, o mais poderoso, o que tem o comando sobre todos os outros espíritos. Outro engano, este tipo de hierarquia e organização agrada somente aos participantes do Império das Luzes que, como todo Império, é centrado na figura de um deus único, onipresente e onipotente. As Trevas se assemelham mais a uma república, que é pública realmente, com ampla e total participação de todos os espíritos. Estes ajudam e apóiam o Conselho das Trevas que, como ministros legítimos e realmente interessados em servir aos seus amigos, decidem conjuntamente e com sabedoria. Para que isso possa acontecer, existe um orientador e observador, o Espírito das Trevas ou Leviathan, filho do Universo. Mas que, mesmo assim, não exerce poder algum, salvo se houver discórdia ou falsidade nas decisões do Conselho, diferente das exigidas pelo povo das Trevas. Leviathan é como o Primeiro Ministro desta república. Existe, portanto, uma democracia radical, uma sociedade real em suas intenções e em sua essência, numa anarquia sobre o poder e a hierarquia. Anarco Socialismo democrático simples e puro.
Justamente, por terem os mesmos interesses que os espíritos das Trevas, que são tão unidos e ao mesmo tempo individuais. Justamente assim é que se mantém um Conselho das Trevas, com estes representantes e o Espírito das Trevas, o Leviathan, como líderes, mas não como soberanos, pois a luta é árdua e o inimigo resistente. Pela continuidade e poder maior das Trevas sobre as Luzes, para que sejam profundas e consistentes e não fúteis e superficiais, todos nós lutamos pela vitória.

Sendo assim, aguardo que algum dia eles possam reconsiderar e ajudar-me. Este livro deve ser publicado algum dia, em alguma era, em algum lugar. Só assim descansarei satisfeito e espero que ele possa trazer a consciência na razão humana e a leve a pensar, ao invés de matar, explorar, dominar, repreender, de ser tão bestial.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Terceira revelação

Só vos permiti que continuásseis em vossa obsessão 
pela perfeição e busca do mundo espiritual, 
pois bem sabeis que com esse senso religioso inicial 
é que vos percebêsseis como criaturas inteligentes, 
dotados de razão e consciência. 

Deste ponto, vos considerastes e respeitastes, 
aos que vos assemelham, constituístes vossas famílias, clãs e cidades. 
Vós formastes vossa comunidade e sociedade donde, para tanto e tal possibilidade, 
criaram o necessário e fundamental senso de lei, justiça, crime e castigo. 
Sem isto, ainda seríeis animais, 
de forma alguma a civilização existiria e a humanidade se aniquilaria. 

De forma alguma Eu permitiria a este projeto que fracassasse, 
ainda que muitas obras Eu tenha realizado. 
Agora que o fundamento já foi feito 
e que vossas capacidades estão plenas, 
confio que vós mesmos vos façais crescer e prosperar, 
se ousarem evoluir com tanto afinco que dão a vossos credos, 
igual aos anjos vos tornareis 
e poderão criar vossos próprios mundos, 
em algum ponto das intermináveis Pradarias da Eternidade. 

Mas que antes fique claro que o Soberano, Eu Sou. 
Carne não ordena carne, nem alcança o espírito; 
o espírito não ordena ao espírito, nem satisfaz a carne. 
A cada um, a Lei, de acordo com a própria natureza 
e a Justiça, de acordo com a realidade que estes vivem.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Heterogênese XVII

Desanimado de minhas capacidades, entristecido com a sina para a qual dirige-se toda a humanidade, embrutecida pela ação conjunta dos senhores da sociedade e do Império das Luzes, entrego meu cargo e preparo minha morte. Meus patrões, mais sim amigos, os espíritos das Trevas, tentam muitas vezes revitalizar minhas forças, resgatar-me ao trabalho de pensar e escrever nesta vida por eles, para todos, na promessa de mudança.

Não sou o primeiro nem tão pouco o melhor, disse tudo o que poderia e já duvido de minhas próprias convicções, mesmo sabendo ser tarde para mudar. Reconheço a derrota, já estão muito bem adestrados a pensar de forma elementar e superficial. Já na juventude era difícil suportar a vida, os totalitarismos da moda e da sociedade jovem. Agora que velho e esfarrapado, acometido de um instante de lucidez e uma decisão derradeira, preparo meu réquiem ainda que não tenha autoridade para conversar ou operar com o oculto ou a sorte da minha alma neste.

Movido por uma confiança imensa, contra até os avisos de meus amigos, inicio minhas despedidas e a demanda de minha alma aos cuidados de minha Deusa Lilith, a Lua Negra, rainha da Noite, senhora da Morte, filha do Espírito das Trevas. Esposa de Samael, o Deus do Fogo Negro que consome o dia e traz a noite. Ela, que é a mãe de todos os filhos das Trevas.

Retorno ao lar para, diante de Ti,
Doce senhora minha e amarga,
Lei do encerramento do tempo,
Apresentar minha mortal pessoa,
Seu mero animal pensante e arrogante.

Estendido e deitado, eu estou de fronte,
Quase desafiando conjurar Tua presença,
Ofertando fogo e sangue por um punhal,
De uma alma forjada por engano, condenada
A ter seus dias de vida em tal época.

Posta a mesa, sirvo farta ceia,
Do dinheiro poupado com meu jejum,
Com delicias sacras e profanas, que rejeitas,
Evitando que eu lhe cobre a conta devida
Deste jantar pela minha reciclagem.

Dou-Te meu corpo para apodrecer,
Minha alma à disposição da forja,
Meu ser, refeito e melhorado pela tempera
Do Fogo Negro, tornando-me merecedor
De pertencer ao Teu reino, como demônio.

Para tanto, cozi um barro com Tua imagem,
Untei um punhal de prata com vinho de uvas negras,
Risquei linhas traçadas de encruzilhadas veladas,
Palavras escritas na pele nua em Tua consagração,
Preparando o peito para descerrar o golpe final.

Tais foram meus preparativos
Para apresentar-me a Teus olhos
Que, estarrecidos, acompanham o cortejo.
Não pode deter-me sem manifestar-Te
Que, prontamente estaria materializada.

Manifestando-te, terei uma parte de Ti,
Ainda que fugisse sem levar-me,
Não terias sossego até encontrar-me
E recobrar a parte Tua de mim,
Estar contigo é o que quero.

De minha ajuda precisaria ao perturbar o equilíbrio,
Movendo dois mundos para deter-me,
Com gosto desafiaria o Universo,
Assumindo Tua causa, minha senhora,
Não teria outra solução que não fosse a que desejo.

Pois daria meu sangue em profusão
Em Teu nome, para o Universo perdoar-Te.
O Universo perceberia minha paixão
E Tua natural preocupação amorosa.
Por Ele mesmo, eu seria refeito em Teu reino.

Não podendo deter-me, por não poder
Materializar-Te, sem que isso aconteça,
Realizando meu intento,
Não lhe restaria muitas alternativas
E ainda assim servir-me-iam muito bem.

Concluindo os ritos iniciais, começaria
A cantar-lhe o feitiço e já não poderia
Calar-me, pela força dessas palavras,
As quais foram-me confiadas
Pelos espíritos das Trevas.

Não os puna, pois como escritor
Sou bom ouvinte e orador,
Envoltos com perguntas e amizade,
Suas línguas os traiam, aos poucos
Roubei-lhes segredos irreveláveis.

Por estas palavras,
Colocaria meu rito em julgamento,
Não teria como não realizar,
Ou então me sacrificaria, o que,
Mesmo que apenas morra, é bom.

Parto de ser homem e limitado,
Abandonado, pisado por outros,
Nada mais quero com a vida,
Por causa disso que, simplesmente,
Peço que me aceite em Teu reino.

Morto, estou livre de sofrer mais,
Ainda que sem morada.
Uma vez no além não terá sossego.
Refeito, estou vingado e realizado,
Pois me tornei um dos teus.

Deixe então que teu Fogo Negro
Envolva-me e reconstrua-me,
Só assim me considerarei digno
De ser teu servo, como demônio,
Ainda que deva permanecer neste mundo.

Para melhor amar-Te, servir-Te,
Permita ser reforjado, minha alma
Sofrer pela Tempera do Fogo Negro
E meu pobre corpo acrescido, embora oculto,
Dos acessórios necessários a um demônio.

Bem que gostaria que houvesse
Outro meio de realizar-me,
Mas o único realmente funcional
Não é outro que este arriscado,
Que chega a ser uma ofensa.

Bem sei que Teu poder é imenso,
Poderia fulminar-me num instante,
Poderia fazer com que nunca nascesse,
Poderia ter escolhido outro qualquer,
Até mesmo um imbecil mais submisso.

Mas Tua memória não seria mais a mesma,
Não teria o prazer de ver acabar-me,
Tentando descrever, como um cego, o que não vejo,
Não terias como te deliciar das minhas carnes,
Que por viver pensando, tornam-se uma delícia.

Pensar não só transforma aos poucos
A matéria em energia que move a pena,
Cerrando a energia dentro de palavras,
Como também recupera o soro
Extraído de outras palavras feitas.

Quanto mais reflito, mais escrevo,
O que necessariamente requer leitura.
Mais ainda meu pensar sorve o soro
Que, fluindo na matéria, a torna suculenta,
Mais ainda minha energia torna-se carnuda.

Nenhum outro poderia ser assim,
O soro é o vinagre amargo da crítica,
A matéria é o osso duro da dúvida,
Quantos suportariam tanta carga,
Que não quem já os praticava?

Eu sou Teu melhor escritor,
Sou a grande ceia servida a Ti,
Uma boa mesa não se abandona,
Um bom prato é consumido lentamente,
Para que melhor se possa sentir seu sabor.

Estou dispondo-me a Teus olhos
E ameaço a Ti de estar privada de mim,
De não permitir mais que me devore,
De que aprecies aos poucos meu sabor,
De que delicie com o orgulho que Te dou.

