O culto à Nábia estendeu-se por toda região norte do Rio Douro, resquícios de árias votivas foram encontradas em montes, fontes e castros. Muitos templos cristãos, aparentemente, foram construídos sobre seus altares de devoção.
Popularmente conhecida como uma deusa guerreira, dos rios e fontes, fato bem perceptível devido a quantidade de rios com seu nome ( Návia, Neiva e Nabão) e a sua imagem na Fonte dos Ídolos em Braga, bem como a relação clara com a palavra ‘navegar’; o que a coloca como uma possível psicopompo, condutora das almas para o Outro Mundo, sendo que esse simbolismo das águas, dentro da religiosidade celta, não pode ser ignorado.
No entanto, o simbolismo das águas também está ligado às deusas nutridoras da terra, como as deusas gaélicas Danu e Boann , e com a cura e a fertilidade no caso da Deusa Brighid, o que leva a crer que Nábia não tinha apenas uma face guerreira, porém também de nutridora da terra e uma relação real com a fertilidade e a magia, o que a aproxima de uma deusa da vida.
Sua face guerreira aparece como protetora e guardiã da tribo, a presença de devoções em diversos castros enfatiza bem isso.
A soberania é visível no epíteto Corona que acompanha muitas vezes o seu nome, ela é a ‘coroada’, como a Morrighan gaélica é a Rainha. Ela é senhora dos montes e outeiros, seu valor mágico e soberano se reafirma nisso.
Sua oferenda eram os cordeiros, um animal de pastagem da tribo, ele além da carne, provém a lã e o leite, e a tribo lhe oferece o melhor. O melhor para Nábia Corona, para que os protegessem não só na guerra, e ataques a tribo, mas da fome e seca.
Com base, nessas conclusões, Nábia é uma deusa da tribo, da nutrição da vida, condutora ao outro mundo e a guerreira que defende a tribo e ajuda os guerreiros.
Nábia e os Festivais
Na ária encontrada em Mareco (uma cidade portuguesa extinta, hoje unificada a Penafiel), uma data nos dá um possível momento de celebração à Nábia, o mês de abril, o que a coloca no entremeio da chegada da primavera e do momento em que os pastores e agricultores sairiam para o campo, e os guerreiros para suas possíveis guerras, e pensando na Celtibéria e a ânsia guerreira, o tal era bem real.
Na Fonte dos Ídolos as inscrições à Nábia vêm ao lado de um homem que segura a cornucópia, símbolo de fertilidade; há muitas hipóteses a esse respeito, podendo esse ser mais um deus, o que não deixa de a cornucópia ter um forte significado. A fonte remete ao período romano na península, e os romanos são conhecidos pela unificação das suas crenças com os povos nativos, então o símbolo greco-romano ofertado à uma deusa celta não é de se estranhar, pelo contrário, reafirma a deusa Nábia em sua face de nutridora da tribo.
Segundo Melena (1984), Nábia é a deusa dos montes, a deusa selvagem, portanto o espírito da vida. E em Abril essa força de vida está desperta. Essa força selvagem faz parte da fúria do guerreiro e do semear.
E nesse momento que antecede a saída da tribo para seus trabalhos: pastorar, plantar e guerrear, é o tempo de fazer oferendas a Nábia, para que ela possibilite o terreno fértil, que suas águas nutram a terra, e as plantações cresçam em abundância, que o gado esteja protegido das doenças e saques, que a tribo esteja guardada e vigiada pelos seus olhos e os guerreiros protegidos por ela, e se tombarem nos campos de batalhas sejam guiados por ela ao Outro Mundo. Bem como ela seja a energia e força para isso.
As Faces de Nábia
Por mais que mais acima essas faces já tenham sido tocadas, a intenção agora é colocá-las de uma maneira mais clara.
Nábia Corona:
O epíteto Corona, coronus e corua, designado a Nábia foi encontrado em inscrições de lugares ermos, nos altos montes, como em Mareco ( Penafiel), Monte de Pedrados, Sierra de San Pedro, Serra de Marofa e outros; nessas inscrições Nábia está relacionada ao deus romano Júpiter, o que não se é de estranhar, as características dadas a Júpiter na península nos dão a clara anexação de um deus local ao romano, muitos apontando para Reue, o Deus Celeste, ligado também aos altos montes e as águas das chuvas. Nábia Corona é a Nábia elevada, a Nábia dos montes, seu aspecto soberano e até mesmo celeste aparece aqui. É a Nábia que está acima do humano, e a ele rende graça pela sua elevação, afinal essa natureza selvagem não está no controle humano, mas é temida por ele.
