domingo, 5 de novembro de 2023

Um ponto pálido azul

O laboratório Ícaro completa mais uma volta em torno da Terra e os técnicos trazem as amostras tiradas do chão ou do espaço-tempo.

Doutora Chandreen tenta entender o conteúdo das amostras que são mais enigmáticas e que desafiam a compreensão dos especialistas.

Por exemplo, um teatro que era transmitido por um dispositivo eletrônico chamado de Jornada nas Estrelas. A forma como os humanos imaginavam as espécies de outros planetas pode ser considerada ofensiva. Mas o fato é que a Federação Galáctica apresentou um pedido formal para a ingressão de Gaia e seus habitantes na federação. O trabalho da doutora Chandreen e a missão do laboratório Ícaro existem por causa disso.

Muito preocupante as amostras que falam de ideologias radicais e extremadas. Políticas ou religiosas. Ou mesmo por que os humanos criaram essa falsa noção de fronteiras, origens, etnias, linguagens, crenças e expressões distintas. Para quem pertence à comunidade galáctica, a diversidade é algo bom e é inconcebível tornar isso um crime ou motivo de segregação.

Dos registros, serão citados alguns resultados, desprovidos de cronologia, para não confundir o leitor.

Os pensamentos da doutora Chandreen são interrompidos pelo mensageiro que vem avisá-la de uma nova ordem da Assembléia de Alfa Centauri e da iminente chegada de outro tripulante.

Irritada, a doutora Chandreen lê:
"Para atingir com o máximo de eficácia e rapidez o estudo e análise da humanidade, nós estamos enviando uma humana para ler e interpretar as amostras. A tenente Candice Bergmann deve chegar ao laboratório Ícaro em cem ciclos. Receba-a e instrua naquilo que for necessário e imperativo."

Isso era uma afronta. Amostras dizem que os humanos enviaram cachorros e macacos antes de tentarem o primeiro vôo tripulado no espaço. Macaco. Esse pensamento é sacudido da cabeça de Chandreen. Inconcebível. Intolerância e preconceito são coisas de seres desprovidos de cultura e civilização. O sinal de aproximação de uma nave afasta o embaraço de Chandreen. Deve ser a tenente.

Chandreen chega no pier de atracamento onde vários técnicos trabalham febrilmente para a chegada e aportagem da nave. Tudo feito conforme a mais perfeita ordem. A clarabóia de entrada faz um barulho eletrônico e vapores saem em profusão. De dentro daquela lata metálica, uma pobre figura luta para sair, degladiando com a espuma semigelatinosa azul que é usada em viagens interestelares. Chandreen tem que cobrir seu rosto para segurar o riso.

A figura se posta diante dela, fazendo uma saudação militar. Bah, militares! A figura tem metade de sua altura e usa o decodificador universal para se comunicar. Irritante, mas ao menos permite uma conversação.

-Tenente Candice Bergmann à suas ordens.

-Doutora Chandreen. Eu sou a diretora geral e eu sou a cientista principal responsável por esse laboratório.

-Alfacenturiana, certo?

-Eh, sim. E você é um ser humano. Como prefere o uso de pronomes?

-Ela e dela. Eu nasci em uma colônia humana em Marte, mas meus pais vieram da Terra. Minha descendência é peculiar, americana, espanhola, entre outros povos que habitaram o que você conhece como Gaia.

-Seja bem vinda. Aqui você irá encontrar seres de diversas origens, então eu devo lembrá-la de seguir os protocolos da frota estelar.

 -Sem problema. Permita-me trocar de uniforme. Esse traje espacial é muito desconfortável.

-Claro. Siga o servidor biocibernético. Ele vai te conduzir ao seu dormitório.

Alguns ciclos depois, o servidor biocibernético volta com a tenente, com um uniforme militar comum.

-Então, doutora, podemos começar o trabalho?

Chandreen olha para a tenente. Apesar das normas, ela não consegue evitar de avaliar o físico. A anatomia humana não é algo desconhecido. Mas o corpo da tenente provoca algo. Seriam os cabelos encaracolados, curtos, cor de cobre? Seriam os olhos esverdeados? Seriam as curvas de seus quadris e seios? Não! Não! Não! Proibido!

-Por aqui, tenente. Sua avaliação é necessária. Veja. Eu estou muito intrigada com essa amostra. Jornada nas Estrelas.

-Ah, sim. Ofensivo né? Foi feito por volta do século XX, década de 70. Nós começávamos a exploração espacial. Mas o autor provavelmente mudaria de ideia se soubesse que no final do século XX haveria uma corrida pelo turismo espacial. Então no século XXII começou a colonização da Lua e de Marte. Grandes corporações, ricos e empresários. A maior parte da minha gente ficou na Terra, tentando sobreviver às alterações climáticas.

-Esse é o motivo pelo qual esse laboratório está orbitando Gaia. Sua gente está em fase de análise. Muitas adaptações. Muitas leis universais. Você acha que sua gente consegue?

-Ah, sim. Nós somos muito adaptáveis.

-Excelente. Eu vou deixar que análise as amostras. Entregue o relatório em cento e dez ciclos.

-Em seu dormitório?

(Vergonha e excitação)- Como ousa?

-Ah, qual é, doutora. Você tem toda essa pose de superior, de mais evoluída, de mais civilizada, mas seu corpo é mais sincero. Eu não vejo problema. Será muito bom fazer esse… intercâmbio cultural.

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