Vês como meu amor por Ti
Leva-me a cometer tais loucuras,
Justo contra minha senhora,
A quem ofereci meus serviços
E dispus meu destino nas mãos?

Queria tanto poder cantar Tuas maravilhas,
Mas não me permite vê-La,
Escreveria Tuas glórias e vitórias,
Mas não marcho junto a Ti,
Apenas por minha mente posso supô-La.

Quantas vezes mais preferia estar contigo,
Tanto que peco nesse ritual profano,
Dirigindo-me a Ti em tais termos,
Que antes de proveitosos são ofensivos,
Provocando forças incontroláveis e instáveis.

Tanta perturbação, para um pedido tão simples,
Como de uma criança mimada,
Fazendo teima para ganhar um presente,
Tanto desperdício do Teu tempo,
Para meu desejo mesquinho.

Rasgo minhas carnes,
Com o primeiro centímetro
Desse punhal de prata ungido,
Por um vinho de uvas negras,
Meu primeiro passo para a perdição.

Pareço ouvir Teu murmúrio,
Que reclama por paz,
Meus ouvidos ressoam doidos,
Ao eco sinóico da Tua voz,
Que fragmenta minha alma.

Refeito do choque, recomeço,
Repetindo as palavras certas,
Que Te comova e opere meu intento,
Trazendo-Te mais próximo,
Para melhor corromper-Te.

Mais um gole do raro vinho
E encerro mais um pouco
Do punhal dentro do meu peito,
Donde já brota fresco rio sangrento,
Que lhe ofereço para brindar.

Torno a provocar Tua memória,
Com palavras dadas em confiança,
Para ter Tua obra escrita,
Enquanto tenta dissuadir-me,
Com miragens monstruosas.

Tais aberrações não são demônios,
Mas a idéia religiosa sobre estes,
Feita para melhor imperar as luzes,
Bebo mais do vinho pela ruína da luz
E logo, mais o punhal adentra em mim.

Finalmente meu corpo lateja,
Minha alma queima
E já quase não posso falar-Te,
O vinho torna-se amargo
E mais iminente se torna o desfecho.

Enquanto a febre ataca-me por inteiro,
Tenho a certeza de ver mais,
Mesmo não tendo mais os olhos,
Devido a uma brincadeira sórdida da morte,
Que torna sábio até o mais imbecil na hora final.

Profiro tenebrosa risada,
Abafada pelo sangue,
Que invade e toma toda minha boca,
Mesmo sabendo ser eu o alvo do riso,
Que a brincadeira causa pelo ridículo.

Torno a reclamar e beber,
Dando a mim mais um pouco
Da lâmina do punhal,
Que já estala na minha costela,
Derrubando-me por terra.

Momento traiçoeiro de cansaço,
Não estou morto ainda,
Nem terminou a encomenda,
Mas minhas forças fogem
E minha mente tenta arrepender-se.

Calando meu racionalismo,
Com instinto e a vontade,
Ergo-me e disponho-me novamente,
Embora a febre faça meu corpo inteiro tremer
E, já lacrimejo e suo sangue.

Agora só consigo murmurar
E a taça parece pesar como um rochedo,
Descerro mais a lâmina, que já acaricia o coração,
Enquanto meu sangue espuma, fazendo pressão,
Como se fosse água de fonte sulfurosa.

O ar sufoca e perco o fôlego,
Meus músculos retesam e endurecem,
Minhas costas arrepiam e arquejam,
Meus olhos saltam das órbitas
E meus ouvidos zunem.

Já que estou quase imobilizado,
Utilizo o peso do meu corpo,
Por sobre a lâmina, contra o chão,
Para dar a estocada final,
Dando término ao ritual.

O que parecia o fim
Mal deu a um prólogo,
Um trovão parece trespassar-me,
O chão dilui-se e começo a flutuar,
Boiando em águas de densas trevas.

Tive então a impressão
De estar passando pela minha vida,
O peso dos erros, a elevação dos acertos,
Cada um e todos eles premeditados,
Para que eu viesse a ser o que sou agora.

Bruscamente a viagem termina,
Estou no meio de um picadeiro,
Feito com areia fina e branca,
Como não via há muito tempo
Nos litorais de belos mares.

Estou circundado por tronos,
Cada qual com seu rei,
Não que sejam soberanos,
Os tronos sempre existiram,
Mas ficam vazios sem ter quem os mereça.

Cada trono tinha seu brasão,
Todos eles muito familiares a mim,
Não era senão o Conselho das Trevas
Que estavam ali para medir meus atos
E sentenciar-me pelo erro de provocá-Los.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Segunda revelação

Que consideração Eu darei a vós sobre Mim? 
Perguntarei-vos melhor: que consideração vós tendes sobre Eu? 
Tivestes, entre vós, muitos que foram deuses ou mesmo filhos de um. 
Mesmo estes avatares, existiram em carne, 
do contrário , não teriam filhos, que também vieram em carne. 
Mesmo os profetas, magos ou iluminados, existiram na carne. 
Então, a carne, Eu Sou.

No entanto, ergueis vossos templos, 
instituis ordens e sacramentais sacerdotes, 
para vossas crenças do que não vos é natural, mas sobrenatural; 
não ao que é da matéria, mais apropriado à vossas preocupações, 
mas ao que é do espírito. 
Então, o espírito, Eu Sou.

Digo-vos: nem do espírito Eu Sou, 
do contrário vos seria estranho, 
deixem o mundo espiritual aos anjos e aos que são dessa realidade, 
é inconcebível ao que é espírito como se conforma ou necessita a carne. 
Também não sou carne, pois vós mesmos sentis que algo vos anima e, 
mesmo fosse somente fantasia, 
esse mundo espiritual, tal entendimento ou visão vem de Mim, 
o mundo espiritual é como o mundo material, 
emanação do que é e não é, pois o nada e o tudo, Eu Sou.

sábado, 19 de agosto de 2017

Entrevista com o Espírito do Vento

Onde os demônios habitam? Isso os textos sagrados não explicam direito. Os Hebreus dizem que Babilônia [transliterando: Porta dos Deuses] tornou-se habitação de demônios após sua queda. O misticismo judaico diz que Lilith [a Primeira Humana, transformada em espírito e em demônio noturno] fugiu para o Mar Vermelho [outras versões apontam o Mar Morto], local “selvagem” habitado por demônios. Também estas regiões são comparadas como lugares de desolação… ruínas? Ou melhor indicar a região do deserto, onde inúmeras lendas dão como domicílio do insano, do possuído, do demônio? Então porque é exatamente ali que os homens santos vão peregrinar? Nisso há um grande segredo que está codificado no Caminho do Bosque Sagrado. Quanto a isso, não há erro, a Natureza é a base da Iluminação e são os espíritos contidos na Natureza os nossos condutores.

Eh, felizmente eu conheço muito bem a natureza humana e não vou precisar ir muito longe. A maldade está dentro de nós mesmos, não nos demônios. Minha experiência de vida, minha experiência espiritual, tem sido muito mais agradável entre os demônios do que entre seres humanos. Aliás, um erro comum entre meus colegas de Caminho [Paganismo Moderno] é achar que a Natureza é somente a floresta. O Firmamento, que eu simploriamente chamo de Jardim de Urano, também é Natureza. A cidade, a urbe, a despeito de todo asfalto, vidro e aço, também faz parte da Natureza. Não faltam lugares desabitados, desolados, desérticos, possuídos aqui em Sampa City, uma imitação barata de Gotham City que acha que é igual à New York City.

Usar sexo e sangue como catalisador, evocar espíritos e demônios. Algo que, infelizmente, tornou-se ponto de polêmica e controvérsia entre estes, que se dizem bruxos e sacerdotes. Isso é algo bem simples e comum para mim. Chamá-la é algo bom e agradável para mim. Eu acho que nunca vou entender por que ela me escolheu… afinal, por que eu a atraí, sempre será um mistério insolúvel.

– Ah, querido! Você me chamou. Aposto que você estava com saudades de mim. Eu também estava com saudades de você.

Ela me abraça, me aperta, me morde, como sempre. Eu tenho dificuldades de respirar, com os seios dela espremendo meu rosto.

– Lilith, assim eu morro sufocado!

[risos]- Você reclama demais. Pouquíssimos tiveram a sorte de ver meus seios, quanto mais de tocá-los. Isso sem falar nas “outras partes” e das “outras coisas”.

– Nós temos a eternidade inteira para isso. Eu gostaria que você me ajudasse nesse projeto.

– Projeto? [ela começa a me alisar] Isso vai te custar caro.

– Sim, eu… [minhas calças são rasgadas] eu quero escrever como foi o encontro de Satan com Cristo [ela começa a manusear meu trabuco].

– Cristo? [eu começo a ficar excitado] O verdadeiro ou o falso?

– O… os dois… [minha consciência flutua].

– Hum… então vai custar em dobro [ela abocanha meu soldado que sofre torturado por sua língua e lábios].

– Lilith… [eu estou quase no limite] se isso continuar, eu vou perder minha essência! Não tem outra forma?

[slurp]- Ora, mas a minha espécie vive da essência masculina. Vocês só erram em achar que os súcubos se alimentam de sangue. Minha gente se alimenta de sêmen. Agora seja um bom menino e me alimente… como fez inúmeras vezes.

Impiedosa, gulosa e insaciável, Lilith faz aquele truque [titjob e blowjob simultâneo]. Impossível resistir. A eletricidade atravessa minha espinha, meus músculos se contraem e minhas bolas murcham. Lilith arregala os olhos, surpresa e satisfeita, com a farta dose de sêmen que eu estou jorrando para dentro daquela boca e garganta.

[gasp]- Depois de tantos anos… você ainda me surpreende, querido. Então pare de pensar bobagem que você está com problemas com seu “amiguinho”.

[resfolegando]- N… nós podemos começar o projeto?

[ronronando]- Oquei, eu falo do Cristo… o verdadeiro… ou melhor dizer, da verdadeira. Depois nós vemos se você vai ter condição de pagar a segunda fatura.

