quinta-feira, 14 de julho de 2016

Heterogênese III

Lilith juntou-se a esses seres e junto com eles iniciou um povoado de grande sabedoria e riqueza, cultivada no espírito crítico.

Novamente, o solitário Adão chamou por seu Pai no dia seguinte, pois não podia esquecer Lilith. Pedia ao seu Pai que ela voltasse, pois a desejava muito. O Espírito das Luzes sabia que não conseguiria, mesmo que tentasse, ordenar para que Lilith voltasse, sem o consentimento dela ou do Pai dela, o Espírito das Trevas, pois a Luz não pode andar em seus próprios passos, necessita da sombra, para caminhar e permitir o descanso dos seres.

Por isso, fez seu filho dormir e tirando uma parte da costela, fez uma outra mulher, que por vir do ventre do homem, seria submissa a este, já que a cabeça ergue-se acima do ventre e lhe ordena, cabendo ao ventre, alimentar e servir de apoio à cabeça. Por estas características, o Espírito das Luzes a chamou de Eva e a apresentou a Adão como sua posse, a mulher que lhe geraria filhos e obedeceria humildemente seu marido, como também daria conta sozinha da evolução e maturidade dos filhos de Adão. Isso era agradável para ele, mais ainda que estar com Lilith, podia fazer de Eva tudo aquilo que Lilith não era e ter igual satisfação ao ter com Eva no leito. Tanto, que Lilith não seria mais que uma sombra de Eva na cabeça de Adão, algo que seria amargamente lembrado, a falsidade deste conceito, nas noites longas de lua nova e nos momentos em que, o sol ou a lua, for oculto pelo manto da terra.

Chegado o momento em que todos têm seu amadurecimento pleno e suas consequentes mudanças, Eva nos desvarios que uma grávida é cometida, andou pelo Éden de Adão, até um fruto lhe despertar o desejo. Sem dar conta que o fruto era feito de Luz, comeu um pedaço e levou outro a Adão, que ocupado demais para dar atenção a sua esposa, instintivamente levou o fruto até a boca e comeu-o, sentindo um gosto familiar. Foi então que percebeu ter comido do fruto de Luz, da árvore que o Espírito das Luzes proibira a ambos de comer. Colérico, disse à sua mulher:

-Não sabes o que fez, Eva? Fez-me comer da carne de meu próprio Pai! Acaso somos deuses para comer a Luz como fruto e alimentarmo-nos dela? Escondemo-nos rapidamente, para que não acabemos sendo devorados por ela!

Mas como uma aranha sente na mais fina teia a passagem do vento, o Espírito das Luzes sentiu e já viu tudo. Fez um soldado seu expulsar Adão e Eva do Éden e que agora tirassem da terra, o sustento das frágeis vidas deles. Passariam muitos anos em gerações, até que seus herdeiros pudessem corrigir o fardo do erro ao qual Adão e Eva condenaram seus filhos.

Já que o Império de Adão estava fadado ao engano, ao erro, muito opostamente seriam os herdeiros que viriam de Lilith e das Trevas.
Ao chegar o dia da sua maturidade plena, seu Pai, o Espírito das Trevas, foi conversar com sua filha, Lilith. Encontrou-a cercada de amigos, mas nenhum deles tomou a mão ainda da bela Lilith, não houve ainda um que transpassasse seus umbrais. Como todo pai preocupado com uma filha sem pretendente, o Espírito das Trevas adensou-se em um formato e, sentado, dirigiu estas palavras a Lilith:

Hoje devia ser o dia da sua glorificação, mas nem alegre parece estar. Ainda não sabe que, como mulher, por mais perfeita, ainda tem falhas e lacunas que só podem ser preenchidas por um homem? Como espera amadurecer, sem que te cedas durante uma noite inteira, a partilha do teu leito ao companheiro? Vá, que seus convidados a esperam e que tua sabedoria possa lhe habilitar encontrar, aquele que tanto precisa seu corpo e alma, entre eles.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

