segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Refúgio de paz e união

Bem próximo de Belo Horizonte, o Circuito de Quilombos de Brumadinho é uma das 40 experiências turísticas do catálogo Céu de Montanhas. No início do mês de setembro, visitamos a região e, no turismo de hoje, vamos mostrar a vivência sensorial nas comunidades. São lugares sagrados, abertos ao público mediante agendamento prévio, que proporcionam aos visitantes uma experiência repleta de música, religiosidade, boa comida e histórias fascinantes.

A programação dá início no Quilombo de Sapé, com direito a um café da manhã feito pela comunidade, com apresentação de dança e muita música. A segunda parada do circuito foi no Quilombo de Rodrigues, onde o grupo de percussão Negro por Negro recebe os visitantes com muita animação. Lá, o visitante vai aprender passos de dança, conhecer a história da comunidade e experimentar drinks preparados com ingredientes locais pela Chef Marcela Azevedo. No Quilombo do Ribeirão, os turistas são recebidos por Jaime Ferreira, um morador local e guia turístico. Ali, eles mergulharam na cultura quilombola através da música, da dança e de uma tradicional feijoada. Em Marinhos, o mais antigo dos quatro quilombos, uma roda de bênçãos conduzida pela matriarca Dona Nair, os visitantes se despedem dos quilombos.

Esse evento turístico é uma iniciativa de turismo rural e comunitário desenvolvida pela Vale em parceria com o designer Ronaldo Fraga e a especialista Miriam Rocha. Segundo Daniele Teixeira, analista de Sustentabilidade da Vale e coordenadora do projeto Céu de Montanhas, o catálogo foi pensado para diversificar a oferta da região e facilitar o acesso do turista aos atrativos. “Essa ação busca aumentar o tempo de permanência do visitante que vai a Brumadinho e fortalecer a contribuição do turismo para a economia local”.

Sentada debaixo de uma grande árvore bem ao lado do sino da Igreja de São Vicente de Paula, Dona Elza, acompanha a chegada dos visitantes. Diante dela, uma mesa com quitutes genuínos mineiros foi delicadamente montada e decorada para celebrar o café da manhã. Pão de queijo, kubu ( broa de fubá assado na folha de bananeira), biscoitos de polvilho, bolos de milho e banana, queijadinha de mandioca com queijo. Para beber, café coado na hora, adoçado com garapa e sucos de frutas da região como limão-capeta, maracujá e mexerica. Delícias feitas por mãos cuidadosas da comunidade para aquele primeiro banquete do dia em parceria com o chef Edson Puiati. Para a matriarca do Quilombo de Sapé, em Brumadinho, o Circuito dos Quilombos é uma oportunidade de reviver a comunhão em família. Foi a possibilidade de estreitar os laços e de se entregar aos abraços.

Na sequência, o chão sagrado se desperta ao som de batuques e tambores. Mulheres do grupo de dança Sorriso Negro se apresentam para os turistas, que vieram de várias partes do Brasil. O canto de luta e resistência, potencializado pelos movimentos do corpo de uma beleza negra sem igual, é a herança ancestral de um povo que chegou escrazidado no Brasil, quebrou correntes e hoje, conquista seu lugar na sociedade atual – são, sim, rainhas e princesas que merecem nossos aplausos e reverência. Entre elas, Juliane Aparecida Silva, Michelle Lorraine Silva, Gisele Núbia Santana e Silvânia Aparecida Oliveira Pinto que, soltaram a voz e, com um grito de louvor, reafirmaram o orgulho da cor da pele e do cabelo crespo.

Hora de conhecer as tradições do Quilombo de Rodrigues. Outro território negro onde um cuida do outro. Quem vive neste lugar sagrado reverência a família, a natureza, as tradições culturais e religiosas e promove a resistência e tem muito orgulho de ver suas origens preservadas e divulgadas. Reconhecido pela Fundação Palmares, o quilombo desenvolve projetos culturais de dança, música, confecção de instrumentos musicais como o xequerê( feito de cabaça) e produtos artesanais como pulseiras, terços e cordéis feitos com a semente da lágrima de Nossa Senhora. Tudo feito à mão, e quem visita o local pode confeccionar e levar pra casa sua própria bijuteria.

