Eu encontrei em um sebo o livro do casal Farrar entitulado "O Deus dos Magos", mas no original a melhor tradução seria "O Deus dos/as bruxos/as". Um achado e tanto, no mesmo sebo onde encontrei "A Feiticeira" de Jules Michelet. Eu pretendo usar algumas passagens desse livro algum dia, mas por ora eu vou aproveitar o ensaio histórico/antropológico lançado pelo casal Farrar para analisar as diferentes faces do Deus. Eu não concordo com a opinião em voga que todos os Deuses são o Deus dos bruxos, bem como em várias partes do livro que não há uma acuidade histórica/antropológica dos mitos, dos povos e Deuses antigos. Em diversos tópicos desse blog o dileto visitante poderá encontrar alguns indícios de meus motivos para não aceitar essa maionese cultural, então passemos à lista das faces do Deus, como descrito no livro citado do casal Farrar.
O Deus, como filho e amante.
A ordem mais provável, na mitologia Wica, é primeiro o Deus como o amante consorte da Deusa para então Ele surgir como a Criança da Promessa. A fonte de onde veio o mito de uma Deusa solitária que divide-se a si mesma (Santa Ameba?) para gerar o Deus é atribuído às bruxas toscanas, mais precisamente do relato escrito por Charles Leland em seu "Evangelho de Arádia". Considerando os aspectos do Deus e a manifestação divina no mundo natural, acreditar que a Deusa poderia sozinha gerar dela mesma um Deus tão oposto aos atributos dEla, é transformar a Deusa em uma imitação de Jeová.
O Deus que mede o tempo.
Aqui há uma confusão curiosa. A nossa espécie realmente se juntou em grupos e para organizar as coisas estipulou formas de medir o tempo. Em algumas culturas, usava-se a lua, que foi ora associada a um Deus, ora a uma Deusa. Entretanto, nossos ancestrais eram bastante observadores e notaram que o sol igualmente podia ser usado para medir o tempo e, dependendo da cultura, este foi ora identificado com um Deus ou com uma Deusa. Portanto, não há como concluir que um dos atributos do Deus seja medir o tempo. O mais correto é pensar no Deus como o Ordenador.
O Deus Sol.
Nossos ancestrais passaram a ver no sol um aspecto de algum Deus depois de começarem a cultivar a terra. Entretanto, existem culturas que associam o sol à alguma Deusa. O aspecto mais crucial do aspecto do Deus como o sol vem da associação do sol como um astro-rei e, portanto, evocado na coroação dos reis tribais. Antigamente era bem comum um rei atribuir sua paternidade a alguma forma de Deus que estava associado ao sol.
O Deus da Sabedoria.
Lembrando vagamente o que eu havia lido em "A Deusa Branca" de Robert Graves, a Sabedoria é inspirado pela Deusa. Em termos gerais, os processos mentais mais associados ao Deus são a Lógica e o Raciocínio. Tanto o Saber como o Conhecimento são atributos tanto de Deuses quanto de Deusas, mas mesmo os mitos destes demonstram que isto foi algo adquirido das experiências e vivências. Igualmente temos interessantes mitos de Deuses que são tolos, ignorantes ou ingênuos.
O Deus da Vegetação.
Igualmente ligado á face do Deus enquanto Deus do Sol, bem como de Deus que mede o tempo. A partir do momento e que nossos ancestrais dominaram a técnica de plantio, os ciclos sazonais começaram a ter maior importância, bem como o planejamento das culturas de acordo com esses ciclos. Os Sabats da Wica são um reflexo desse elo entre os ciclos das estações com os ciclos solares, dentro do aspecto do Deus enquanto Senhor dos Campos.
O Deus da Guerra.
Para alguns povos, os ciclos naturais não tinham significado algum. Estes povos nem plantavam nem criavam gado. Eram povos guerreiros e nômades. A vida desses povos consistia ou em pilhar os povos agrários ou em fazer comércio, de forma que nunca tiveram uma ligação sagrada com a natureza. Em alguns casos, mesmo em povos agrários, Deuses e Deusas da Guerra apareceram, como resultado da interação entre culturas ou mesmo do desenvolvimento dos povos e o consequente desenvolvimento da expansão territorial e mesmo da formação de reinos. Para os povos politeístas, a guerra era travada sempre em nome do rei, o Deus ou Deusa da Guerra era apenas evocado para que vencessem. Apenas os povos guerreiros e nômades fizeram guerra em nome de Deus, pois estes povos desenvolveram apenas a ideía de Deus, muitas vezes monopolista e belicoso.