Lilith se enrosca em mim, me abraça, me beija, me morde e me cutuca de tal forma que não demora para meu corpo começar a reagir. Animada com a expectativa do segundo round, ela começa a falar.

– Oh… bem… [cutuca] você também é parte do Espírito da Desolação, o Espírito do Vento, do meu povo, da minha gente. Você esteve lá. [cutuca] Você a viu. Nós nos apaixonamos por Ela, evidente. Nós dois sabíamos que era inconsequente, perigoso, arriscado, mas Ela tinha decidido acreditar no ser humano. Esse seu lado humano deve estar cheio de remorso, arrependimento e vergonha, mas você não deve carregar consigo essa culpa.

– Meu lado demoníaco nunca entendeu ou aceitou essa decisão. Afinal, Ela gerou muitos de nós. Ela gerou o ser humano. Inúmeras vezes Ela abriu mão de seu imenso e enorme poder, diminui-se e humilhou-se até a existência carnal e, tornada igual ao Homem, deu a nós o Conhecimento… só para depois ser perseguida, presa, torturada e morta de inúmeras maneiras [meus olhos começam a lacrimejar]. Mesmo assim… Ela ainda acredita em nós.

– Sim… [ela começa a me lamber] eu achei bem engraçado quando Ela se apresentou como Cristo. Ela pediu para que eu a levasse para Satan. [ela começa a me chupar]

– Ng! [eu não controlo mais meu corpo] Eu me lembro de como eu fiquei contrariado. [Ah!] Mesmo depois dos eventos e aventuras pelos quais eu e Satan passamos, ele ainda quis continuar com a encenação, a farsa.

[risos]- Você estava é com ciúmes! [sem cerimônia, Lilith vai encaixando meu poste na porta de trás dela]

[trecho indescritível e indecifrável, rabiscado, rasgado]

[risos]- Você é mesmo incrível, querido. Não é para menos que Ela te escolheu.

[arfando]- Ela e Satan conversaram por sete dias. Eu gostaria de saber o que conversaram.

– Ora, mas você sabe! Falaram sobre a essência do Caminho. Falaram que a limitação do ser humano iria produzir divisões, separações, conflitos. Falaram das inúmeras mortes, guerras e sacrifícios que aconteceriam. Satan, como sempre, estava pessimista e desanimado. Então… ah, então… Ela… sorriu… eu fico excitada só de lembrar.

– E… ei! Devagar aí! Isso aí é sensível!

– Ah, qual é, querido? Qual é a primeira coisa que vem em sua cabeça, em seu corpo, quando você pensa nEla? No sorriso dEla?

Essa é uma excelente pergunta. Eu estava apenas começando a explorar o Vale das Sombras, eu estava apenas fazendo o rascunho dos Cinco Círculos do Caminho, tal como eu o experimentava e o sentia, quando Ela veio me visitar. Eu não vou fingir nem inventar. Eu me caguei todo quando eu a vi. Pura Luz. Pura Beleza. Puro Amor. A mais perfeita forma feminina. Ela estendeu as mãos para meu caderno e não parecia estar ofendida nem escandalizada com a minha ereção. Ela lia cada linha com atenção, sacudia sua cabeça, provocando ondulações em seus longos e belos cachos dourados. Então Ela me olhou com aqueles imensos e belos olhos cor de púrpura, devolveu meu caderno e… sorriu… PQP… Ela sorriu. Eu acho que Ela disse algo com “continue” ou algo assim, mas eu estava tendo o maior e mais prolongado êxtase que um ser vivo consegue suportar. Saindo do transe que eu estava, perdido em meus pensamentos, quando eu me dou por mim, Lilith está toda animada, montada em cima de mim.

– Sim! Sim! Sim! Pelo Dragão das Águas Primordiais! Esse é o espírito! Eu até não me importo em sentir ciúmes! Você certamente a serve muito bem!

Lilith esbraveja várias palavras, todas na língua antiga, no entanto não é necessário tradutor para saber que ela deve estar falando diversas besteiras e palavras chulas. Eu não consigo pensar em coisa alguma. Eu não sinto coisa alguma. Meu pobre corpo parece um bife sendo batido até virar carne moída. Desculpe, mas eu vou morrer um pouquinho no meio dessas coxas. Mas eu volto. Eu acho que eu volto. Se eu sobreviver.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Heterogênese XVI

Estes são apenas alguns pequenos conselhos e considerações que, infelizmente, só terão lógica num tempo muito tardio para se recuperar alguma coisa. Que fiquem então estas palavras esquecidas no tempo, escondidas no deserto. Incompreendidas pelas cabeças esclarecidas dos homens que se fazem de sábios, mas acabam querendo ser tão donos da razão quanto os homens mesquinhos. Que riam de mim o quanto quiser, todas as juventudes que vem e vão, pois seu riso é perene como sua frágil e tola vida atrás de emoções. Pois seu escárnio é mais contra sua própria pobreza de percepção que contra mim. Suas regras de beleza, riqueza, poder e força são exatamente isso: produto de mentes perturbadas. Não adianta nada por máscaras diante de si. Só poderão matar-me uma vez, mas o tempo pertence àquele que pensa, cedo ou tarde o que escrevi virá à tona e seu Império de Luzes ruirá.

Ao contrário de muitos colegas meus, não pretendo ser profeta ou sacerdote das minhas crenças, ou de crenças ocultas, ou das Trevas. Pretendo, antes de tudo, plantar a dúvida e a crítica que qualquer um pode ter e são as únicas coisas sagradas, quando consideramos o gênero humano. Melhor que falar com parábolas sacras, falo então por sonhos profanos, já que nestes estão minha morada, já que nas Trevas cresço em inteligência e sabedoria. Que caiba a cada culpado reconhecer seu papel nas aventuras e caiba o jugo ao leitor esperto.

Terminarei minhas visagens, tendo que avisar mais a mim mesmo. Como os personagens para a consciência, serei esquecido por muitos, meus avisos ecoarão no vazio desértico de suas cabeças.

Não é sem propósito que minhas palavras e a consciência, estarão sendo continuamente sepultadas pelos senhores da sociedade. Já que o poder destes se garante pela repressão e pelos comodismos. Já que estão apoiados pelo Império das Luzes, contra quem a crítica e a dúvida perturbam sua superfície plana, sua película frágil de religiosidade pelo bem, sua casca de austeridade social, sua escama de fé hipócrita e podre num deus martirizado. O que escrevo pode não ser verdade, mas fere a filosofia fácil e nebulosa do Império das Luzes e alquebra o poder mesquinho e absurdo dos senhores da sociedade. Continuarão a esmagar seus semelhantes em nome de interesses obscuros, que não são do interesse de milhões, mas assim se faz em nome da Nação e do Estado. Coisas que, supostamente, deveriam ser do povo, mas que na verdade, não são mais do que os senhores da sociedade como as idealiza, a serviço de seus propósitos.

O mundo não faz sentido, já devia saber muito bem. Compreendê-lo, por mais que tente explicá-lo, muitas questões ainda surgirão insolúveis. Só tenho a certeza de que estou fora deste jogo. Dificilmente poderei entrar, qualquer que seja o método ou o meio, de romper as fronteiras e atravessar suas portas. Uma vez fora, melhor posso observá-lo; uma vez fora, dirão que tenho alucinações, ou que criei de mim mesmo este mundo. Escolhido de vontade, uma vida e um pensamento, nada me está reservado, que não a mendicância ou o asilo de loucos. Nada mais anormal que saber pensar e escolher independentemente, que mercado, acostumado a ordens e ideais aguados, iria querer roer os ossos da dúvida e beber o vinagre da crítica? Os motivos dados serão muito variados, mas isso não comuta minha pena, cuja condenação é morte por esquecimento e fome.

Cabe a cada um decidir seu rumo, ainda que contra um deus ou toda uma sociedade, contra toda história, que é escrita por regras preestabelecidas.

Uma vez que escrevo, estou assumindo a responsabilidade destes pensamentos como meus, como os riscos que trarão. Não deverá, de forma alguma, caso haja um futuro mais racional, as futuras gerações, regenerarem-me, cultuarem ou fazerem monumentos ou efígies meritórias a mim. Primeiro que não sou memória nem pretendo estar em museus de qualquer ordem. Depois que não sou mais que uma casca com um vácuo por alma. Além do mais, o mérito deve ser feito, não lembrado, em cultos ao intelecto, do qual quero ficar bem longe. Devem ter somente o que escrevi neste livro e o que foi lido pelos olhos, à parte, farão cada leitor, seus apontamentos, nada mais do que uma referência ou base, deve ser meu livro e minhas obras.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Primeira revelação

Por que quereis, Meus pequenos, saber da origem das coisas? 
Vossa estada é tão curta, 
proveito melhor vos daria primeiro em vos entender. 
Depois em entender o vosso lugar no mundo. 
Terceiro, em dar, a cada caso, 
o reconhecimento e o respeito que merece. 
A origem, Eu Sou. O Único. O resto é duplo. 
Tudo que existe vem da minha manifestação, 
como um círculo, não há começo senão Eu. 
Não há fim, pois eterno Eu Sou.

A emanação vem por um raio, 
a vontade, em círculos, diferentes planos, camadas e existências, 
mas o ponto central, o Um, Eu Sou. 
Escandalizareis-vós se soubésseis quantos, 
muitos mais que vós, existem acima, além ou aquém. 
Tratai, portanto, do que vos são menores, 
com a mesma complacência 
que esperam ser tratados pelos que vos são maiores. 
Reconhecei e respeitai a única riqueza que tens em vosso mundo, 
a essência necessária para a vida, que é a água. 
Vede como criei tudo aberto e imenso, 
dívida com vosso igual o terreno, 
sem tirar do menor do que este necessite para seu provento.

Tirai do vosso terreno o que vos basta, 
não acumuleis nem fareis de outrem fonte do vosso sustento. 
Se tiveres algo de valioso, 
não o guardeis para vós, pois o tesouro verdadeiro vem em 
compartilhar. 
Ainda vos digo isso embora não necessitais, 
pois Eu escrevi em vossos corações com Meu fogo, 
se quiserdes conhecer a Lei, 
consultem os vossos corações, pois é lá onde estou.

