quarta-feira, 25 de março de 2015

Socorro, prof. Pasquale!

Como se não bastasse ter que aturar a aceitação do esdrúxulo “presidenta”, um neologismo que não tem qualquer embasamento na ortografia ou na gramática, eu ainda tenho que aturar comentários de gente que mal terminou o segundo grau, ofendido [ou com inveja] por eu ter grau superior.

Realmente, não é fácil ser escritor em um país semialfabetizado. Tudo fica mais difícil por eu ser pagão. A falta de estudo acadêmico na cadeira de história, etnologia, antropologia e psicologia por grande parte da comunidade pagã brasileira fornece um rico espaço para farsantes, estelionatários e gurus paraguaios.

Mas meu caro dileto e eventual leitor sabe que eu vivo uma relação de amor e ódio com a comunidade pagã brasileira e suas celebridades. E eu tenho que manter a minha péssima reputação. Meu serviço é para os Deuses, eu não procuro o aplauso do público.

Aquilo que é interessante deve ser divulgado. Eu citei neste blog Claudiney Prieto e Mavesper Cerydwen, quando estes escreveram textos que endossam a Tradição. Mas mesmo diante de sacerdotisas americanas eu tenho que exercer minha verve e criticar aquilo que destoa da Tradição.

Assi sendo, eu cheguei, graças ao oráculo virtual [Google], ao blog Polissemizando onde Mavesper publica o texto “Por Que Prefiro a Grafia Wiccaniano”.

Eu cito alguns trechos:

O adjetivo aplicado a quem pratica a religião chamada Wicca, já causou muita controvérsia nos meios pagãos do Brasil. Trata-se de escolher a versão portuguesa melhor para a palavra da língua inglesa “wiccan”.

Há mais de vinte anos, quando começaram a ser vertidos para o português livros de Wicca, cada tradutor optou por diversas formas diferentes. Alguns traduziam o termo simplesmente por “bruxos” ou “feiticeiros”, com a desvantagem de não estarem usando um termo que identificasse especificamente os praticantes de wicca. Outros, preferiram manter a grafia wicca tanto para designar a religião, quanto para o adjetivo referente aos adeptos, o que era incongruente.

A tradução do livro de Gerina Dunwich usou a palavra “wiccaniano”, em 1994. Mesmo antes nos meios pagãos brasileiros essa palavra era largamente utilizada para designar os praticantes de wicca. Em 1999, ao traduzir outras obras, anos depois, o tradutor Claudio Crow Quintino propôs a adoção de um neologismo: criou a palavra “wiccano”.

Perguntamos: o que faz uma língua é seu povo, os milhares de pessoas que sempre usaram a expressão “Wiccaniano” nos meios pagãos, ou a decisão isolada de um tradutor?

Cremos que a resposta é óbvia, mas, ao ouvir a falácia de que seria um erro de português, muita gente está, agora sim, sendo induzida a erro. Wiccano é uma grafia possível, mas sem uso anterior que a justifique. Por que acreditar que é “mais certa”? Ou, pior ainda, que é “a única” certa?

Usemos como exemplo a palavra “football”, originariamente inglesa. Quando o jogo veio ao Brasil se tornou “futebol”. Mas porque não se tornou “futibol”,”futeboal”, futebal” ou futibóu’???? Simplesmente porque o costume determinou a grafia.

O tradutor defende que tudo se trata de comparar a palavra wiccan, com a palavra american. O primeiro “furo” em sua teoria é comparar uma palavra que é gentílico (relativa a naturalidade ou nacionalidade das pessoas) com Wicca, que nada tem a ver com nacionalidades.

Fica muito fácil perceber que se o tradutor em questão tivesse escolhido qualquer outra palavra terminada em AN em inglês, sua decisão de tradução poderia ter sido diferente.

Na verdade, há regras linguísticas, sim, para fazermos a versão para o português, devemos nos basear na palavra como ela é escrita em português, e não em inglês, para obter a grafia do adjetivo. Devo basear-me em “américa” para gerar americano, e não “american”. Porque a palavra “América” tem a vogal temática oral, portanto a regra geral é o sufixo “ano ou ana” = americano. Já a palavra “Irã”, por exemplo, tem vogal nasal, o til se transforma em “n”(na verdade poucos sabem que o ~ é um “n” arcaico), e se é nasal forma “iraniano”.

Se fosse aplicável a Wicca a regra da vogal oral ou nasal, a vogal da palavra Wicca seria realmente oral e estaria certo o Sr. Crow Quintino. Porém, há um “pequeno detalhe”: a palavra wicca não é português! Ou seja, a regra é inaplicável.

