sábado, 8 de novembro de 2008

Bruxaria e ciência

Entre os séc. XV e XVIII as perguntas que dominaram as discussões cultas sobre Bruxaria consideraram sua possibilidade como uma ocorrência genuína no mundo físico. Isto significava perguntar a que leis de causa e efeito estes eventos físicos obedeciam e quais infringiam. Quase instintivamente a ciência moderna remete os feitos de bruxas a um reino de “sobrenatureza” inteiramente fora das leis naturais; a única maneira de captá-los naturalisticamente é por uma redescrição completa. Isto significa que tem sido invariavelmente considerado uma ciência “oculta” ou “pseudociência” e incompatível com os critérios e o progresso científicos.
Conforme se tem dito, ela foi produto da superstição remanescente, da irracionalidade ou de perturbação coletiva. Mas a história da ciência mostra que o limite entre natureza e “sobrenatureza” é local a culturas, mudando de acordo com gostos e interesses. A que agora vigora genericamente entre as tribos do Ocidente é tão velha quanto a produção científica que a acompanha.
Antes do Iluminismo e do advento da ciência “nova” as coisas eram diferentes, metafisicamente falando, e pensava-se que a natureza tinha outros limites. Na Europa moderna era opinião virtualmente unanime que as bruxas não meramente existiam na natureza, mas agiam de acordo com suas leis. Essas questões preocupavam os especialistas em Bruxaria, que observavam o quanto era necessário trazer a experiência da filosofia natural para seu tema. Muitas disputas sobre assuntos de Bruxaria nas universidades da Europa foram tentativas de resolver problemas filosóficos naturais relacionados com a realidade e extensão da causação demoníaca.
Com efeito, magia demoníaca e magia naturalis eram análogos filosóficos naturais proporcionando explicações paralelas – às vezes concorrentes, às vezes aliadas – para o mesmo leque de fenômenos. A magia natural foi um dos entusiasmos mais duradouros dos filósofos naturais modernos. A teoria de bruxaria lida com um assunto particularmente perverso em que os problemas de distinguir entre o possível e o impossível, entre “sobrenatureza”, “preternatureza” e natureza comum tornam-se paradigmáticos.
No séc. XX isto tem sido integrado por descrições altamente influentes da “revolução científica” como única decisiva e modernizadora transformação conquistada por desbravadores heróicos que estenderam as fronteiras da verdade às expensas da magia. A suposição geral tem sido que as crenças em Bruxaria eram, de algum modo, prejudiciais ao bem-estar da ciência.
Tem-se argumentado que, à medida que forem aumentando os conhecimentos sobre a natureza, era cada vez menos provável que a Bruxaria continuasse sendo aceita como coisa real. A inspiração eclética para a mudança e sua parcial atribuição a tradições de conhecimento convencionalmente encaradas como não-científicas e mesmo não-racionais são amplamente reconhecidas.
Uma sucessão de estudiosos trouxe os estudos “ocultos” para o centro do desenvolvimento científico moderno e mostrou como eles permaneceram sendo ingredientes vitais do pensamento desenvolvido até as últimas décadas do séc. XVII.
Finalmente, os julgamentos excludentes que costumavam ser nivelados e antigos modos do pensamento e do ensino sobreviventes da filosofia natural têm sido completamente revistos. Torna-se possível, então, visualizar a filosofia natural do séc. XV e XVII no estado de incerteza e rivalidade interna, mas também de fecundidade teórica e inovação que caracterizam o desenvolvimento científico “revolucionário”.
Esclarece em particular o fato de que os primeiros estudiosos modernos pareciam ter disputado não só sobre a configuração intelectual e institucional de disciplinas individuais, mas sobre as próprias linguagens de investigação – o que significava e no interesse de quem falar em termos do “sobrenatural”, do “preternatural” e do “natural”.
Esse tipo de revisão só é possível pela mudança de uma visão menos realista para uma mais relativista da história da ciência. Enquanto os historiadores da revolução científica estavam comprometidos filosoficamente com o modelo de conhecimento, eles só poderiam julgar declarações de delimitação de realidades passadas do mesmo modo como julgavam as presentes.
Não é preciso dizer que sociólogos e filósofos da ciência têm proporcionado um suporte teórico considerável para a contextualização de verdades científicas. Eles nos familiarizaram com a idéia de que essas verdades, assim como outros artifícios culturais, são menos descobertos do que produzidos; que elas dependem das condições de conhecimento e prática que contingentemente obtêm em diferentes comunidades científicas de diferentes épocas e que não podem, consequentemente, ser defendidas em comparação umas com as outras segundo um padrão absoluto, à revelia de contextos.
O fato persiste de que houve muitas maneiras diferentes de falar sobre a realidade natural no passado significa que elas não podem estar todas certas; ao passo que, por razões igualmente persistentes, os historiadores da ciência não tem base, exceto o realismo da linguagem científica de seu próprio tempo, para dizer que qualquer deles estava errado.
A referência cientifica ao mundo externo só é possível, como qualquer outro tipo de referência, dentro de linguagens, onde ela é bem sucedida ou fracassada segundo relações de diferença entre signos. O radical ceticismo, quando finalmente chegou, não foi uma vitória do conhecimento sobre a ignorância, mas um corolário de conhecer a natureza segundo regras diferentes.
Clark, Stuart. Pensando com Demônios. Edusp – 2006, pg. 208-218.

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