O Deus Artesão.
Eu considero esta face como um reflexo do Deus como o Ordenador. Deus, assim como os homens, gosta da tecnologia, da ciência e do progresso, sempre em busca de mais conforto e eficácia nas coisas da vida. Quando associado à sua face como Deus da Guerra, existe um embotamento de sua face enquanto Deus dos Campos, o sentido sagrado da vida e da preservação do ambiente são conveninetemente esquecidos pela humanidade, fazendo com que a ciência e a tecnologia se tornem fúteis, quando não uma ameaça à nossa espécie.
O Deus de Chifres.
Todos os Deuses antigos, incluindo os Deuses monopolistas das atuais formas do monoteísmo foram ou tiveram este aspecto em algum momento em sua história mítica. A lista de Deuses antigos que eram coroados com vistosos chifres é imensa e tem um vínculo claro com a nobreza, a fertilidade e a virilidade própria do Deus. Mesmo que posteriormente este passado tenha sido esquecido, renegado ou proibido por interesses políticos, o caráter fálico dos Deuses (até os monopolistas) está presente nos ritos e nos atos atribuidos a eles. A imagem do Deus de Chifres é considerado tão antigo quanto a imagem da "Vênus" de Willendorf e simboliza o seu aspecto tanto como o Senhor da Caça quanto como o Senhor das Feras.
O Deus Gêmeo. (Dióscoros)
O exemplo mais usado e menos ideal é o mito do Rei Carvalho e do Rei Azevinho. Apesar destes serem manifestações do Deus, como os nomes dizem eles são Reis, não Deus. Eu pessoalmente considero exemplos melhores dessa face de Deus os mitos de Osiris e Set, de Cronos e Zeus, de Saturno e Júpiter, de Castor e Polux. O mito do Deus Gêmeo é uma síntese da Roda do Ano celebrada na Wica, em dois momentos cruciais: o Verão e o Inverno. Ambos os ciclos sazonais disputam em poder e força iguais o dominio sobre o nosso mundo e não são, embora opostos, antagônicos, mas sim cumprem cada um para manter o equilíbrio necessário para a existência da vida.
O Deus Sacrificado.
Certamente o mito mais presente e mais imitado em várias religiões. Sem a idéia mítica dos povos pagãos de um Deus Sacrificado teria sido impossível para o Cristianismo ser bem sucedido entre os 'gentios'. Essa face de Deus está ligada à face do Deus como o Senhor dos Campos, bem como à sua face como Senhor das Feras (o que foi ignorado pelo casal Farrar). Em alguns povos infelizmente essa face do Deus ficou exacerbada, levando a massacres disfarçados de sacrifícios ao Deus, como aconteceu nos povos pré-colombianos. O sacrificio, seja de vida vegetal, seja de vida animal, seja de vida humana, tinha um sentido muito mais sagrado e específico. A ritualização da violência e da crueldade é essencial para nós, como bem disse Alain Danielou e a maior parte dos povos que praticavam sacrificios e sangue o faziam com uma única vítima sagrada, apenas em ocasiões muito especiais. Para nossos ancestrais, a morte cerimonial de um rei era fundamental para a continuidade da vida comunitária. Para se tornar o Deus do Além, o Deus se sacrifica. Sem isso, as sementes não brotariam e as almas não teriam descanso nem reencarnariam.
O Deus do Além.
A face mais temida e menos comentada nos circulos wiccanos e certamente ignorada na Wilka S/A, o que eu considero curioso existir tal tabu entre pagãos, bruxos e wiccanos quanto ao aspecto de Deus como o Senhor dos Mortos. A Deusa também tem um lado negro, terrivel e sinistro completamente alijado e renegado pela Wicca Brasileira. Os mistérios da Wica celebram a Deusa como a geradora de tudo e também como nosso destino final. Mas é a força do Deus que nos faz sair do útero da Deusa e nos chama de volta para Ela. Nessa face, Deus teve alguns 'sucessores', se considerarmos os demais Deuses dos Mortos de outros povos como 'filhos' dEle: Osiris/Anubis Hades, Plutão. Como uma continuação ou efeito de sua face como Deus Sacrificado, Deus se torna igualmente o Senhor dos Mortos bem como Aquele que Conduz, seja para uma nova encarnação, seja para a Sumerlândia.