Entre barões e dragões

Dizem que debaixo de toda pedra existe ao menos uma criatura rastejante. Imaginem quantas criaturas devem rastejar debaixo de um castelo que é feito com diversas pedras. Nós sentimos nojo por que estes seres vivos não tem boa aparência, não são fofinhos e vivem na sujeira. Quanto a isso, nós não podemos fazer qualquer juízo de valor dessas criaturas, afinal elas são parte necessária da natureza. Mas existem criaturas rastejantes que perambulam pelo castelo, passeiam tranquilamente por seus corredores, salões e jardins. Destes nós podemos fazer muitos juízos. Debaixo de seus cargos, títulos, nomes, diplomas, vestes e pompa, eles escondem sua verdadeira natureza. Covardes, pusilânimes, traiçoeiros, falsos e fingidos. Não nos enganemos com sua aparência humana ou por sua oratória, são criaturas venenosas e pegajosas. No reino de Gotardo essa criatura era conhecida como Righel, um arconte que cresceu e apareceu dentro da Igreja pelo uso de suas habilidades nada abonáveis. Se castelos são morada de criaturas rastejantes, o Vaticano é o berço.
Righel tem uma carreira quase tão interessante quanto sua biografia. Seus pais foram servos de uma família romana que depois os adotou, o que o impediria de pleitear por uma cadeira em um seminário, de forma que ele nega suas raízes e carrega consigo um calhamaço de registros, contendo sua linhagem apontando para uma nobre família romana, mas nada que um falsário de primeira como ele não conseguiria forjar. Em tempos tão difíceis e complexos, a Abadia de Winter o aceitou sem muitas perguntas como monge, um sacerdote não ordenado. Depois de cumprir com seu tempo de estudo, Righel foi para o Seminário de Núrsia para iniciar sua vida sacerdotal, deixando a Abadia de Winter para colher os frutos de sua péssima influência. Depois de dois anos apenas, Righel tinha seu nome indicado para ser pároco de uma pequena vila, como auxiliar do padre, embora o Seminário de Núrsia tenha fechado depois de ter acontecido diversos fatos sem explicação. Evidente, o pobre padre não teve muita chance e o bispo de Voyeur pouco se interessava quem era aquele que apresentava uma carta de recomendação escrita pelo próprio finado o indicando como seu sucessor, qualquer um servia, desde que abastecesse a bolsa do bispo. Quando começou a histeria por causa das heresias, Righel viu ali a oportunidade perfeita para alcançar postos mais altos e foi pelos patrimônios e vidas tomadas que ele chegou a arconte.
O Vaticano não estava exatamente feliz por ter perdido o reino de Gotardo. Não estava exatamente indiferente com o edito do rei ordenando a restauração das crenças e religião local. Nem estava esfuziante quando o rei casou-se mais uma vez, com uma nobre de uma região que ainda estava além da força e influência da Igreja. O Vaticano “convidou” Righel como seu “representante” para o casamento do rei Savério com a rainha Fillardis, algo que ele prontamente atendeu, fingindo dedicação e obediência. Sua missão era, obviamente, servir de espião e de polícia secreta. O Vaticano deveria ter balançado quando Righel enviou seu relatório sobre a estranha proximidade entre a princesa de Gotardo e condessa de Mântua, Lúcia, com sua aia. Por outros de seus espiões e emissários, a Igreja secretamente distribuiu uma carta de convocação a todos os reinos para combater essa ofensa a Deus.
Righel, discretamente, sugeriu pelos mesmos canais que deixassem que ele fosse tratar com os reinos de Campânia e Astrésia, reinos que não apenas demonstraram completa fidelidade à Igreja, mas que também tinham assuntos pendentes com Savério, especialmente sobre os direitos e territórios que ele tomou na guerra contra Romualvo, seu sogro.
Uma boa conspiração, vingança e guerra entre parentes e familiares. Disto o Vaticano gosta, especialmente se vier com a conquista de mais almas e mais bolsas. O Vaticano deu a Righel o queijo e a faca, ainda que poucos sábios fossem contra. Righel aceitou de bom grado esse fardo. Rato que é, pegou o queijo todo para si. Covarde que é, pegou a faca para cravar nas costas de algum bispo ou cardeal, se assim a circunstância, a oportunidade e a chance lhe forem mais favoráveis para subir mais alto. Tendo traçado seu plano e operação, Righel apresentou-se diante de Paninfluo, o rei de Campânia e irmão de Romualvo.
– Saudações, Vossa Majestade. Esse humilde servo de Deus se apresenta diante de vosso poder para vos trazer um pedido da Igreja.
– Saudações, arconte Righel. Nós recebemos tua documentação e sabemos de antemão sobre o pedido da Igreja. Evidentemente que nós aceitamos tua causa, que é a causa da Igreja, a causa de Deus. O que nós queremos, em troca, é que, depois de acabarmos com os infiéis, o senhor venha fazer seu santo ofício em nosso reino. Nós sabemos que hereges se escondem em algum lugar desse nosso reino e nós cremos que apenas o senhor tem a capacidade para expurgar essa ignomínia.
– Vossa Majestade honra-me com tal pedido. Se assim for o desejo da Santa Igreja e de Deus, eu aceito este encargo.
Depois de trocadas gentilezas e presentes, Righel partiu contente e feliz para Astrésia, onde ele encontraria o rei Durval que, pelas intrincadas e complexas ligações de parentesco entre nobres, seria tio de Fillardis, o que não impediu a Igreja em indicá-lo para contrair matrimônio com a duquesa, um casamento arranjado por vantagens políticas, para a Igreja poder tomar para si o reino de Mântua sem esforço algum. Pouco importa os meios de Righel, desde que o Vaticano consiga dar uma lição ao rei de Gotardo e ainda ganhe Mântua como bônus.
– Saudações, Vossa Majestade. Esse humilde servo de Deus se apresenta diante de vosso poder para vos trazer um pedido da Igreja.
– Saudações, arconte Righel. Deus o abençoe. Nós confiamos em teu ofício para nos dar a oportunidade de reaver o que é nosso. De nossa parte, iremos solicitar ao papa para que o nomeie como bispo de todo nosso reino, assim que nos entregar a mão de nossa amada.
– Vossa Majestade honra-me com tal pedido. Se assim for o desejo da Santa Igreja e de Deus, eu aceito este encargo.
Nenhum biólogo acreditaria nisso. Uma criatura rastejante sorrindo. Righel sorria como um bebê sendo amamentado. Evidente que esse era o primeiro passo, mas depois ele pensaria em como tiraria vantagem dessa circunstância. Sonhando antecipadamente em ser rei de dois reinos, ter duas rainhas e seu próprio harém, Righel foi comemorar na primeira taverna que encontrou no caminho.
– Boa tarde, viajante! Seja bem vindo à Taverna da Macieira.
– Ora, agradeço, garçonete, a tarde é sempre boa, quando eu sou tão bem recebido por uma jovem com tantos atributos. Normalmente eu não sou recebido de forma educada.
– Todos são bem vindos, não importa quem seja, não importa de onde venha. Esta é a regra de toda taverna. Sente-se, por favor e faça seu pedido. Eis nossa carta de serviços.
– Hum, eu vejo que vocês têm boas bebidas. Traga-me então o melhor prato da casa e a melhor bebida da casa. Mas, diga-me, senhorita e quanto ao preço de outro serviço que não está nesta carta? O que acha de ganhar vinte dobrões de ouro por um serviço fácil?
– Vejo que o distinto cavalheiro é um senhor de posses e de bom gosto. Se tão distinto cavalheiro não considerar ser um demérito deitar-se com uma garçonete de taverna, onde tantos viajantes passam por suas portas, por trinta dobrões de ouro eu te indico o caminho do paraíso.
Righel fartou-se como pode. Saiu trôpego pela estrada, de volta à Gotardo, com a máscara de inocência estampada no rosto. Bendita seja a taverna, bendita seja toda a mulher da solicitude. Uma nos alimenta com comida e bebida, a outra sacia outras necessidades carnais. Não há templo maior e melhor do que este.
E que mistério a Fortuna e o destino preparam! Os clientes da taverna somente a conhecem como garçonete, poucos a chamam pelo nome, mas apenas afortunados a conhecem. Hildegarda ocupa seu posto na taverna até o fim da tarde, de noite ela atende como abadessa em Norfolk. A Igreja sequer desconfia da existência da abadia e das Irmãs da Solicitude que servem pelas estradas às necessidades dos homens, tal como conservavam suas crenças e práticas desde sua terra natal. Não era uma abadia cristã, se os leitores se escandalizam com isso. Muito devem as Irmãs da Solicitude ao rei Savério, então Hildegarda sofreu calada, em nome de seu ofício, debaixo de Righel. O homem tem muitas fraquezas e estas são rapidamente reveladas debaixo de lençóis, o ouro de Righel não era tão interessante quanto o que este confessara no ouvido da abadessa, entre gemidos de prazer.
Hildegarda sabia bem o que fazer, assim que se livrou do fardo. Primeiro, limpou-se com o leite curtido com ervas, uma receita antiga que seria esconjurada como bruxaria que a deixaria tão pura e virginal quanto uma debutante. Depois, livrou-se do avental e das roupas da taverna, vestiu seu sóbrio hábito, furtou o cavalo de algum bêbado, montou e pegou o atalho que a levaria até Gotardo onde sua irmãzinha Dolores certamente teria bom uso para a informação que ela carregava.
Quando os Romanos conquistaram a Gália, os territórios estavam ocupados por diversos povos descendentes dos Celtas e quando os romanos trocaram César por Cristo, estes povos trataram de disfarçar suas crenças, práticas e Deuses debaixo da roupagem cristã. Assim, vivendo na clandestinidade, surgiram diversas ordens, irmandades, conventos e mosteiros que, a despeito da cruz postada em seus pórticos, ainda celebravam seus ritos antigos. Estas coisas aconteciam amiúde nos campos e regiões ignotas e foi ali, em algum lugar da fronteira entre Mântua, Campânia e Astrésia, que surgiram as Irmãs da Solicitude.