Tomei a liberdade de consultar um mestre em linguística e expor a ele a questão.

A opção por “wiccano” parece ter sido baseada apenas em uma transcrição fonética, o que não permite aproximá-la do significado em inglês, “praticante”. Para se obter essa significação em Português, podemos usar os sufixos “-eiro”, “-ista”, “-dor”, “-or” que são indicadores de profissão, atividade”.

Ou seja: apresentada como “o único português correto” nada mais é do que um neologismo de discutível aplicação. E neologismo por neologismo, sem base outra que o uso e costume das pessoas, prefiro a forma mais antiga e consagrada: wiccaniano.

Não se criam normas na língua portuguesa por decisões isoladas de um tradutor. É preciso pensar e julgar antes de aceitar os carimbos prontos de “erro de português”.

Basta pensar que antes dele outro tradutor já havia consagrado a palavra “wiccaniano”, de há muito largamente utilizada por todos os praticantes de nossa religião. E que o que faz uma língua são as pessoas que a falam.

Enfim, a verdade é que a língua é dinâmica e muda constantemente. Por isso, creio que nem wiccaniano, nem wiccano devem ser vistos de forma a classificá-los de corretos ou incorretos. Ambos são formas possíveis de tradução da palavra “wiccan”, embora, pelo uso de mais de uma década, a palavra wiccaniano já se tenha consagrado de há muito. Sem mencionar que “wiccano” tem um som que não agrada os ouvidos.

Eu devo discordar de Mavesper, a aclamação popular não deve serfir de referência, senão teríamos que jogar fora todos os dicionários, livros de ortografia e gramática e abolir o ensino da língua portuguesa. Se aceitarmos a teoria da aclamação popular, funk, pagode e axé seriam as referências culturais ao invés dos clássicos da literatura portuguesa e brasileira.

No caso de traduções, não se aplica a regra de que a primeira ou mais antiga é a mais certa. Os casos listados pela Mavesper pertencem a outra categoria de palavra, sem nos esquecermos que a norma culta há tempos aceita palavras estrangeiras.

A Mavesper não diz quem é o especialista em linguística, o que denota a importância em mantermos a norma culta, não a aclamação popular. O dito especialista comete um erro grave, quando define a Wicca como prática, sendo que ela é uma religião. Eu concordo com a Mavesper que ambas as formas podem ser consideradas corretas, o que é uma contradição ao que ela mesma afirma e corrobora, o que não deixa de ser uma convenção arbitrária.

A regra é clara. A palavra “wiccan” é derivada de outra, portanto, temos que nos ater ao radical. Como falamos de religiões, a derivação toma por radical uma determinada palavra.

Chamamos de cristão os que professam o Cristianismo pela derivação de Cristo. Chamamos de judeu os que professam o Judaísmo pela derivação de Judá, uma das doze tribos de Israel, que acabou abrangendo todas. Chamamos de muçulmano os que professam o Islamismo pela derivação do verbo aslama [submetido a Deus, em árabe], que foi assimilado ao português do castelhano.

No caso, wiccan é derivado de Wicca que, segundo Gerald Gardner, era o nome do povo [grafado Wica] que professava uma forma familiar e particular de Culto de Bruxas em New Forest. Disto podemos concluir que o nome do povo é o nome da religião, sendo portanto mais correto falar Wica e não Wicca, o que certamente provocará mais polêmicas e controvérsias nessa Terra Tupiniquim.

Sendo o nome do povo, cabe o gentílico, e as regras:

1) serem subsequentes a um e apenas um radical;

2) que o gentílico seja derivado por sufixação;

3) que o radical primitivo seja o do território de ocupação do povo nomeado pelo gentílico, e não vice-versa (o território não deve, idealmente, ser o vocábulo derivado);

4) que esse radical primitivo seja uma lexia simples, e não composta ou complexa, ou que, se o for, o seu gentílico só use um de seus formativos;

5) que haja paradigmatização, isto é, que os sufixos para a formação de gentílicos sejam poucos, fechados e os que fugirem de tal paradigma engendrariam casos de supletivismo ou mesmo caso único.[Marcelo Caetano, professor, filólogo e tradutor]

Na língua portuguesa os sufixos de gentílicos mais comuns são “aco”, “ano”, “ão”, “asco”, “ático”, “eiro”, “enho”, “ês”, “eu”, “ino”, “ista”, “ita”, “eta”, “ol”, “ota”, “ense”. O sufixo “iano” é mais apropriado quando se refere à uma pessoa, não à uma origem, procedência e, no caso, a norma culta prescreve o sufixo “ano”, portanto “wiccan” = “wiccano”.

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