A história de Ishtar

Houve uma época onde passado, presente e futuro eram uma coisa só. Existência e não-existência, espaço e vazio, tempo e eternidade, vida e morte, rodopiavam em um torvelinho. Era o Caos. Dentro do Caos, diversos seres e entidades estavam mergulhados em um sono lúcido, dispersos, não conseguiam ter consciência. Então houve um despertar, um Deus e uma Deusa, os mais antigos, os primeiros Filhos do Caos, perceberam a si mesmos, perceberam um ao outro, perceberam onde estavam e dentro do indistinto Caos, se amaram e deste Amor, surgiu a Ordem, o Caos encontrou sossego, paz e quietude.
Os Filhos das Estrelas vagavam pelo Universo criado, fugitivos ou expulsos do Caos, procurando onde fixar residência, procurando um lugar firme para habitar. Nas bordas do Cosmo que se expandia, encontraram Gaia, uma Deusa filha dos Primeiros e no mundo que é sua manifestação, os Filhos das Estrelas levantaram acampamento, por sobre o corpo cheio de terra e água, ali pousaram. O rei deles, o Grande Anu, confiou a seu filho, Enki, para separar a água da terra, para construírem suas casas, para plantarem suas sementes, para criarem seus gados, para espalharem sua descendência.
A Cidade dos Deuses surgiu gloriosa, por sobre as águas de Gaia, vencendo a fúria do grande mar, Enki estendeu a terra firme, um solo vermelho fértil, onde os Filhos das Estrelas puderam lançar suas sementes, criarem seu gado e terem seus filhos. Mas o grande mar tinha sua Deusa, filha tanto de Gaia quanto dos Primeiros e na guerra contra a Deusa-Serpente, morreu o Grande Anu. Ali teria o início da rivalidade entre os Filhos das Estrelas e os descendentes dos Primeiros.
Os Filhos das Estrelas prosperaram, com a técnica de Enki expandiram suas terras e por uma extensa área, seus lares se espalharam pelo corpo de Gaia. Cidades surgiram, reinos surgiram, a coroa de Anu foi dividida entre seus filhos e filhas, a descendência multiplicou como a riqueza que do solo era extraída. De todas, a mais procurada e cobiçada tinha que ser tirada do fundo das entranhas de Gaia, um material brilhante, macio e moldável, de grande utilidade para dar poder aos seus artifícios, os Deuses queriam cada vez mais aureum.
Cobiça, inveja e ciúme, colocaram reino contra reino, Deus contra Deus, a inimizade e a guerra aconteceu entre os Deuses. Quem estava no trono do Submundo controlava o aureum, o Deus Ferreiro, o Deus Desfigurado, era chamado também de Deus da Morte. Os reinos dependiam do aureum que ele extraía, os Deuses tinham que negociar com ele e seu preço era pesado e cruel. Pelo fornecimento de aureum, os reinos mandavam ao Submundo seus filhos, para trabalharem nas minas, nas entranhas de Gaia. Para conquistar o apoio e a amizade do Deus Coxo, os reinos mandavam ao Submundo suas filhas, para deitarem-se no leito, para receberem a semente dele.
Antes desprezado e rejeitado entre seus próprios irmãos e irmãs, humilhado pelos Filhos das Estrelas, pela mágoa, rancor e vingança, o Deus Sujo tornou-se um déspota, um tirano, um usurpador que exigia oferendas diárias e tomava tudo aquilo que seu coração desejasse. Ele passeava pelos reinos, transitava por toda a extensão de Gaia, como se fosse o próprio Grande Anu, escolhia e levava os jovens, homens e mulheres, para o Submundo, trazendo tristeza e choro a muitos pais. Foi assim que um dia o Sombrio encontrou Inanna e por ela encantou-se. Inanna, das Filhas das Estrelas, a mais bela, esfuziante, abundante. Todos os Deuses a desejaram e ela não negava amor a quem a procurava, mas ao Canhoto ela tentou recusar, sem êxito, foi agarrada, presa, levada e como cativa viveu no Submundo, até conseguir fugir, levando consigo o fruto da união.
Em uma região longe, bem distante da Cidade dos Deuses, de seus reinos e guerras, Inanna viveu no exílio e ali, entre feras e entre os Filhos de Gaia, nasceu Ishtar. Inanna tinha uma grande beleza, mas era física, Ishtar nasceu com beleza em plenitude. Inanna tinha um grande amor, mas este também era físico, Ishtar era o Amor encarnado. As feras e entidades ali presentes enlouqueceram de amor, assim que Ishtar saiu do ventre de Inanna e soltou seu primeiro fôlego no mundo de Gaia. Outras ficaram cegas diante de tanto esplendor, seu brilho rivalizava com o brilho do sol. Quando Ishtar abriu os olhos, ela viu o íntimo de todo ser vivente, todo o desejo e prazer que habitava em cada vida e sorriu por reconhecer seu reflexo. Quando Ishtar se levantou do solo, onde sua mãe a havia colocado no momento do parto, todos os seres viventes se ajoelharam, pois ali estava a Majestade encarnada. Quando Ishtar abriu seus lábios para dizer suas primeiras palavras, trovões se esconderam, o fogo se encolheu, a lua fugiu com seu rebanho de estrelas, o sol ficou encabulado e Gaia sentiu-se honrada por ser testemunha da encarnação da Sabedoria.