O Deus Monopolista.
O monopólio de um Deus sobre outros Deuses e Deusas foi observado até em culturas politeístas, demonstrando que o desenvolvimento cultural da religião poderia resultar inexorávelmente em alguma forma de monoteísmo, como aconteceu com o Zoroastrismo, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Eu não concordo com Alain e com o casal Farrar que o Deus monopolista foi uma invenção ou uma aberração de povos nômades. Assim como haviam povos agrários, haviam povos nômades e povos guerreiros e cada qual desenvolveu seus mitos e crenças. Eventualmente, pela expansão territorial ou pela formação de reinos, Deuses da Guerra se tornavam o Deus principal desses povos, quando não se tornavam monopolistas, mas não por escolha e gosto desses Deuses, mas sim por interesses políticos deliberados dos poderes seculares e sacerdotais desses povos. O caso é que a raiz mitica do Deus Monopolista que se manifestou nas atuais formas do monoteísmo provém desse passado pagão. Ahruda Mazda foi outrora o Deus do Fogo, dentre muitos Deuses que existiram no passado politeísta dos Persas, até ser elevado à condição de Senhor absoluto por Zoroaster. Jeová foi outrora um Deus Touro, dentre muitos Deuses que existiram no passado politeísta dos Hebreus, até ser elevado à condição de Senhor pelos rabinos, após a libertação do povo de Israel do cativeiro na Pérsia. Cristo foi outrora um Deus Sacrificado, uma metáfora de uma ordem iniciática que cresceu por sobre as mesmas ordens iniciáticas e mistérios antigos semelhantes à Mithra, Attis, Dioniso. Allah foi outrora um Deus Lunar, igualmente consorte de uma Deusa trifacetada.
O Antideus.
Para pagãos, bruxos e wiccanos não existe o Antideus, mas sim o Embusteiro, um papel quase semelhante ao encenado por Satan nos mitos Judaicos, Cristãos e Islâmicos. A despeito de toda a doutrina existente nessas religiões sobre Satan, é bem possivel que ele tenha sido originado de alguma raiz mítica bem próxima do Deus Gêmeo, mas que com o passar do tempo e a imposição de uma elite sacerdotal, essa raiz mítica foi renegada e trocada por uma visão maniqueísta, um tanto que copiada do Zoroastrismo. A existência de um ente divino, muitas vezes de igual poder, senão criado pelo próprio Deus, que existe apenas para seduzir a humanidade ao 'pecado' ou para usurpar o trono de Deus é um absurdo evidente, criado apenas para induzir a população a obedecer uma elite (secular e sacerdotal) e seus dogmas morais. Mesmo no papel de Deus Gêmeo, não há esse antagonismo pernicioso e fatal que existe na escatologia do monoteísmo, mas sim uma sadia transmissão de poder para manter o equilibrio necessário para a existência.
O Deus Divorciado.
Sem dúvida o capítulo mais engraçado e pitoresco do livro, para não dizer enganado ou equivocado. O monopólio de um Deus ocorreu da mesma forma em sociedades politeístas, como a Grega e a Romana. Os Judeus não deram origem a essa tendência monoteísta, mas sim os Persas, depois da 'reforma' religiosa empenhada por Zoroaster. Inequivocamente, em algum momento, O Deus Divorciado foi consorte de uma Deusa e ambos foram igualmente celebrados por estes povos, em um passado politeísta. Os Gregos e Romanos, apesar de politeístas, desenvolveram o monopólio de um Deus sobre os outros e é bem possível que, mesmo sem a influência do Cristianismo, teriam em algum momento conhecido algum reformador que postulasse o monoteísmo em torno de um Deus, perseguindo e proibindo os antigos ritos. O advento do Cristianismo como religião oficial do Império Romano apenas apressou o processo. Histórica, social, politica e religiosamente muito pouco podemos fazer a respeito da dominação das religiões monoteístas, senão torcer para que seus seguidores sejam mais tolerantes com outras religiões e venham a conhecer as reais raizes miticas e étnicas do Deus que eles adoram, para enfim nos tornarmos irmãos da mesma espécie.
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