sábado, 8 de agosto de 2009

Falsitatis Splendor

A aceitação preconcebida e utilização da literatura bíblica do Antigo Testamento como fonte confiável em seus relatos, com o propósito de descrever os aspectos sociais, políticos e econômicos do Israel na antiga a Palestina, é onde fica patente essa falência metodológica, em que os investigadores-arqueólogos foram incapazes de desenvolver uma perspectiva crítica, que integre os dados lingüístico-textuais e arqueológicos em uma síntese histórica depurada de elementos alheios ao âmbito da investigação arqueológico-histórica.

Foi nesse contexto que muitos arqueólogos, motivados pelo desejo cego de provar a confiabilidade da Bíblia de uma forma ou de outra – mas já as tomando como certas a a priori – começaram a interpretar os achados arqueológicos de acordo com os relatos da Bíblia e, desse modo, tiraram toda a autonomia da arqueologia ao submetê-la a literatura bíblica sagrada. Dessa forma, a Bíblia, que deveria ser confirmada pela arqueologia, se tornou o critério para se confirmar a arqueologia, sendo a primeira teria total a prioridade sobre a segunda.

São precisamente estes elementos, de grande peso até em nossos dias, como é a fé judaico-cristã e a influência sócio-cultural dos escritos bíblicos, além das necessidades político-territoriais do moderno estado do Israel, que condicionaram no público geral e em boa parte do mundo acadêmico, uma visão equivocada da história das sociedades do Oriente Próximo entre a tardia idade de Bronze e a finalização da Idade de Ferro (1550-540 a.C.).

Erros de interpretação, fraudes, equívocos e falta de compreensão se tornaram sinônimo de evidência arqueológica, e a cada nova descoberta arqueológica, mais a fé cristã era confirmada e alicerçada sobre falsos alicerces.

Essas supostas descobertas arqueológicas não apenas impulsionaram o crescimento da fé cristã; elas também impulsionaram a fé cristã em direção a validação de alguns dos pressupostos da ciência e assim a mudarem sua visão de mundo. Se antes, não importando o que a ciência dissesse, ela nunca poderia ter a última palavra, agora a ciência era a juíza da fé cristã e a confirmava de forma surpreendente. Ou seja, se antes a fé era, per si, o meio-termo que confirmava a si mesma, agora a ciência estava incumbida de julgar a fé e de dar o veredicto – pelo menos na medida em que essa mesma ciência confirmava a fé cristã.

O lado irônico nessa história é que a ciência só passou a ter valor no meio cristão moderno se ela estivesse confirmando os relatos e/ou a fé bíblica. Caso contrário, a ciência era mandada novamente para o mundo do “o-diabo-está-tentando-nos-enganar-mais-uma-vez”. O que não é de Deus, é, com certeza, do diabo. Não existe meio termo. Se antes se afirmava que “a razão é a maior inimiga da fé”, como dizia Martinho Lutero, agora a razão é a maior aliada da fé, como diz Wiliam Lane Craig, um filósofo cristão contemporâneo.

Os cristãos fundamentalistas que ainda acreditam que a arqueologia corrobora sua fé continuam a colocar parte dessa fé na ciência, principalmente porque são capazes de ver nessa ciência – se usada como um instrumento de confirmação dos dogmas bíblicos - um requisito necessário e altamente sedutor para o processo de conversão de pessoas, principalmente, os incautos pertencentes à ala erudita das academias.

Quando se trata de analisar a religião sob o prisma da História, as pessoas são freqüentemente bastante mal informadas, e quase sempre parciais. Principalmente quando falamos do cristianismo, existe uma nuvem de obscuridade dogmática que impede a maior parte das pessoas, principalmente aquelas que são ao mesmo tempo religiosamente fundamentalistas e leigas, de penetrar as entranhas do processo histórico.

É nesse cenário que a Bíblia é vista como “verdade absoluta” e o cristianismo institucional é concebido como o grande portador das vontades de Deus. Essa visão limitada e distorcida dificilmente deixa alguma abertura para que o conhecimento científico entre trazendo alguma luz sobre as verdades históricas da religião.

A principal prioridade da arqueologia é adentrar nas conseqüências materiais dos eventos históricos com o fim de compreender as diversas dimensões desses acontecimentos. É um objetivo didático, vinculado apenas com a necessidade do saber.

De forma alguma, é missão da arqueologia desconstruir as narrativas bíblicas do ponto de vista histórico, muito menos de derrubar ideologias religiosas milenares criadas ao redor de um livro sagrado. A principal tarefa da arqueologia é oferecer subsídios com os quais se possa melhor entender os textos bíblicos.

No entanto, essa busca por compreensão e entendimento por parte da arqueologia, inevitavelmente, traz consigo diversas implicações que, conseqüentemente, podem ou não serem concebidas de forma negativa ou positiva.

Todas as descobertas arqueológicas, bem como outras contribuições multidisciplinares, nos têm trazido uma compreensão mais humana da Bíblia, enfatizando o lado humano da Bíblia em que a mesma se caracteriza como um livro humano, escrito por pessoas humanas e para pessoas humanas, dentro de um contexto humano, de modo que, como qualquer outro livro humano, possui estrutura peculiar e uma história que revela os processos de sua formação.

Uma das mudanças de pensamento que essa nova visão traz através dessas novas descobertas é que idéias como inspiração divina, inerrância bíblica, entre outras, precisam ser reformuladas. O lado negativo em tudo isso é que são exatamente essas idéias que precisam ser revistas e reformuladas que constituem as principais crenças e ideologias fundamentalistas, sendo, desse modo, as que mais exercem resistência contra as novas tendências.

É preciso frisar que nenhuma leitura fundamentalista e literalista dos textos bíblicos se preocupa em se aprofundar em nenhuma das questões sobre composição, formação e sobre os contextos multidimensionais em que a Bíblia foi escrita. O fundamentalismo já possui respostas para tudo isso, respostas essas que, geralmente, andam em contra-mão ao desenvolvimento científico. O fundamentalismo, como um movimento mais ideológico do que científico (ou seja, que pregam verdades pré-estabelecidas, ao invés de buscá-las), é bem um instrumento de estagnação do conhecimento do que um mero movimento conservador.

O literalismo fundamentalista se preocupa unicamente em adequar suas visões de mundo e interpretações de natureza ideológica ao texto bíblico que - concebido não somente como a Palavra de Deus, mas também, e principalmente, como a verdade absoluta -, por sua vez, serve como um instrumento para legitimar essas interpretações e/ou ideologias. Essa leitura fundamentalista e anti-histórica traz consigo erros e disparates que podem trazer, por si sós, várias conseqüências negativas para a sociedade.

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