As Irmãs da Solicitude compunham-se de freiras lideradas pela Madre Superiora Íris. Pelas roupas, linguagem e aparência, pareciam ter vindo de algum lugar além de Constantinopla. Chegaram trazendo junto com elas uma imagem que parecia ser de Nossa Senhora, os padres e habitantes deram de ombros e julgaram ser cristão o suficiente. Havia tanta confusão, mesmo entre patriarcas e bispos da Igreja, o que era ou não cristão, existiam tantos conventos e mosteiros que professavam coisas que poderiam ser consideradas heresias que ninguém fez muita questão de se certificar o quanto as Irmãs da Solicitude comungavam ou não com os dogmas da Igreja.
O edil da cidade fez o que lhe cabia, cedeu terreno, material humano e físico para que a Madre Superiora pudesse erguer sua abadia. Com os braços de escravos, servos e voluntários, o prédio ficou rapidamente pronto e foi inaugurado com toda a pompa, com uma fila de mulheres querendo entrar na irmandade. Eu peço aos leitores de outras terras, épocas e costumes que não façam mau juízo destas mulheres. Nestes tempos obscuros, para as mulheres era uma questão de sobrevivência poder ingressar em alguma ordem religiosa. Antes ser “noiva de Cristo” que, pregado que estava, mal não lhes fazia, do que ser loteada ou vendida por suas famílias em troca de um bom dote.
Os habitantes locais acharam estranho quando a abadia colocou cadeiras, mesas, tonéis ao invés de ara, santuário e santos. Alguns ficaram constrangidos no início, ao verem que não havia missa ou oração, as pessoas podiam entrar e sair quando quisessem, podiam sentar e pedir comida e bebida. Mas não demorou muito para que os homens, principalmente, começassem a nutrir um interesse profano pela abadia e suas freiras. Ao invés de claustros, a abadia mantinha nichos ricamente decorados e estofados dentro de suas paredes, onde as irmãs atendiam, solicitamente, aos desejos das almas famintas.
A despeito desse serviço carnal, um escândalo para um bom cristão, não faltavam candidatas ao noviciado. Hildegarda apareceu na porta da abadia, sem mais nem menos, pois o serviço sagrado era melhor do que aceitar casar-se com um velho beberrão que ela sequer conhecia. Iris não a questionou nem a interpelou, pediu para que lhe colocassem o hábito de noviça e a colocou para os serviços mais simples. Varrer a abadia, limpar as mesas, regar o jardim, carregar mantimentos ou qualquer outro serviço que suas agora irmãs passassem para ela, o fazia. Somente depois é que Hildegarda pode aprender como atender os penitentes, como servir comida, como servir bebida. Apenas bem mais tarde é que Hildegarda pode entrar nas salas internas da abadia, conhecer os nichos e conhecer a quem realmente a abadia estava consagrada: Ishtar, conhecida por Vênus pelos Romanos e por Afrodite pelos Gregos. A abadia ensinava o caminho espiritual pela consumação carnal. Hildegarda deu de ombros, afinal, se aquela que é chamada de Mãe de Cristo deitou-se com Deus, não havia pecado algum em receber dinheiro por tais favores.
Foi comprando mantimentos para a abadia no mercado central da capital de Mântua que Hildegarda encontrou e conheceu Dolores. Ela era mais jovem há alguns anos, ela estava visivelmente nervosa, ainda na expectativa de ser aceita na guilda das damas da corte e estava precisando de um apoio espiritual. Em poucos instantes, conversando, ambas começaram uma forte amizade e foi graças aos serviços de Hildegarda que Dolores não apenas foi aceita na guilda das damas da corte como foi admitida para ser aia da princesa Lúcia de Gotardo.
Hildegarda visitou Dolores e seu local de ofício, gostou muito do que estava acontecendo em Gotardo e fascinou-se com a princesa Lúcia. Então Hildegarda sabia perfeitamente que a confissão de Righel seria útil para suas amigas e assim ela fez. Diante do portão da guarda, Hildegarda se apresentou e solicitou audiência urgente com o rei ou com a princesa. Este humilde escriba estava passando casualmente quando notou o guarda do portão comunicando ao capitão da guarda sobre a solicitação. Sabedor que eu sou da burocracia e protocolo desnecessário que existem no funcionamento de um castelo, eu fui direto falar com Dolores.
– Dolores, eu tenho que conversar com sua senhora.
– O que aconteceu, escriba? Perdeu o pouco juízo que tinha? Eu não vou incomodar minha senhora para o senhor contar suas estorinhas. Eu sei bem aonde isso vai dar, eu caí em sua lábia porque era jovem, ingênua e inexperiente, mas eu não vou deixar o senhor sequer tocar um fio do cabelo de minha senhora.
– Meu ofício sem dúvida contribuiu para eu ser tão perturbado, mas saiba que nenhuma pessoa tem poder de obrigar outro a fazer o que não quer e você bem que gostou do que fizemos. No entanto, eu sei meu lugar, eu não irei tocar em sua senhora, isso seria o mesmo que tocar a lua. Ouça-me, ao menos, pois eu vim do portão onde uma mulher, apresentando-se como abadessa Hildegarda, solicita falar com sua senhora.
– Hildegarda? Aqui? Diga-me sem demora o que ouviu!
– A abadessa sabe de coisas sobre Righel que nosso rei deve saber.
– Sobre Righel, hem? Bem que eu suspeitava que este não era um cavalheiro. Venha comigo! Vamos nós mesmos conduzir a abadessa até minha senhora! Se o que ela tiver for bom, eu posso reconsiderar em voltar a fazer nossos saraus.
Dolores estava cheia do espírito, ela tomou meu braço e eu fui arrastado atrás dela, de volta ao portão onde ela, usando o nome da princesa, fez entrar a abadessa.
– Hildegarda, que bom pode vê-la novamente!
– Dolores? Oh, Dolores, que saudades! Mas… quem é este?
– Ah, um João Ninguém, um mero escriba. Venha, eu vou te levar até a minha senhora.
Eu, pobre coitado, mercador de palavras, sou vetado em exercer minha profissão. Diante de beldades tão decididas, sigo eu, arrastado, através dos corredores e salões do castelo até chegarmos em um rico portal decorado onde, debaixo de tal ameias, tinha uma grande e pesada porta, onde, mediante toques ritmados, Dolores indica para alguém do lado de dentro nossa chegada.
– Lúcia, sou eu, Dolores. Eu gostaria que a senhora conhecesse e conversasse com Hildegarda, uma velha amiga.
– Uma velha amiga? Entre, Dolores, que eu quero conhecê-la.
Em minha profissão eu vi diversos espetáculos de prestidigitadores e ilusionistas, mas não me canso de ficar maravilhado como esta porta abre-se como mágica e desvenda um universo totalmente fora da minha realidade. Conhecedor dos textos e lendas antigas, o dormitório da princesa certamente faria ciúme em muitas Deusas. Ver a própria, em sua pose tão formal, apoiada no costado de uma poltrona ricamente decorada, em nada deveria em beleza, majestade e esplendor a tais Deusas. Eu escondo estas notas, pois ela lança aquele olhar que pode tanto matar um pardal quando gelar o coração de um homem.
– Eu te dou boas vindas, abadessa Hildegarda. Uma amiga de Dolores é minha amiga, então dispense o tratamento protocolar. E… isto… o que é isto, Dolores?
– Ignore-o Lúcia. Isto não é sequer merecedor de ser esmagado debaixo de seus pés.
– Não sejam tão duras com o coitado. Que culpa tem por ser escriba?
– Eu vejo que a senhora é realmente uma boa alma. Só mesmo pessoas consagradas teriam compaixão e misericórdia com um escriba. Mas vamos esquecer essa criatura. Diga-me, Hildegarda, tudo o que você tem a dizer.
Oh, cruel sina que nós escribas carregamos. Desprezados e ignorados até por nossa própria família e parentes. O leitor é nosso único amigo, se bem que também nos apedrejaria, se nos vissem na rua. Ainda assim, poupá-los-ei de desnecessárias linhas e lhes direi que Hildegarda contou as confissões de alcova ditas por Righel. Oh, Fortuna, oh, Destino! Eu chego a sentir pena de Righel.
Lúcia ouviu tudo o que Hildegarda tinha para lhe contar e Dolores está de olho no que eu anoto então o leitor me desculpe se eu omitir tal diálogo. Eu me encontro emaranhado nisso até a medula, então mais uma vez lá vou eu, arrastado através do castelo, até a sala particular do rei Savério onde as três mulheres entram e me jogam ao chão, diante de um rei surpreso.
– Ora, ora, se não é minha bela Lúcia e sua amiga! Entrem sejam bem vindas. Poderiam me apresentar para estes visitantes que vocês me trouxeram?
– Meu senhor, esta é Hildegarda, da abadia das Irmãs da Solicitude. Ela é amiga de Dolores e tem revelações que podem livrar Gotardo de um grande mal.
– Um grande mal? Não há grande mal, apenas homem pequeno. Mas falando em homens, que é este que tanto rabisca em um caderno?
– Ninguém, meu senhor, esta criatura sequer é merecedora de ser chamada de homem.
– Ah, Lúcia, se você soubesse quantas vezes este homem velho foi olhado com desprezo por pessoas que acreditam serem superiores, não diria isso. Adiante-se, homem, apresente-se.
– Meu Supremo Soberano, eu sou um pequeno, pobre e humilde escriba às vossas ordens.
– Ah, viram? Não foi assim tão ruim. Diga, homem, o que tens com estas beldades que o faz vir até aqui?
– Oh, Bom Senhor, esta é a minha sina. Eu sou carregado pelas palavras e pelos livros. Eu sou como que possuído por um espírito que me conduz a ler e escrever. Seja por Fortuna ou Destino, este pobre escriba teve a graça de conhecer Dolores e é por ela que me vejo conduzido à vossa presença.