O Grupo afro Negro por Negro já realizou apresentações em diversas cidades mineiras, e no ano passado fez um tur pelo Nordeste. Alguns componentes têm função importante nas guardas de Congo e Moçambique da região. Com percussão marcante, o grupo usa tambores, xequerê, atabaques, violão, cavaquinho e gungas, cantam canções próprias e outras retiradas das tradições africanas da República Democrática do Congo e de Moçambique. Se a música encanta, a manhã teve como refresco drinks ( com ou sem álcool) preparados pela pesquisadora e mixologista molecular Marcela Azevedo, que há mais de 10 anos cria bebidas refrescantes com ingredientes colhidos nos quintais, com plantas comuns do dia-a-dia como funcho, alecrim, manjericão e os transforma em elixir de pura alquimia de prazer.

“Sejam bem-vindos… só estava faltando você”. Chegou a tão esperada hora do almoço no Quilombo do Ribeirão. Em um restaurante simples, um caldeirão de feijoada era colocado na mesa de apoio. Ao lado, outra panelona de arroz e travessas de couve, laranja e farofa. Uma comida brasileira para fazer daquele encontro um dia especial. O tempero estava na medida e as porções de gordura dos pedaços de porco na quantidade, digamos, recomendada por qualquer cardiologista. O prato, que teve como origem uma iguaria criada por negros escravizados, surgiu em terras brasileiras no Brasil colonial. A cada garfada, sabores ancestrais eclodiram no paladar provocando uma sensação de prazer. Alguns visitantes repetiram mais de uma vez e saciaram a vontade de provar a culinária simples que toques de amor como tempero. E para fechar a comilança, que sobremesa! Convidada para o evento, a renomada chef Tainá Moura deu uma consultoria e preparou uma delícia levemente adocicada feita com mousse de queijo, mexerica e farofa de rapadura.

Durante todo o banquete no ‘Palácio’’ os presentes ouviam, ao lado, as vozes singelas das ‘cigarrinhas do quilombo’. Formado por moradoras da comunidade, as divas cantoras soltavam, à capela, cânticos tradicionais de Minas e louvores religiosos como Noites Traiçoeiras:. Essa música era o prenúncio do que estavam todos a experimentar no próximo e último quilombo visitado.

Feche os olhos, respire fundo. Imagine ouvir o som ao redor: assobios e grunhidos de maritacas, bem-te-vis e pica-paus. Tente ouvir o vento balançando as folhas. Sinta o cheiro da grama, das flores da grande mangueira e do pé de carambola. Agora, abra os olhos, tente ver o pôr do Sol, se despedindo atrás das montanhas após um dia intenso de emoções. Nesse exato momento, naquela hora mágica, dará o início do melhor do Circuito dos Quilombos e, também, o fim de uma maratona que se iniciou em um café da manhã, se prolongou por visitas em abrigos fraternos onde cada habitante desses quilombos são reis e rainhas do lugar agora, se concretiza, com a benção do Maria.

Ao lado da Igreja de Nossa Senhora, Dona Nair, mãe-rainha benzedeira do Quilombo de Marinhos, flutua sobre o chão sagrado do terreiro do lugar. Em sua apresentação inicial, ela fala das dificuldades que o povo da comunidade já passou e ressalta a importância dos laços familiares para se manter vivos e unidos: “Teve um tempo que não tínhamos nada pra comer, e a fome era um tormento. Foi então, que percebendo a dor do flagelo que não poder levar a comida à mesa, irmãos e irmãs da comunidade se uniram, trouxeram o alimento que tinham em seus quintais como milho, feijão, quiabo e mandioca e, deste gesto de amor e solidariedade, nasceu a apresentação da Dança da Colheita, uma forma de agradecer o alimento recebido”.

E nesse terreiro, ela inicia sua benzeção. Mas antes, Dona Nair relembra: “teve o caso de uma mulher em estado terminal de câncer, que estava desenganada pelos médicos, que ao ouvir a bênção, se viu curada. Não sou eu que promove a cura. Mas, ele, que está lá no alto, acima de todos nós. Foi a fé dela em acreditar no poder divino que a fez se curar e hoje ela está bem”. E como se estivesse em transe, a voz entoa cânticos reconfortantes que dizem promover milagres.

Fonte: https://www.em.com.br/app/noticia/turismo/2023/10/11/interna_turismo,1574913/territorios-sagrados-proximos-de-bh-sao-refugios-de-paz-e-uniao.shtml

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