sábado, 16 de abril de 2011

Religioso vs Irreligioso

(...) o homem religioso assume um modo de existência específica no mundo, e, apesar do grande número de formas histórico-religiosas, este modo específico é sempre reconhecível. Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o homo religiosus acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e tornando-o real. Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana actualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja, participa da realidade. Os Deuses criaram o homem e o Mundo, os Heróis civilizadores acabaram a Criação, e a história de todas as obras divinas e semi-divinas está conservada nos mitos.
Reactualizando a história sagrada, imitando o comportamento divino, o homem instala-se e mantém-se junto dos Deuses, quer dizer, no real e no significativo.
É fácil ver tudo o que separa este modo de ser no mundo da existência de um homem a-religioso. Há antes de tudo o facto de que o homem a-religioso nega a transcendência, aceita a relatividade da "realidade", e chega até a duvidar do sentido da existência. As outras grandes culturas do passado também conheceram homens a-religiosos, e não é impossível que esses homens tenham existido até mesmo em níveis arcaicos de cultura, embora os documentos não os registem ainda. Mas foi só nas sociedades europeias modernas que o homem a-religioso se desenvolveu plenamente.  (...) O homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer-se completamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência à sua liberdade. O homem só se tornará ele próprio quando estiver radicalmente desmistificado. Só será verdadeiramente livre quando tiver matado o último Deus.
(...)
Mas o homem a-religioso descende do homo religiosus e, queira ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir das situações assumidas por seus antepassados. Em suma, é o resultado de um processo de dessacralização. Assim como a "Natureza" é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos obra de Deus, também o homem profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. Isto significa que o homem a-religioso se constitui por oposição ao seu predecessor, esforçando-se por se "esvaziar" de toda a religiosidade e de todo significado trans-humano. Reconhece-se a si próprio na medida em que se "liberta" e se "purifica" das "superstições" de seus antepassados. Por outras palavras, o homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos. Faça o que fizer, é um herdeiro. Não pode abolir definitivamente o seu passado, porque ele próprio é produto desse passado: é constituído por uma série de negações e recusas, mas continua ainda a ser assediado pelas realidades que recusou e negou. Para obter um mundo próprio, dessacralizou o mundo em que viviam os seus antepassados; mas, para chegar aí, foi obrigado a adoptar um comportamento oposto àquele que o precedia – e ele sente que este comportamento está sempre prestes a reactualizar-se, de uma forma ou outra, no mais profundo do seu ser.
Como já dissemos, o homem a-religioso EM estado puro é um fenómeno muito raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas. A maioria dos "sem religião" ainda se comporta religiosamente, embora não esteja consciente desse facto. Não se trata somente da massa das "superstições" ou dos "tabus" do homem moderno, que têm todos uma estrutura e uma origem mágico-religiosas. O homem moderno que se sente e se pretende a-religioso carrega ainda toda uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos degradados. Conforme mencionamos, os festejos que acompanham o Ano Novo ou a instalação numa casa nova apresentam, ainda que laicizada, a estrutura de um ritual de renovação. Constata-se o mesmo fenómeno por ocasião das festas e dos júbilos que acompanham um casamento ou o nascimento de uma criança, a obtenção de um novo emprego ou uma ascensão social etc..
Poder-se-ia escrever uma obra inteira sobre os mitos do homem moderno, sobre as mitologias camufladas nos espectáculos que ele prefere, nos livros que lê. O cinema, esta "fábrica de sonhos", retoma e utiliza inúmeros motivos míticos: a luta entre o Herói e o Monstro, os combates e as provas iniciáticas, as figuras e imagens exemplares Herói e o Monstro, os combates e as provas iniciáticas, as figuras e imagens exemplares (a "Donzela", o "Herói", a paisagem paradisíaca, o "Inferno" etc.). Até a leitura comporta uma função mitológica – não somente porque substitui a narração dos mitos nas sociedades arcaicas e a literatura oral, viva ainda nas comunidades rurais da Europa, mas sobretudo porque, graças à leitura, o homem moderno consegue obter uma "saída do Tempo" comparável à efectuada pelos mitos. Quer se "mate" o tempo com um romance policial, ou se penetre num universo temporal alheio representado por qualquer romance, a leitura projecta o homem moderno para fora de seu tempo pessoal e integra-o noutros ritmos, fazendo-o viver numa outra "história". (...)

In O Sagrado e o Profano, de Mircea Eliade.
Citado pelo Caturo, no Gladius.

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