Ishtar cresceu, aumentou sua formosura, seu corpo manifestava abundante sensualidade, desde seus longos cabelos negros lisos, passando por seios perfeitos, nádegas perfeitas, pernas e coxas perfeitas, até seus olhos almiscarados, boca rubra e ventre quente. Inanna despertava o desejo nos Deuses por seus atributos, Ishtar era o Desejo, não havia um ser vivente, entidade ou Deus que não se perturbasse diante de Ishtar. Fascinados, apaixonados, loucos, criaturas e entidades de todas as regiões vinham sem cessar até a cabana de Inanna para prestar reverência a Ishtar. Não demorou para surgirem cidades e todo um reino. Não demorou para darem uma coroa e um trono a Ishtar. Não demorou para que até a Cidade dos Deuses e seus reinos dobrassem seus joelhos para Ishtar.
Para ficar com Ishtar por alguns minutos, os Deuses, tão orgulhosos, tão esnobes, a Ishtar nada recusavam, ofertavam sem reservas, a ela deram o poder e suas coroas. Alguns acharam que podiam usar Ishtar como se fosse uma criança ingênua, usá-la como usaram Inanna e depois descartá-la. Muitos provaram de seu leito, mas nenhum poderia lhe abrir seus mistérios mais íntimos. Quem provava de seu mel tornava-se prisioneiro e teria que beber do fel. Mesmo o temido Deus Coxo rendeu-se a Ishtar e em seu leito faleceu. Em estranhas eras, mesmo o Deus da Morte morre. No Submundo reinou então a irmã mais velha de Ishtar, Ereshkigal, que jurou vingar seu esposo.
Ishtar tinha todo o poder, toda a riqueza, mas era infeliz porque não tinha Deus que pudesse equiparar a ela. Apesar de muitos terem conhecido seu leito, nenhum pode penetrar seu mais íntimo mistério e Ishtar pedia aos Deuses Antigos, que ela pudesse encontrar um Deus que pudesse arar sua terra. Sua irmã mais velha, Ereshkigal, soube disso e com um disfarce de simples serviçal, segredou a Ishtar que ela somente conseguiria um companheiro se fosse procurar entre os Filhos de Gaia. Ali o boato é de que havia um Deus Touro, descendente legítimo dos Primeiros, era o único Deus Guerreiro que teria a força e a lança para semear o solo de Ishtar.
Foi diante das terras de Indo, o Deus do Rio Leste, que Ishtar encontrou o Deus Touro, Dummuzi. Aquela que era o Amor tremeu, seus lábios umedeceram, seus olhos brilhavam, suas pernas fraquejaram. Aquela que era o Desejo sentiu frio, seu coração palpitou, seus seios empinaram, sua flor desabrochou. Mas o Grande Guerreiro não se ajoelhou, as graças de Ishtar não o conquistaram, ele não moveu sua poderosa lança. Ishtar ficou desolado, como pode um Deus resistir a seus encantos? Ereshkigal disfarçada como serviçal deu a Ishtar um poderoso líquido que faria Dummuzi se apaixonar por Ishtar, mas que isto teria um custo. Ishtar serviu cerveja, o líquido dos Deuses, misturado com a poção, sem ter ouvido a advertência. Dummuzi então amou Ishtar, sua lança moveu e o solo de Ishtar abriu, sua semente preencheu e cobriu todo seu vaso. Passaram dias, noites, semanas, meses, debaixo do sol e da lua Dumuzzi e Ishtar não cessavam de celebrar a união.
Mas um dia Ishtar acordou solitária, não encontrou Dummuzi e Ereshkigal, disfarçada como serviçal, disse que Dummuzi morreu. Dummuzi morreu por ter bebido um veneno servido com cerveja para despertar o amor nele. Ishtar enlouqueceu, seu brilho se apagou e sua face escura transbordou. Filha do Deus Coxo, Ishtar exalava fúria e ódio com a mesma força que emanava amor. Toda sua corte fugiu, temendo pela vida, todos seus súditos fugiram, temendo por seus rebentos e Ishtar ficou terrivelmente sozinha. Ela entrou em seus aposentos, abriu uma porta secreta, entrou em sua sala oculta particular e vestiu-se com um elmo, com cota de malha, com armadura, com ombreiras, com braceletes, com caneleiras, com botas, com espada e lança. Ishtar declarou guerra a todos os Filhos das Estrelas por causa de Dummuzi.
