sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O perigo da Constelação Familiar

Autor: Raphael Sanz.

O ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, encaminhou ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, ao Conselho Nacional de Justiça e aos ministérios da Mulher e da Saúde, um ofício solicitando que seja estabelecido um limite para o uso da constelação familiar pelo Judiciário brasileiro. O pedido veio após o ministro receber uma carta assinada em conjunto pelo Conselho Federal de Psicologia e o Instituto Questão de Ciência, além de dezenas de pesquisadores universitários, alertando para o caráter pseudocientífico e autoritário da terapia.

Na última semana, a Agência Pública revelou que juízes de diversos tribunais espalhados pelo Brasil têm intimado pessoas envolvidas em disputas cíveis, sobretudo que dizem respeito a conflitos com parentes, a ‘constelarem' antes das audiências. Também foi apurado que em muitos casos os tribunais pagam cursos de constelação familiar para magistrados e servidores.

Ao todo, os gastos já confirmados estão na ordem de R$ 2,6 milhões de reais. Tribunais de Justiça da Bahia (TJBA), Minas Gerais (TJMG), Santa Catarina (TJSC), São Paulo (TJSP) e do Ceará (TJCE) confirmaram o oferecimento da polêmica terapia. Rondônia, o estado que mais gastou, torrou cerca de R$ 1,5 milhão segundo dados obtidos pela reportagem através de diários oficiais. A maior parte dos casos em que a constelação familiar é invocada pelos tribunais tem a ver com sucessões, endividamentos, processos trabalhistas, violência doméstica, entre outros.

Mas o alerta de psicólogos, físicos e cientistas em geral a respeito da suposta terapia não surgiu com as recentes descobertas. Não é de hoje que a comunidade científica se levanta contra a prática, muito propagada nas redes sociais por influenciadores de estilo 'gratiluz', e que mistura misticismo ‘new age’ com conceitos de psicologia e uma suposta ‘física quântica’, para validar visões de mundo completamente autoritárias e hierarquizantes nos processos de conciliação e resolução de problemas.

É verdade que nas mesmas redes sociais muitos supostos pacientes afirmam ter resolvido seus problemas após as sessões. Mas afinal de contas, o que é a tal constelação familiar? É ou não é uma pseudociência? Comecemos olhando para Bert Hellinger, seu criador.

Nascido em Leimen, na Alemanha, em 1925, o pequeno Bert Hellinger tornou-se seminarista católico ainda criança. Aos 17, se alistou no exército alemão, à época sob o regime nazista, e combateu na Segunda Guerra Mundial tendo sido preso na Bélgica durante os combates. Com o final da guerra, foi solto e tornou-se padre.

Diz sua história oficial que se formou em teologia e filosofia na Universidade de Wurzburgo em 1951 e que passou boa parte dos anos 50 e 60 como missionário na África do Sul. Ele chegou a atribuir o surgimento da constelação familiar a suposta cultura zulu sul-africana a que teria tido acesso durante o período.

Mas foi após seu retorno à Alemanha, no fim da década sessentista que Hellinger começou a desenvolver sua própria teoria “new age”, típica daquele momento, que misturava misticismo, conceitos científicos com interpretações alternativas, autoajuda e, ainda que não declaradamente, política.

Seus admiradores dizem que ele se mudou para Viena, na Áustria, no final dos anos 60, para estudar psicoterapia. No entanto, não há qualquer registro de que tenha, de fato, se tornado um psicanalista ou psicoterapeuta.

Em 1973 já estava na Califórnia, EUA, onde passou a estudar, com o psicólogo Arthur Janov, as chamadas “teoria primal” – na qual o paciente é encorajado a reviver e expressar sentimentos básicos – e a “análise transacional” – que estuda estímulos e respostas de indivíduos a determinadas situações. Bellinger, usou desses novos estudos, com as demais referências, para criar a chamada constelação familiar.

Mesmo não tendo sido formado em psicoterapia, atuou como psicoterapeuta a partir do final dos anos 70. Ele morreu em 2019, aos 93 anos. Durante toda a vida jamais escondeu seu apreço pelo nazismo, que claramente influenciou sua terapia alternativa. Ele tem, inclusive, um poema publicado em que “perdoa” Hitler nos termos da constelação familiar.