– Oh, meu pobre homem, eu sei pelo que passa. Quantas vezes eu, apesar de regente deste reino, não me vi sendo conduzido por amor por minha Fillardis? Se for deste mal que sofres, sofra-o com orgulho, pois é um sofrimento prazeroso. Venha um dia desses e me traga seus escritos que eu quero ler todos.
– Meu senhor! Não pensa em dar a tão baixa e vil criatura tal distinção?!
– Ora, um homem que conquista o coração de uma mulher merece o respeito de um rei que conquista um reino, pois vejam que é a mesma coisa! Se ele não fosse importante ou significante ao menos para uma de vocês, não o teriam trazido até aqui. Então vamos deixar de cerimônias, pois a acusação contra Righel é grave e nós devemos pensar bem em nossa estratégia.
Oh, Themis, oh, Musas, ouvistes minhas preces! O meu senhor e soberano não apenas me tem por conta de ser humano, como me considera digno de ser lido! Sim, eu vejo que a santa Hildegarda sorri, aquiescendo diante da sabedoria do rei, ainda que a contragosto de Lúcia e desconfiança de Dolores. De uma, eu sei que tenho muitos pecados a me justificar, mas eu peço a vós, Deusas, pleiteiem por mim diante de minha senhora, a quem ofereço a mais profunda admiração e devoção!
– O que você tanto murmura escriba? Mais tarde dou-te conta!
– Oh, Dolores, porque faz tão mau juízo deste pobre homem que apenas deseja dar-te seu carinho, atenção e amor?
– Pelo que roubaste de mim! Bem sei o que fazes entre as árvores nas noites de lua cheia, então peça mercê a Diana, pois maculada que eu fiquei por ti, não poderei encontrar um bom partido e minha família certamente ficará desonrada se oferecer meu dote a um cavalheiro distinto!
– Oho! Uma pequena discussão entre dois enamorados. Creia-me, Dolores, não há diferença alguma entre este escriba e qualquer cavaleiro, mesmo o de nobre nascimento. Nós, homens, somos exatamente os mesmos, sem roupas e debaixo de lençóis.
O rei Savério diz isso bem ao lado de Dolores enquanto gentilmente rodeia seu tronco com seus braços e pousou uma de suas mãos no quadril dela. Eu estou salvo da fúria de Dolores, então eu engulo meu ciúme por ver os olhos dela brilharem e suas faces ruborizarem diante da proximidade e do abraço do rei. Lúcia pigarreia, como que para retomar o foco para o que eles se propõem a discutir e o rei dá uma piscadela para mim antes de sentar-se ao lado de Hildegarda. O rei debaixo de sua coroa é um homem e é rápido e objetivo ao escolher seu alvo.
O rei deixa as mulheres falarem conforme desejam, apenas acena com a cabeça e mantém uma feição de seriedade. Lúcia demonstra ter um tino praticamente genético em estruturar estratagemas, como se estivesse em um jogo de xadrez, antecipando e prevendo as ações de Righel. Dolores a animava, enérgica e encorajadora, reforçando como se fosse um eco algumas palavras que pareciam importantes. Hildegarda sorria e de vez em quando olhava, ora para o rei, ora para mim. Nenhum alquimista saberia o mistério que esta mente divina está urdindo. Ela não parecia nem um pouco incomodada ou ofendida com a evidente atração carnal que exercia no rei e este certamente deve estar imaginando mil estratagemas para levá-la para sua cama real. Eu acho que eu mesmo coraria, se ouvisse os pensamentos que o rei nutria por Hildegarda. Eu certamente iria para a forca se tentasse algo assim com a Dolores. Quando as mulheres despejaram seu rol de ideias, o rei, ao ver que quedavam pensativas e em silêncio, interrompeu a reunião, batendo com o punho fechado por sobre a mesa.
– Muito bem! Tudo que dizem é sensato e correto. Eu peço a tais beldades que confiem nesse homem velho para que cuide de tudo. Eu também devo pedir a vós que fiquem no antigo santuário que existe na Montanha de Falcis, onde um bom e velho amigo de confiança que eu chamarei lá estará para que as protejam.
– Meu senhor! Acredita mesmo que eu não seja capaz de vestir uma armadura, montar um cavalo de batalha, tomar lança e espada e estar na frente de batalha contra nossos inimigos?
– Oh, minha majestosa e luminosa princesa, eu jamais pensaria tal coisa! O que mais me acalenta diante da batalha é saber que mesmo os Deuses temem quando uma Deusa está vestida para a guerra. Mas minha vida é dispensável enquanto a tua é mais preciosa do que todas as terras de meu reino. Você, encarnação de Vênus, terá a incumbência de cuidar de minha esposa, Fillardis.
Lúcia ficou embaraçada, mas aceitou o conselho de seu rei, levando consigo a rainha e sua Dolores. Com a desculpa de que diante de inimigos poderosos que teriam o Deus Usurpador ao lado deles, o rei solicitou para que a abadessa ficasse mais um pouco ali, pois com a ajuda dela poderiam conseguir o apoio do Deus Legitimo. Antes de eu ser arrastado novamente, eu pude ver Hildegarda com um sorriso estampado no rosto, satisfeita pela oportunidade de poder experimentar o poder do cetro do rei entre suas pernas.
Oh, Musas, porque pousaram em Brundísio, Florença, Stratford, mas não em Vila do Piratininga? Quisera eu ter uma língua boa, mas nasci com um trapo entre os dentes. Oh, Ceres e Demeter, porque fizeram dos filhos da loba uma civilização, mas da Terra de Vera Cruz fizeram uma piada para a humanidade? Cem macacos com pena, tinta e papel produziriam obras melhores que as minhas. Oh, meus mestres do ofício de escriba, que desgraça meu nome deve trazer a esta guilda. Eu os ouvia falando de como Ulisses logrou as sereias, por quem a lenda nos ensinou lição severa, pois eu ousei a ver pelos olhos de Homero e que mistério eu tenho que me calar, não pelas sereias serem tanto meio mulheres e meio aves e peixes, mas porque elas são filhas das Musas e netas de Mnemosine! Filha de Gaia, cujo ventre divino gerou a titanesa Metis, aquela que, engolida por Zeus, deu origem à Atena, a Deusa da Civilização e Górgona! A maldição do escriba é ousar saber e ter que calar, pois o poeta que come da fruta da Deusa conhece tudo, mas o preço é a morte.
O leitor pergunta o que eu tenho com Ulisses, pois eu explico. Assim como Ulisses aproximou-se da caverna sagrada guardada por sereias, eu me aproximei do santuário que existe dentro da Montanha de Falcis. Bem eu sei que alquimistas e doutores ensinados por padres ou outros acadêmicos desdenham da crença, mas é necessário buscar a Sabedoria como se caça um cervo na floresta, o Caminho do Bosque Sagrado está aberto a quem tiver coragem de enfrentar o labirinto que nos conduz à Verdade. Nessas poucas e breves mal traçadas linhas eu deixei uma pista do mistério que Ulisses desvendou ao ouvir as sereias.
– Ainda está perdendo seu tempo rabiscando este caderno?
– Oh, Dolores, por que tortura tanto meu pobre espírito? Esta é a minha sina e o leitor quer ler.
– Pois se tem que escrever, o faça sem rodeios! O leitor, se é que tem algum, não precisa de delírio ou fantasia, diga os fatos.
– Oh, meu coração, este é o trabalho do jornaleiro, não do escriba.
– Ah, bandido, quer novamente arrastar-me com suas palavras! Cale-se maldito e escreva. Dou-te conta depois.
Afastado de rotas e estradas, o santuário está na base da Montanha de Falcis, um local que ainda preserva a floresta e as ruínas de um tempo remoto. Mesmo um guia hesitaria em atravessar tal região e o povo contam várias lendas sobre a sorte de viajantes e aventureiros que por ali passaram. Por arte ou por natureza, a rainha nos conduz em segurança até a entrada de uma caverna, cuja entrada está ricamente decorada com relevos. Eu olhei para a penumbra e pude perceber pequenos focos de luz bailando pelo ar, mostrando que ali é um lugar sagrado, por onde as almas entram ou partem deste mundo. Eu recordo de ter ouvido os anciãos terem dito que a montanha é o corpo de uma antiga Deusa e em seu interior habita o Senhor da Floresta, de quem nossos patriarcas míticos são descendentes e herdeiros. Este é um aspecto de semelhança que existe nos mitos e lendas da fundação das cidades e civilizações, onde um semideus ou filho de um Deus faz o fundamento de uma cidade e ensina aos homens a sabedoria dos Deuses. Dolores segura apreensivamente meu braço, mas não é para censurar, mas sim para alertar que algo ou alguém estava se aproximando.
– Evoé, a quem está dentro do santuário. Nada temam, pois eu vim em nome do rei Savério para lhes garantir a segurança. Este que vos anuncia a chegada pronúncia seu nome para que o reconheçam como servo do Senhor. Eu sou o barão Merovas, senhor do feudo dos Francos.
– Ieauo, a quem está fora do santuário. Aproxime-se que nós o estávamos esperando. Esta que te reconhece pronuncia seu nome, pois também é serva do Senhor. Eu sou a duquesa Fillardis, senhora do feudo de Mântua, rainha de Gotardo.
– Fillis? A minha Fillis? Ora, em nome de Morgana, é a minha pequena Fillis! Venha cá, minha preciosa! Faz um bom tempo que não a vejo.
O cavaleiro desce de seu cavalo de guerra, tira o elmo e revela uma face cansada e acostumada com batalhas. Seu estandarte porta um singelo dragão negro em um fundo vermelho, sua armadura é composta de um metal que eu desconheço e está decorada com veludo púrpura, indicando sua nobre linhagem. A rainha caminha apressadamente e abraça ternamente o cavaleiro para depois proceder com as apresentações.
– Meus queridos súditos e amigos, este é barão Merovas. Mas eu diria que ele é o rei dos Francos. Por intrincadas relações familiares ele é meu primo, o que faria dele seu tio, Lúcia.