Quando Dummuzi foi dado por morto, Ishtar enlouqueceu, seus servos abandonaram seu palácio, seu reino ficou vazio e tornou-se deserto. Apenas Ishtar habitava o palácio vazio e, quando ela saiu vestindo seu traje de guerra, os Filhos das Estrelas esqueceram do tempo de glória e poder de Ishtar. Riram em seus palácios, olhavam para Ishtar como se fosse uma criança com roupas de adultos.
Alguns soldados foram enviados para espantar Ishtar quando ela aproximou-se das cidades mais periféricas. Um destacamento de cem soldados com algumas espadas, lanças e flechas podem lidar com uma pequena rebeldia, pensavam. Com um único aceno de sua mão, Ishtar reduziu todos a uma polpa sanguinolenta. As cidades periféricas foram invadidas, destruídas e queimadas até seus alicerces. Não houve sobreviventes. As cidades seguintes, maiores, mais ricas, mais próximas das capitais, entraram em pânico. Generais levantaram suas bandeiras, deslocaram várias colunas de soldados, cavaleiros, lanceiros, arqueiros e diversas máquinas de guerra. Exércitos enormes lançaram seu ataque contra Ishtar, sem êxito, Ishtar os sacudia como se fossem moscas e como insetos caíam mortos pelo solo e Ishtar caminhou por sobre o campo de batalha com sangue até seus tornozelos. Deuses pegaram suas armaduras, lanças e espadas, pelas mãos de Ishtar, pelas artes de Ishtar, pelas armas de Ishtar, tombaram todos. Então os Filhos das Estrelas temeram por Ishtar, recordaram de seu poder e glória, mas não iriam detê-la com doces palavras e promessas vazias.
Disfarçado de camponês, Enki levou até Ishtar a notícia que Dummuzi não morrera, mas que adormecera, foi sequestrado e levado cativo até o Submundo. Aliviada e desconfiada, Ishtar suspendeu sua fúria, tomou o mapa dos reinos do camponês e foi até a entrada do Submundo, uma fortaleza onde, para entrar, é necessário passar por sete portões e a única forma de passar por cada portão é deixar uma oferenda. Deixou primeiro sua coroa, depois os brincos, depois os colares, depois o peitoral, depois o cinto, depois as pulseiras e por fim tirou seu vestido. Aquela que era a grande e poderosa Ishtar, aquela que era o Amor encarnado, estava diante do trono do Submundo como todo ser vivente entra no Mundo dos Mortos, sem honra, sem glória, sem nome, sem vida.
Ishtar olhava em sua volta e via apenas sombras e vultos, o Submundo era um lugar onde não tinha luz e Ishtar teve que se despir até de seu fulgurante semblante. Pelas sete portas do Mundo dos Mortos, Ishtar passou, sentiu frio, sentiu calor, sentiu sede, sentiu fome e agora sentia medo por não saber quem iria encontrar no trono sombrio. Uma voz suave, feminina, a chamou para mais próximo do trono e Ishtar viu uma Deusa muito parecida com ela. Debaixo de uma mortalha, Ishtar reconheceu sua irmã Ereshkigal.
- Então mesmo a poderosa Ishtar se curva diante de Ereshkigal? Aquela cujos atributos encantaram tantos Deuses, agora se rende indefesa, pois a mim Ishtar não tem mistério nem formosura? Aquela que recebeu as coroas dos Filhos das Estrelas agora presta reverência à minha coroa? Aqui não terá privilégio nem tratamento especial, Ishtar.
- E nem te peço, amada irmã. Vede, eu tenho o mesmo sangue que o seu, eu tenho a mesma carne que a sua, nós temos a mesma descendência, mas é você a irmã mais velha, você é mais sábia, forte e bela. O que a grande Ereshkigal deseja de Ishtar?
- Então a pequena Ishtar reconhece sua irmã, reconhece seu sangue, sua carne, sua família. Por que então Ishtar não veio a mim quando foi louvada pelos Filhos das Estrelas? Por que Ishtar saiu de seu palácio e veio ao Submundo senão para buscar Dummuzi?
- Eu nasci no exílio, ali onde os Filhos das Estrelas abandonaram nossa mãe. Minhas vitórias também são tua, irmã, minha glória também é tua. Todos os dias eu perguntava a Inanna, quando eu poderia rever meu pai, minhas irmãs e irmãos, mas a tristeza selava seus lábios. Eu não vou enganar minha irmã, eu vim a teu meio por causa de Dummuzi, por aquele que eu amo eu fiz guerra aos Filhos das Estrelas. Mas vede, eis que se meu reino, honra, glória e vitória também são teus, vamos compartilhar o leito com Dummuzi.