O objetivo da suposta terapia é estudar a influência do comportamento de familiares e antepassados na conduta de uma pessoa para, com isso, ajudá-la a tratar problemas psicológicos e se reconciliar com parentes com quem teve um conflito ou disputa. Mas é preciso separar: uma coisa é a “terapia”, a dinâmica, a ação de ‘constelar’. Outra coisa é o próprio conceito de ‘constelação familiar’.

Em termos de conceito, a ‘constelação familiar’ é basicamente toda a árvore genealógica biológica de uma pessoa. Se baseia, supostamente, em um “campo morfogenético” do indivíduo, que poderá ser chamado de constelação familiar ou constelação sistêmica. A ideia é que tudo o que existe estaria energeticamente interligado, em disposição semelhante aos agrupamentos de estrelas que levam o mesmo nome. Cada ser humano estaria incluído em um desses "sistemas".

Dentro das constelações ou sistemas familiares, há uma hierarquia rígida. Os homens mandam mais que as mulheres, filhos mais velhos mandam mais que os mais novos, e gerações anteriores mandam mais que as mais recentes – incluindo gerações já inteiramente falecidas. Tudo é altamente hierarquizado e os papeis pré-definidos não podem ser subvertidos em hipótese alguma, sob pena de ‘desequilibrar’ a constelação, fazendo problemas aparecerem. Estes podem ir desde uma briga pessoal, uma doença e uma disputa por herança, podendo chegar a crimes sexuais e violentos de forma geral.

A partir daí será feita a “terapia” de grupo. Trata-se de uma dinâmica teatral onde o paciente interpreta a si mesmo e outros participantes representaram seus familiares envolvidos no conflito. Dessa representação tenta-se descobrir a raiz do problema – se foi uma ‘quebra de hierarquia’ do próprio paciente ou a transferência de problema oriundo de algum antepassado superior hierarquicamente no seu sistema.

Não fica claro em que momento da trama a descoberta da raiz do problema é feita – e nem como – mas a partir daí a terapia começa a encaminhar-se para o final com a proposta de um perdão amplo, geral e irrestrito a ser proferido em voz alta para a outra parte. E, é claro, diante dos demais presentes.

O próprio Bellinger, autor da teoria, descreveu muitas dessas sessões.


Não precisa muito para a rápida constatação de que se trata de uma pseudociência. “A maioria dos estudos feitos a respeito de constelação familiar datam dos anos 80 e 90 mas são muito pobres, sem metodologia científica, não são aceitos pela comunidade científica e não são reproduzíveis”, afirmou Gabriela Bailas.

A cientista e comunicadora também alerta que tanto o Conselho Federal de Medicina (CFM) como o Conselho Federal Psicologia se posicionaram contra o uso de constelações familiares como terapia e tratamento para problemas psicológicos.

O Código de Ética da Psicologia, inclusive, diz o seguinte em seu artigo segundo: "É vedado ao psicólogo prestar serviços ou vincular o título de psicólogo a serviços de atendimento psicológico cujos procedimentos, técnicas e meios não estejam regulamentados ou reconhecidos pela profissão”. Em outras palavras, uma terapia sem comprovação científica, por pares, não é autorizada a um psicólogo ligado á entidade máxima da profissão no Brasil.

Para além das intersecção com a psicologia, vimos que a constelação familiar também faz referência a física e espiritualidade. Nesse sentido, Gabriela Bailas refuta ambas de uma vez.

“Eles também usam o termo ‘emaranhado sistêmico’. Essa palavra, ‘emaranhado’, vem da quântica. E sabemos que muitos pseudocientistas usam o termo ‘emaranhado quântico’. Segundo o modelo de Albrecht Mahr, um dos seguidos por Hellinger, ‘a física quântica e a espiritualidade estão nos ensinando que estamos profundamente conectados, ou emaranhados na linguagem quântica, a tudo e a todos’. Muitos físicos chamam isso de ‘charlatanismo quântico’, inclusive eu. Física quântica e mecânica quântica existem, são ciência, e não têm nada a ver com espiritualidade”, pontuou.

Fonte: https://revistaforum.com.br/ciencia-e-tecnologia/2023/10/2/afinal-de-contas-constelao-familiar-ou-no-uma-pseudocincia-145113.html

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