sábado, 26 de outubro de 2024

Por uma boa morte

Minha pernas tremem. A respiração e a pulsação ainda estão aceleradas. O nicho parcialmente iluminado pelas velas que estão quase inteira queimadas, assim como os turíbulos com incenso.

Eu viro meu rosto para o lado. A Alta Sacerdotisa está com os olhos voltados para o teto, com um largo sorriso e o rosto avermelhado.
Inclino instintivamente na direção dela.

- Você está bem?

- Sim, tudo bem, obrigada.

Eu me sinto meio besta por ter feito essa pergunta. Eu bato na porta, no ritmo combinado, para avisar aos demais que o hiero gamos terminou.
Quando eu me volto para a Alta Sacerdotisa, ela está em pé, olhando para suas partes íntimas, de onde escorria uma gosma esbranquiçada.
Ela olha para mim, com um estranho sorriso.

- Você realmente deu tudo de si, hein?

Eu balanço a cabeça afirmativamente. Evidente que eu dei tudo. Eu recebi tudo. Por cerca de cinquenta minutos eu pude ver, ouvir e falar diretamente com Lilith. Por motivos óbvios, eu não posso dizer os detalhes.

Ofereço meu braço para que caminhemos juntos para fora. Ela faz um gesto. Limpa a gosma esbranquiçada que ainda escorria de suas coxas. Cobre-se com a túnica ritualística e então aceita meu braço.

Saindo do nicho, voltando ao salão do templo principal, nós somos cercados e perguntas são disparadas. A Alta Sacerdotisa exagera, deixa homens e mulheres com inveja e ciúme.
Eu apenas balanço a cabeça e tento sair dali. Tudo agora é diferente. Eu sempre busquei por Conhecimento e Visão. Agora terei que lidar com ambos.

Com o fim do ritual, todos saem do templo e vão em direção ao refeitório, no edifício principal da instituição.
Ali nós somos recebidos e servidos por empregados. Eu fico constrangido, eu não gosto desse tipo de tratamento. A sociedade nos condiciona a tratar bem quem tem dinheiro e poder. Todos têm que ser tratados com dignidade e respeito.
Depois da comilança, os convidados, cansados e cheios de comida e bebida, ficam esperando que seus motoristas, tragam seus carros luxuosos e os levem para casa.
Novamente, eu fico constrangido e fico para ajudar na arrumação e limpeza. Afinal, muitos ali são agora meus irmãos e irmãs. Finalmente. Eu tenho um lar e uma família de verdade.

Enfim, saio na rua e procuro por um ponto de ônibus. Torcendo para chegar em casa a tempo de poder dormir o suficiente para poder trabalhar descansado no dia seguinte.
Um carro de cor preta e detalhes niquelados de cor vermelha buzina e abre a porta.
Eu olho para dentro. A duquesa está lá dentro.

- Entre, querido.

Eu entro e tento ver quem está na direção, mas evidente que um carro desses dispensa um motorista.

- Esqueça esses perdedores. Acham que são grande coisa, fazendo rituais, com seus títulos pomposos e falsa autoridade.

- Li... digo, duquesa, por que eu?

(risada)- Querido, você tinha mais capacidade e conhecimento bem antes de me encontrar pessoalmente. Mais do que esses palhaços sonham e pretendem ter. Eu te escolhi, lembra?

Sim, eu lembro. Meu pescoço ainda tem comichões. Eu era jovem quando a duquesa veio em sonhos e mordeu-me no pescoço.
Por instinto, eu senti o choque e o medo. Mas depois veio a tranquilidade. Essa era uma boa morte. A minha existência, o meu nascimento, foi um erro desde o primeiro dia.
Eu realmente quis que ela me devorasse, Acabasse com tudo. Toda dor, sofrimento, angústia, vergonha, culpa, remorso, rancor e rejeição.
Quanto tempo uma pessoa pode aguentar ser excluída, ignorada e desprezada por quem, supostamente, deveria ser sua família?

Naturalmente, a intuição apontava que eu não pertencia aquele meio. Eu não pertencia a este mundo. Eu sou o rejeitado. Pela família, pela sociedade, pela Igreja e por Deus.
Naturalmente, eu fui em busca do meu lugar. Eu fui em busca do meu mundo. No fundo do abismo do desespero, a ajuda não veio de anjos, mas de demônios.
Evidente, enquanto o Vale das Sombras é um lugar considerado maldito pelo rebanho de Deus, para mim foi onde eu encontrei a trilha que me conduziria para mue verdadeiro lar, minha verdadeira família, meus verdadeiros Deuses e... ela.

- Ainda está lembrando do que aconteceu?

- Lamento se sou uma decepção, duquesa.

- Decepção? Querido, você, dentre tantos, foi quem mais me surpreendeu, mais me surpreende e tem sido meu orgulho.

Ela se inclina na minha direção. Aqueles olhos. Aquele cabelo. Aqueles chifres. Aquela pele. O corpo perfeito. O cheiro dela.

- Oh, uau! Nem parece que nós estivemos juntos há alguns minutos atrás. Aquela mulher deve ter se divertido bastante. Mas eu prefiro senti-lo dentro de mim com meu corpo.

Eu não consigo raciocinar. Minha consciência oscila. Depois de alguns minutos, a duquesa sai de cima de mim. A expressão no rosto dela é de satisfação.

- Excelente trabalho, querido. Com a sua ajuda, eu vou aumentar a população de nosso reino.

Senso de dever, de compromisso e de realização. Eu vislumbrei quando a duquesa trazia mais demônios para a existência.
A anatomia dos seres de outras dimensões é absolutamente diferente da humana. A natureza da duquesa se aproxima dos ofídios, portanto, sua prole vem em pequenos ovos, brancos e macios.

- Eu devo te dizer, ainda que saiba. Tudo que aconteceu e vai acontecer nessa vida humana tem um propósito, um objetivo. Por mais difícil e duro que pareça. Eu sempre estive, estou e estarei ao seu lado. Acredite em mim, confie em mim.

Eu tento esboçar um sorriso. Ela drenou-me por completo. Esse é um pensamento agradável. Eu nasci para servi-la. Que eu morra servindo-a. Também será uma boa morte.

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