Autor: Roberto Ponciano.
Trump, que teve votação massiva no chamado "cotton belt – os estados mais religiosos, fundamentalistas e conservadores nos Estados Unidos – declarou ontem que pretende transformar os Estados Unidos num país fundamentalmente religioso (eu diria que fundamentalista também). Trump é o conservador clássico, de vida desleixada e pervertida, com escândalos sexuais com prostitutas e atrizes pornôs, usa de motes conservadores contra mulheres, contra o movimento LGBTQI+, contra as liberdades civis e sexuais, para cativar corações e mentes de seu eleitorado, aquela mistura de proletariado empobrecido, lumpesinato e classe média carola e conservadora, que tem em sua segunda pele o recalque e o ressentimento, de uma era de ouro mitológica pessoal de seus antecessores, que, na maioria das vezes, de fato, nunca existiu. E digo na maioria das vezes, porque antes do avanço da Globalização e do neoliberalismo, um capitalismo de Estado de Bem Estar Social, criado para competir com as conquistas do Socialismo Real, garantiu a setores do proletariado e das classes médias europeia e estadunidense níveis de vida e de consumo não alcançáveis aos reles mortais dos países periféricos.
Trump usa esta retórica, deste “tempo de ouro do capitalismo”, para como o flautista de Hamelin, usar deste encantamento mórbido, histeria e hipnose coletiva, para voltar atrás à roda da história e, sem precisar espremer os bilionários e os muito ricos, prometer algo que não pode cumprir, retornar à prosperidade a estes setores que perderam emprego e status. O Estado de Bem Estar Social só foi possível porque o capitalismo estava espremido e ameaçado pelos Estados Socialistas, 1/3 da humanidade vivia em países socialistas – a crítica ao tipo e a condução de socialismo não é o objeto deste texto – e o capitalismo sabia que precisava perder alguns aneis para que os capitalistas não terem seus dedos amputados. Num capitalismo cuja produção localizava-se dentro de um mercado nacional, através de uma receita keynesiana de altos impostos sobre os mais ricos, foi possível ao Estado fazer redistribuição de riquezas, dando uma prosperidade inédita às camadas mais pobres da população.
Este processo não funciona sob o signo do neoliberalismo, de extrema concentração de riquezas e intangibilidade dos lucros das Empresas Transnacionais e dos bilionários. De um lado não é possível desmontar as CGVs – Cadeias Globais de Valor – das empresas transnacionais, muito menos o mercado mundial conectado a ela, de outro lado é impossível fazer redistribuição de riqueza a partir do nada. América Great Again, além da parca possibilidade de se conseguir reconcentrar todo o parque industrial perdido no próprio território (pela lógica de barateamento de insumo e mão de obra das ETNs que permeia seus negócios e seus lucros), não é factível por que o que fez a América próspera, a taxação dos mais ricos em beneplácito dos mais pobres não está na pauta nem no horizonte de Trump. Os pobres continuarão pobres, os muito ricos, cada vez mais ricos. É uma plutocracia que não tem um projeto global de hegemonia neste momento, já que sequer pode controlar a dinâmica das suas próprias empresas transnacionais.
Mas o que isto tem que ver com “fundamentalismo religioso”? Tudo, absolutamente tudo. Sou da linha daqueles marxistas que são ortodoxos na economia, mas não na análise de epifenômenos como o nazifascismo. Não é possível entender o fascismo e o nazismo olhando só para a economia. Olhando para Marx, este já ensinava que na dialética, a política é economia e a economia é política. E se não houvesse esta passagem da quantidade à qualidade, qualquer revolução seria impossível, porque, no fundo, as revoluções são quebras políticas do ordenamento econômico anterior, e depende tanto mais de decisões e fatores subjetivos que objetivos. Não é possível entender o nazifascismo sem olharmos para as contribuições dos fenômenos de histeria de massas que começaram a ser compreendidos a partir de Freud, Adorno, Horkheimer, entre outros, dos mecanismos de exploração do chamado inconsciente coletivo (e não estou falando de nenhuma espiritualidade religiosa aqui, mas da manipulação dos sentimentos das pessoas) para fins de alienação, entorpecimento e condução das coletividades.
