Um exame franco mas judicioso do avanço e estabelecimento do Cristianismo pode ser considerado parte deveras essencial da história do Império Romano. Enquanto esse grande organismo era invadido pela violência sem freios ou minado pela lenta decadência, uma religião se foi brandamente insinuando na mente dos homens, crescendo em silêncio e na obscuridade.
Os minguados e suspeitos elementos de informação propiciados pela história eclesiástica raramente nos possibilitam desfazer a nuvem escura que pesa sobre os primórdios da Igreja. O teólogo pode bem se comprazer na deleitosa tarefa de descrever a religião descendo do céu revestida de sua pureza natural. Ao historiador compete um encargo mais melancólico. Cumpre-lhe descobrir a inevitável mistura de erro e corrupção por ela contraída numa longa residência sobre a terra, em meio a uma raça de seres débeis e degenerados.
Tivemos ocasião de descrever a harmonia religiosa do mundo antigo e a facilidade com que as nações mais diversas, e mesmo hostis, abraçavam, ou pelo menos respeitavam, as superstições umas das outras. Um só povo se recusou a partilhar desse intercambio comum da humanidade. Os Judeus, que durante as monarquias assíria e persa haviam por longo tempo na condição de seus mais desprezíveis escravos, emergiram da obscuridade sob os sucessores de Alexandre; e como se multiplicaram em grau surpreendente primeiro no Oriente, depois no Ocidente, logo suscitaram a curiosidade e o espanto de outras nações. A casmurra obstinação com que mantinham seus ritos peculiares e suas maneiras anti-sociais parecia assinalá-los como uma espécie diferente de homens, que audazmente professavam ou que mal escondiam sua implacável aversão ao resto da raça humana.
Em conformidade com as máximas de tolerância universal, os Romanos protegeram uma superstição que desprezavam. Mas a moderação dos conquistadores não foi o bastante para acalmar os zelosos preconceitos de seus súditos, os quais se alarmavam e escandalizavam com as insígnias de Paganismo que necessariamente se introduziam numa província romana. Seu apego à lei de Moisés igualava seu ódio pelas religiões estrangeiras.
Essa inflexível perseverança, que parecia tão odiosa ou tão ridícula ao mundo antigo, assume caráter ainda mais terrível pelo fato de a Providência ter se dignado a revelar-nos a misteriosa história do povo eleito.
As promessas divinas forma feitas originalmente a uma única familia. Quando a posteridade de Abraão se multiplicou, a deidade declarou-se o Deus privativo e, por assim dizer, nacional de Israel e, com mais zeloso dos cuidados, separou seu povo favorito do restante da humanidade. A conquista de Canaã se fez acompanhar de tantas circunstâncias que os Judeus foram deixados num estado de irreconciliável hostilidade para com todos seus vizinhos.
Nessa circunstâncias, o Cristianismo se oferecia ao mundo armado da força da lei mosaica e liberto do peso de suas cadeias. Uma dedicação exclusiva à verdade da religião e à unidade de Deus era cuidadosamente inculcada tanto no novo quanto no antigo sistema; e o que quer que fosse agora revelado à humanidade no tocante à natureza e aos desígnios do Ser Supremo era de molde a aumentar-lhe a reverência por essa misteriosa doutrina. Admitia-se a divina autoridade de Moisés e dos profetas, inclusive como a mais firme base da Cristandade. Desde o princípio do mundo, uma série ininterrupta de predições anunciara e preparara a tão esperada vinda do Messias, o qual, em conformidade com a grosseira compreensão dos Judeus, fora mais representado na figura de um rei e conquistador que na de um profeta, mártir e filho de Deus. Por via de seu sacrifício expiatório, os imperfeitos sacrifícios do templo foram a um só tempo consumados e abolidos. A lei cerimonial, que consistia apenas em símbolos e figuras, sucedeu um culto espiritual igualmente adaptado à todos os climas e à todas as condições humanas; a iniciação pelo sangue foi substituída pela inofensiva iniciação pela água. A promessa do favor divino, em vez de confinar-se facciosamente à posteridade de Abraão, estendeu-se universalmente ao liberto e ao escravo, ao grego e ao bárbaro, ao judeu e ao gentio. Todo privilégio que pudesse alçar o prosélito da terra ao céu, que lhe pudesse exaltar a devoção, assegurar-lhe a felicidade ou mesmo satisfazer-lhe aquele secreto orgulho que, a pretexto de devoção, se insinua no coração humano, ficava ainda reservado aos membros da Igreja; ao mesmo tempo permitia-se, ou até mesmo se pedia, a toda a humanidade que aceitasse a gloriosa distinção, oferecida não como mercê mas como uma obrigação. Tornou-se o mais sagrado dever do recém-convertido difundir entre seus amigos e parentes a benção inestimável que havia recebido e adverti-los de que uma recusa seria severamente punida como criminosa desobediência a vontade de uma deidade benevolente mas toda-poderosa.
Fonte: Gibbons, Edward. Declínio e Queda do Império Romano, pg 235-240. Ed. Companhia de Bolso.
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