Lúcia perscruta o cavaleiro de alto a baixo, com um olhar intrigado, com uma expressão de incredulidade e como se tentasse reconhecer sua face de suas memórias.
– Diz o sábio que não existem coincidências. Quis a Fortuna e o Destino que nos encontrássemos, então faremos algo disso. No momento, meu senhor, a presença da abadessa Hildegarda nos é necessária para invocar a presença do Senhor da Floresta e, através dos ritos apropriados, solicitar ao Senhor uma aliança para que tenhamos alguma chance de vitória contra nossos inimigos.
– Aqui estou, princesa.
O rosto de Hildegarda estava fulgurante, seus olhos brilhavam como as estrelas e seu sorriso parecia uma lua crescente. Eu não entrarei em detalhes do motivo por tal transfiguração na abadessa, mas creio eu que isso é devido ao tempo gasto em companhia do rei. Eu bem sei que os pobres cristãos veriam nisso escândalo, mas estamos em um tempo e uma região onde a Igreja não manda. A humanidade sempre teve regras e modos próprios para o amor e relacionamentos e o costume é de que um coração não é como uma fazenda, onde o meeiro ou ocupante é dono, o coração obedece a Eros e Afrodite e estes não definem classe, gênero, guilda, ocupação, número ou idade, o que há são pessoas amando pessoas. Assim, ao contrário do costumeiro dos hábitos da nobreza, a rainha não fez caso nem ciúme, felicitou-se por que seu amado foi capaz de satisfazer a abadessa e contentou-se pela abadessa ter tido o prazer de experimentar o gosto da geleia real.
– Excelente, abadessa. Por favor, inicie os preparativos para o ritual onde invocaremos o Senhor da Floresta.
– Imediatamente, vossa majestade. Mas e quanto a… isto?
Os olhos se voltam para a mesma direção em que o indicador de Hildegarda aponta e eis que apenas agora minha presença é notada pelo barão. Certamente a rainha, a princesa e a abadessa sabem bem desses ofícios clandestinos executados em ruínas, igrejas abandonadas e entre círculos de pedra na floresta, mas o que eu posso dizer de mim? Eu mal sou considerado gente, eu sou um escriba.
– O escriba não estaria conosco se não fosse necessário, além do que devemos considerar que Dolores também é profana, o que é igualmente propício para os antigos rituais. O Senhor da Floresta mostrar-se-á mais favorável à nossa petição se um homem e uma mulher forem apresentados e iniciados nos Mistérios Antigos.
– Ora, que interessante. Nós estamos considerando não apenas conceder ao escriba sua condição como homem como também faremos dele um iniciado! No entanto, isso depende de Dolores. O que me diz, cara amiga, aceita fazer este sacrifício?
– Minha rainha, eu sou uma mera serva a serviço de sua filha. Se este é o preço que me cabe, apenas vos peço que ordene e diga-me o que fazer.
– Isto será bastante simples, não há muito segredo, achegue-se aqui comigo e Lúcia, pois ela precisa também saber e preparar-se para quando o momento dela chegar. Enquanto isto, escriba, o barão há de te ensinar o que fazer e dizer.
Ah, o que eu ouvi e soube! Ah, o preço do conhecimento! Nenhum livro pode conter tais práticas e palavras, pois são chaves que abrem a realidade divina. Eu a tudo ouvia e acenava consciente e concordando, ao mesmo tempo em que observava Dolores ao longe, evidentemente nervosa e contrariada com a parte que lhe caberia. Evidente que eu estava contente e alegre, nunca em toda minha vida eu poderia sonhar com tal mercê. Como eu, mero escriba, poderia ser necessário, como eu poderia servir, como eu poderia almejar a consideração que cabe a um ser humano, nem mesmo meus maiores delírios chegariam a tanto.
– Muito bem, os preparativos estão concluídos. Apresentem-se o homem e a mulher que, segundo o desejo e vontade de seus corações, estão dispostos a oferecer o devido sacrifício ao Senhor da Floresta.
Seguindo a fórmula que lhe foi passada, Dolores entoa seu nome, não o nome que é dado no batismo, mas o nome que é o de sua alma. Eu, vendado, amordaçado, com mãos e pés atados, senti quando me aproximei da borda do círculo sagrado, proferi as palavras e os códigos para então ser admitido diante do altar central. Eu senti o frio da lâmina de uma espada tocar o alto de minha cabeça, o centro do meu tórax e minhas partes baixas. Eu tive minha testa, rim esquerdo, ombro direito, ombro esquerdo, rim direito e novamente a testa ungidos com óleo aromático. Quando eu tive minha venda removida, eu pude ver todo o interior da caverna tão iluminada quanto uma catedral. Então eu vi que o altar estava forrado como se fosse uma cama e Dolores estava por cima completamente nua. Eu devo consumar com ela o Hiero Gamos e, com isso, o Senhor da Floresta há de vir e ouvir nossa petição. Dolores me fitava com olhos raivosos, mas essa era a nossa oferenda, sacrifício que assim que teve início, Dolores passou a gemer e me fitou com olhos amorosos. Quando meus sentidos foram envoltos pelo arrebatamento do prazer e minha essência preencheu o ventre de Dolores, antes de desfalecer eu vi a face do Senhor.
Houve quem disse que a pena é mais forte que a espada. Dependendo do momento, um ou outro escriba, um ou outro pensador, um ou outro sábio reclama a ele a autoria da frase, mas eu queria ver estes esgrimindo com suas penas diante da espada. Isto é a guerra, apenas quem passou pela experiência pode declarar sobre seus terrores e eis que eu vi como que o céu sentindo a sede de sangue no coração dos homens. Lanças erguiam-se contra as nuvens, como se fossem pinheiros, cada banda do vale carregado de soldados, cavaleiros e armas. Cada lado tinha seu estandarte, sua insígnia e cores. Tanto ali como cá, pessoas que antes eram vizinhos, amigos ou familiares, agora podem muito bem estar em lados opostos e não hesitarão em se matar.
– Ora, quem diria! Vendo-o assim, em gibão, cota de malha, cinturão, bainha e espada, eu não saberia que é um escriba. Veremos se é tão bom no manejo de uma espada como é bom no manejo da pena.
– Dolores, meu coração, eu fico muito feliz que tenha dito que eu sou bom na pena e te prometo que voltarei vitorioso da batalha. Eu peço apenas em troca que aceite de vez meu amor.
– Amor? Você acha mesmo que sabe algo sobre amor, por saber usar palavras bonitas? Você acha mesmo que há amor entre nós apenas por causa de minha fraqueza? Nem mesmo os Saxões que conquistaram a Bretanha conseguiriam conquistar o coração de Boudicca.
– Bem que o rei ensinou-me essa verdade. Mais valoroso e honrado é o herói que conquista sua amada. Pois mate-me aqui mesmo em campo de batalha e ainda assim eu morrerei feliz.
– Que raro! O escriba mostrando que tem língua afiada! Muito bem, isto eu lhe concedo. Volte vitorioso e eu te darei a oportunidade de provar seu valor em uma batalha contra mim.
Dolores diz e promete isto, saindo em seguida como se tais palavras coisa alguma significassem. Ao meu lado, o barão Merovas balança a cabeça para os lados, com um olhar triste, como se fitasse um soldado que corre para sua morte. A cavalaria posicionou-se adiante, a infantaria atrás e pelas laterais. Nos cimos dos morros, as máquinas de guerra e os arqueiros. A estratégia consistia em avançar apenas um terço e depois os outros dois terços avançassem contra as tropas que avançavam do outro lado.
– Escriba, a hora está chegando. Tem certeza de que quer fazer isto?
– Sim, barão Merovas. Por um breve instante eu fui respeitado e tratado como um ser humano. Se a luta pode me conceder o louro da glória, se desembainhar uma espada tornar-me-á digno de poder andar pelas ruas em paz, eu vou sem temor.
– Escriba, não há honra e glória em morrer. Nenhum mérito, medalha ou louro vale o preço de uma lápide.
– Disto eu sei, o rei assim ensinou-me. Mas eu devo ir adiante, senão como eu poderei encarar Dolores?
– Então, meu caro, coloque a força de seu coração na espada. Se teu amor for tão forte assim, você tem chances de sobreviver.
Trombetas ressoam pelo vale. Eis a hora! O chão treme com a movimentação dos exércitos, projéteis zunem pelos ares, homens gritam por coragem e dor. A terra fica empapada de sangue, ossos e vísceras. No chão os corpos vão aumentando de número e ali estão também crianças, jovens e mulheres, com e sem uniforme de batalha. O horror do campo de batalha é tanto que o sol não demora a se refugiar atrás do horizonte. Fome, sede, cansaço, ferimento, músculos doloridos. Conforme a lua passeia com sua lâmpada, os homens em batalha parecem indicar uma breve trégua. Eu quedei atrás do Muro de Adriano, recuperando o fôlego e observando se há algum ferimento letal em meu corpo. Mais dois somaram-se em meu refúgio e eu notei que era a princesa e o barão.
– Então, escriba, o que acha do ofício do soldado? Por acaso há tanta agrura em teu ofício?
– Meu senhor, eu te peço que poupe seu fôlego. O escriba provou que é digno da missão que lhe foi conferida e, se daqui voltarmos vivos, eu mesma tomarei as providências para que ele possa desfrutar de seu triunfo. No momento, nós temos que pensar no que podemos fazer. Não que estejamos perdendo, mas não estamos ganhando. Nós temos reforços? O adversário tem reforços? Até quando podemos aguentar? Até quando o adversário pode aguentar? O que mais podemos fazer? O que mais o adversário tem para oferecer?
– Minha princesa, quisera eu ter as respostas. Mas eu não estou em condições. Eu acabei de matar com minhas próprias mãos pessoas que eram meus parentes e familiares. Isto é o que tem acontecido na Europa, desde que os reinos aquiesceram e adotaram o Deus Estrangeiro imposto pelos Romanos. Os reis de antes poderiam ter lutado, resistido. Ficamos assim tão fortes e poderosos? Eu espero que sim, porque apenas com a força de um Deus nós poderemos vencer.