Por isto, o capitalismo, hoje em dia, entendeu muito melhor que nós, que devemos travar uma batalha por corações e mentes, e não só na condução da economia. No Brasil, temos cada vez mais reduzido nossa luta para ganhar as eleições e conduzir processos de desenvolvimentismo – dentro das reduzidas condições do capitalismo atual – e redistribuição de renda, entre eleições, e não estamos mais disputando ideologicamente as massas.
Nesta forma canhestra de “Real Politik”, pintada com o nome mal acabado de “pragmatismo”, devemos nos aproximar dos setores mais conservadores e disputar o voto evangélico, sem disputar ideologicamente os rumos da Nação Brasileira.
Esta forma de ver a luta política é míope desde o nascimento, e eu vejo as pessoas fazendo a apologia deste forma manca de fazer política, exaltando o papel das igrejas neopentecostais como espaços de “acolhimento” e “pertencimento”, abstraindo do projeto político geral de construção de uma política conservadora e de disputa de poder, contra o Estado Laico e até contra avanços civilizatórios em todos os setores, seja com relação às liberdades sexuais, a educação sexual de crianças e adolescentes – que ao contrário do que pregam os pastores conservadores, é a melhor forma de se combater gravidez precoce, DSTIs, pedofilia –, reconhecimento de direitos iguais para diversidades sexuais. E não é só isto, tem gente olhando as árvores e não enxergando a floresta, isto está engajado num processo de poder conservador e protofascista – Malafaia hoje não é pastor, é um líder protofascista –, que inclusive tem laços históricos com o cotton belt dos EUA, e que tem como objeto criar uma espécie de “segunda natureza” alienada, criando zumbis que acreditam numa realidade paralela, e, para os quais, um ser desprezível, maléfico, reacionário e cruel como Bolsonaro pode ser um Messias salvador de um projeto caótico de Estado que tem a “Igreja” como centro.
Não entender que o processo que está sendo jogado não é uma luta religiosa, mas que tem uma centralidade política e ideológica na forma de ver e entender o mundo, e alienar-se do que foi o processo de avanço da humanidade. O Iluminismo na França, que nos deu a revolução jacobina e o primeiro esboço dos Direitos Humanos tinha como base a luta contra o Poder Conservador da Igreja Católica, consorte do Estado absolutista, e que dava suporte ideológico à exploração das empobrecidas massas francesas.
Um consórcio de igrejas que possuem em comum uma “teologia da prosperidade”, no qual se vende um pedaço do céu, numa ideologia que mistura fanatismo, magia de cura estelionatária, visão conservadora e reacionária do mundo, ódio a toda forma de cultura de esquerda, não pode ser vista apenas como um processo religioso. Nosso lugar não pode ser reduzido a “dialogar” de quatro em quatro anos com estas massas na busca desesperada por votos para que o Brasil não volte a cair nas mãos de um processo protofascista. É fato concreto que algumas igrejas viraram células protofascistas, que suas pregações são reacionárias e anti progressistas de forma militante, que estão muito pouco preocupadas com a vida espiritual dos seus membros, e estão só preocupadas com o próprio lucro e poder.
E o que foi feito nesta disputa de hegemonia? Em lugar de pensarmos em estratégia de contra-hegemônia contra a pauta conservadora vamos, a cada dia, cedendo mais espaços, cadeias de rádio e televisão, o aceite passivo de avanços contra conquistas do Estado laico, mendigando os votos de quatro em quatro anos.
Uma das maiores capotagens da esquerda, seja dos partidos comunistas, socialistas ou social-democratas, depois da queda da URSS, foi a perda de representatividade da classe operária. Houve um divórcio entre o partido parlamentar e o partido no movimento social. A lógica parlamentar e eleitoral fagocitou os anticorpos de representação popular do partido social e perverteu sua lógica. Hoje, boa parte da vida do movimento social e sindical também se burocratizou na lógica burocrática e na busca dos cargos estatais. Os partidos perdem a ligação com a vida real, no mesmo momento em que as igrejas neofundamentalistas criam bases em cada rua, criando uma segunda pele nas pessoas, neste fenômeno que nos acomodamos em chamar de pobre de direita. O pobre de direita não nasce pobre de direita, se não olharmos para as estruturas e processos – incluindo aí os exércitos de neofundamentalistas religiosos – que criam o chamado “pobre de direita”, vamos culpabilizar a vítimas pela própria alienação. E, o pior, não estamos criando nenhuma estrutura de disputa destas massas!
Os partidos de esquerda, todos, prescindiram de suas bases nos movimentos de bairros, de favelas, não conseguem mais criar movimentos políticos que dialoguem com a juventude e os pobres mais precarizados. Ho Chi Minh, líder espiritual da revolução vietnamita, quando viajou ao Brasil, trabalhou de garçom e frequentou os puteiros do Mangue no Rio de Janeiro. Tinha como lema, comer com o povo, andar com o povo, dormir com o povo. Os partidos de esquerda atuam numa lógica eleitoral e de não fazer a disputa ideológica, e veem hoje o povo ou como o setor a ser beneficiado com políticas públicas – o que mantém alguma margem de manobra de votos para que não desapareçam de vez – ou como espaço meramente eleitoral a ser disputado de 4 em 4 ou de 2 em 2 anos.
O PED do PT é o maior exemplo disto. Visto como o maior processo eleitoral de um partido na América Latina é uma fábula em que a única coisa que está sendo disputada é a máquina, mas no qual não se discute em nada, não se discute qual a relação cada vez mais perdida entre o partido e sua massa eleitoral, que votou muitas vezes de forma legítima e fidelizada ao partido, mas que não tem nenhuma vida orgânica ou identidade com um partido que cada vez menos milita na rua – antes que pense que sou antipetista, sou filiado e militante do PT.
Precisamos voltar a entender que se não tivermos localização geográfica, bases populares, espaços de diálogo e políticas para inserção das massas nos partidos de esquerda, estamos sendo derrotados, a cada dia, na disputa por corações e mentes, mesmo que ganhemos a eleição.
Precisamos voltar a repensar projetos coletivos de cultura, revolucionários e de esquerda, que dialoguem com os jovens. Os partidos de esquerda tem que voltam a defender filosoficamente a laicidade e tem que voltar a discutir massivamente ciência, filosofia, cultura e literatura, como acontecia, mesmos nos processos revolucionários conduzidos por massas famintas e sem acesso à cultura, mas cujos partidos tinham clareza filosófica de saber que conduziam para além de uma luta político-econômica, uma luta filosófica pelo progresso da humanidade.
Assim foram os jacobinos, assim foram os bolcheviques e todos os revolucionários vitoriosos no mundo. Não é possível se calar diante do fundamentalismo religioso e usar da falácia do diálogo para aceitar pautas reacionárias, de ataques aos direitos civis e de desconstrução do Estado Laico. Precisamos de algo além de um partido eleitoral, precisamos entender que partido é parte do pensamento da sociedade, que corações e mentes se disputam no território, todos os dias e que precisamos mostrar de maneira clara e aberta nossas ideias.
Menos igrejas, mais universidades, mais cinemas, mais teatros, mais espaços de culturas para os pobres – há um apartheid cultural no povo brasileiro, que não tem acesso a espaços culturais. Devemos combater o Conto da Aia brasileiro e o evengeliquistão, para que o Brasil continue um Estado laico e para que o fundamentalismo e o fanatismo não avancem nem mais um centímetro.
Fonte: https://www.brasil247.com/blog/por-um-novo-iluminismo