– Acredita mesmo que os Deuses estão nesta luta, barão? Acredita mesmo que um homem pode conter em seu corpo o poder de um Deus? Pergunte ao escriba a sensação de ver com os próprios olhos o Senhor. Eu poderia facilmente possuir seu corpo e usá-lo na batalha, mas você aguentaria? Você possui grande poder, mas mesmo todo seu poder é meramente físico. Não, teu corpo não me serviria, mas a princesa tem um poder que vai além do físico. Então eu ouso a te perguntar, Lúcia, você quer ganhar essa guerra ou ainda está dispersa em teu orgulho e vaidade?
Nós três olhamos assustados e espantados para a parte de cima do Muro de Adriano onde um dragão devia estar nos observando e ouvindo há algum tempo. Em qualquer outro lugar e região este dragão seria perseguido, caçado e morto. Cavaleiros contam, orgulhosos, de como enfrentaram e venceram um dragão, descrevendo-o como uma fera irracional e de aspecto ameaçador. Mas este dragão que eu conheci era bastante simpático, tinha algo de feminino e vestia roupas humanas.
– Diga, grande espírito da natureza, conhece-me?
– Sim, Lúcia, eu a conheço desde antes de assumir esta forma carnal.
– Como isso é possível? Eu existia antes de agora? Como eu não me lembro de coisa alguma?
– Não te recordas porquê está presa neste vaso. O aparelho que dispõe é limitado e falível. Então teu espírito adormece para que tua alma possa preencher e usar este vaso. Mas se confiar em mim, eu posso te despertar. Eu só precisarei da chave certa e da fechadura adequada.
– Diga-me o que devo fazer, grande espírito da natureza!
– Pois bem, uma vez que está disposta e pronta a aceitar e confiar em mim, eu te digo. Aqui e agora, eu irei preparar o devido ritual, onde eu irei invocar o Senhor da Floresta. Este escriba vem a calhar para ativar em mim o necessário. A ti, princesa, caberá fazer o sacrifício. Você deverá deitar-se no altar e então deverá receber em teu ventre a essência do barão. Somente com a sua união carnal com ele é que eu poderei despertar seu verdadeiro espírito.
– Isto que me exige é demais! Eu ainda não conheci homem e ainda não estou inteiramente crescida! Além do que o barão é praticamente meu tio!
– Quantas bobagens te ensinaram! Qual a idade que você possui? Esta contada e definida pelos homens, ou a que efetivamente tens desde sua geração na formação do mundo? Com qual medida esquadrinha teu corpo, por aquela definida por homens, ou pela tua própria? E mesmo que nos atenhamos à tua forma carnal presente, de maneira alguma o toque íntimo é desconhecido. Pouco ou quase nada difere o que faz um homem com uma mulher do que uma mulher faz com uma mulher, pois tudo é o mesmo amor. Qual a sua linhagem? Esta, que pertence às estrelas, ou esta mortal que é intrincada? Ainda que este homem fosse teu parente por parte de sangue, nada os impede de tal ato e saiba que a família é a melhor escola para tal jogo. Acalme seu coração, ele não tem parentesco sanguíneo e eu não estou te pedindo para que tenha filhos com ele. Depois de você despertar, achará engraçado toda essa conversa, irá lutar e vencer. Após sua vitória, seu espírito se acalmará e isso será esquecido. Eles esquecerão.
Righel estava em sua tenda de batalha, a milhas de distância do campo de batalha e observava, com imenso prazer, os homens se matando para realizar os seus sonhos. Ele levantou uma taça de vinho para celebrar a estupidez humana, quando um enorme clarão, seguido de um estrondo e calor, apareceu em algum ponto da carnificina. Righel custou a acreditar em seus olhos, mas de alguma forma, surgindo do meio da fumaça da batalha, eis que ele via a Estrela da Manhã pairando acima das árvores. As mãos, pés e o tronco de Righel tremeram de medo. Ele tentou achar algum padre para exorcizar tal aparição, mas estes tinham fugido, provavelmente correndo na mesma direção que o Deus Tirano corria. Righel quis rezar alguma coisa ensinada pela Igreja, mas esta certamente estava tremendo diante da aparição do que ela chama de Lúcifer, mas que foi chamada de Ishtar pelos Acadianos, de Vênus pelos Romanos e de Afrodite pelos Gregos.
– Escriba? Ainda está vivo?
– Sim, princesa.
– Eu te peço que use sua arte para esconder o que você testemunhou.
– Pela primeira vez meu ofício é respeitado. Para que o que aconteceu não se perca, para as futuras gerações, permita-me, majestade, contar com sutileza de nossa aventura.
– Faça-o com cautela. Eu recuperei minha forma humana e carnal, então não convém que meus futuros súditos saibam sobre minha verdadeira natureza.
– Saberei usar as palavras adequadas, princesa.
– Quanto a você, barão, eu te peço que não tome esse evento recente em mérito para propor minha mão em casamento.
– Isto nunca passou pela minha mente, princesa. No entanto eu te peço que me permita escoltá-la em seu retorno ao teu palácio. Com alguma sorte, nós poderemos reencontrar com nossas amigas.
– Eu bem sei que quer ver novamente minha mãe, mas isto é com ela e meu senhor. Minha preocupação no momento é com meu senhor e minha Dolores.
– O dragão… sumiu. Quem seria ela?
– Eu tenho um palpite de que este dragão é o espírito da natureza que tutela todo o reino de Gotardo. Meu senhor contou-me como seus avós descendem dos dragões, por isso que o estandarte de sua família e do reino tem um dragão.
– Ainda que eu tenha feito minha parte e ajudado nesta vitória, minha batalha está apenas começando. Eu ainda tenho que conquistar Dolores, se é que ela vai me dar alguma chance. Do contrário, com sua permissão, princesa, eu vou partir de Gotardo em busca do dragão.
– Escriba, como você me auxiliou e ainda tenho um resquício de minha verdadeira natureza, eu te digo que há de encontrar o dragão dentro da sua e da minha Dolores. Fique conosco e talvez eu te ajude a descobrir o mistério.
– Ora, isso não é justo! O escriba está conhecendo mais mistérios, sendo novato no Caminho Antigo, do que eu mesmo pude desvendar em toda minha vida!
– Do que reclama, barão? Acaso saborear de minha carne não foi suficiente? Você mergulhou no mais profundo mistério e ainda quer mais?
– Desculpe, princesa. Eu quis apenas provocar o escriba.
– E eu apenas quis te provocar. Vamos, meninos, pois temos muito ainda a fazer.
O que pode ser dito depois da manifestação divina é que Gotardo manteve-se livre e independente. Righel teve o fim que todo traidor merece. Savério providenciou para que a abadia de Hildegarda mudasse em definitivo para seu reino. Merovas visitou Lúcia mais vezes. A Igreja continuou seu projeto de expansão e domínio total da Europa. Lúcia deu ao escriba seu dia de triunfo e este passou o resto de seus dias enrolado com Dolores. O Senhor da Floresta continua escondido em seu santuário. O dragão misterioso está andando por aí.
Cenas de alegria incomensurável podem ser descritas, como se o escriba tivesse um final feliz com Dolores, mas não há um final feliz e sim um começo feliz. Eu poderia incluir algumas cenas eróticas entre o barão e a princesa, ou entre o rei e a abadessa. Muitos maiores e melhores que eu o fizeram com mais propriedade.
Ora, tudo que vive tem seu fim, isso inclui um texto. Eu contei, como se fosse um segredo, uma confissão. O leitor empresta, por conta e risco próprio, credibilidade a este escriba. Como disse o sábio, um bom escriba [ou, como dizem, escritor] é um bom mentiroso. Pacientemente expus minha arenga e o leitor é meu cúmplice. Mas verdade seja dita, eu invento, troco e inverto os personagens, os nomes e os lugares.
Não há desfecho no que não há fecho nem trava. Eu gostaria que minhas histórias fossem mais verídicas, mas muita coisa deve ser ocultada. Não há graça nem maravilhamento algum em falar que Constantino e Teodósio impuseram Cristo a todo mundo ocidental. Nada podemos fazer senão lamentar que a Europa foi cristianizada pela força e pela espada. Nada podemos alegar senão chorar, pois o conhecimento das coisas passou severa restrição até a Renascença. Desde que César cedeu a Cristo, a Europa conheceu mais guerras, desavenças, pragas e miséria do que em todo seu passado pagão. Por ouro, título, nobreza, armas e exércitos, reis ajoelharam-se para a Igreja.
Felizmente não há mal que perdure e a Europa foi reconstruindo e recuperando suas raízes e origens. Aos poucos, por forças além da compreensão, a Igreja foi perdendo seu poder ditatorial e a humanidade pode procurar outros caminhos e redescobrir sua liberdade. Diante do futuro que se descortina, declamar qual foi o destino do escriba com Dolores torna-se irrelevante. Falar que Lúcia nunca existiu sequer faz cócegas. Falar que Merovas é o mítico Meroveu, que deu origem a Carlos Magno e ao Império dos Francos, fica sem sentido. Falar que a Deusa que reina na Europa disfarçou-se de Santa Maria é heresia desnecessária. Falar que o Senhor da Floresta foi difamado e distorcido para refletir as pavorosas imaginações dos cristãos sobre o Diabo é ridículo.
A Igreja somente tem poder porque ainda tem gente que assim deseja. Os governos de todos os países são o que são por reflexo de seus cidadãos. Crendo ou descrendo, somos pessoas, limitadas e falíveis. Então o escriba não insere seu desfecho, deixa seu caderno em branco, para que cada ser humano escreva como quer sua vida, de hoje em diante.