Nábia, Guardiã da Tribo:
O nome de Nábia foi encontrado grafado nos Castros de O Picato (Nábia Arconunieca) e Penarrubia e outros núcleos populacionais, em alguns com os epítetos Sesmaca e Arconunieca, ambos termos ligados à localidade, o que a coloca como divindade tutelar de diversas populações; ela é a guardiã da tribo com seu escudo e espada, é a Nábia guerreira, que está junto com a tribo, protegendo-a e guiando-a em suas batalhas. Aqui ela se aproxima do humano, ela é Terra e Tribo, está intimamente ligada a eles.
Nábia das águas:
A Nábia das águas é a da Fonte dos Ídolos e dos rios Navia, Nabão e Neiva, e nesse ponto ela exerce duas funções, a de nutridora e de guia ao outro mundo. Suas águas nutrem a terra, permitem que os campos cresçam em abundância e os gados tenham os melhores pastos, a fertilidade é o que ela dá ao camponês, e ele lhe faz oferendas de carneiro, frutos e flores. Mas essas águas também são passagens para o Outro Mundo; ela é a que abre os portais, é o entremeio, a que permite o contato com o outro lado e também será a guia após a morte.
Concluindo:
A deusa Nábia é a deusa que une os Três Reinos celtas: a deusa celeste, a deusa da terra e das águas, então ela traz em si o axi-mundi. O que explica o porquê da sua devoção não ser semelhante com as demais deusas da Iberia Celta, de ela ter ultrapassado um único local e ter atingido todo Alto Douro.
Nábia e o Cristianismo
Quando o cristianismo chega a uma determinada região e lá se estabelece, sua intenção é apagar os resquícios das religiões pagãs; isso não aconteceu apenas na Iberia, como em todos os locais em que ele se estabeleceu. Porém tal objetivo não é assim tão fácil, pois a fé não está apenas no espaço, mas na mentalidade das pessoas.
“Poderiam multiplicar-se os exemplos desta persistência, embora desvanecida, do antigo culto das águas nas tradições populares. As práticas rituais primitivas destas devoções religiosas ainda no século VI da era cristã eram conservadas integralmente entre muitas populações da Península, apesar da expansão do Cristianismo, pois sabemos, por exemplo, que S Martinho de Durine, na sua evangelização do território bracáreas condenava as superstições heréticas, arraigadas no povo, que continuava mantendo a crenças nas ninfas e noutras divindades do Panteão romano e dos anteriores cultos indígenas ” (SANTOS JUNIOR, J.R & CARDOZO, Mário, 1953, p.57)
O culto a Nábia foi combatido por diversos lados. Era praxe nos montes construir templos cristãos sobre seus lugares de devoção, esconder os resquícios por meio da cristianização do espaço, fatos que a arqueologia traria à tona em seus achados; aras votivas foram encontradas na igreja São João do Campo e há possibilidade de que uma capela dedicada à virgem tenha sido construída em cima de um altar de devoção à Nábia em Penafiel.
Nas águas é que surge a figura da santa, Santa Iria de Tomar:
“Segundo a lenda de Santa Iria, em 653, quando a jovem professa rezava próximo de Tomar, numa capela situada na margem do Nabão, terá sido morta e lançada ao rio, vindo o corpo a navegar até Santarém. Tratar-se-ia de uma freira do convento beneditino fundado em 640 por S. Frutuoso, bispo de Braga, na margem do Nabão? Ou, de facto, nunca passara de uma lenda incomprovada?
A poucos quilómetros de Tomar, e não longe do rio, há uma povoação que tomou o nome de uma santa, igualmente assassinada e atirada ao Nabão. Trata-se de Santa Cita, uma jovem freira, de época muito anterior à da outra mártir.
Poder-se-ia aceitar, inquestionavelmente, a existência destas duas virgens do martirológio cristão, como santas portuguesas, se não fossem as suas homónimas de regiões distantes com semelhante percurso hagiográfico. Pululam as santas Irena ou Irina, bizantina, grega e romana. Se atentarmos na Vitae de Santa Irina de Magedon, nas Balcãs, que a situa no ano de 305 e aponta o seu culto para o dia 5 de Abril (e aqui saliente-se a curiosa coincidência com a data do culto a Nabia, inscrita na ara de Marecos), constatamos que a santa, depois de torturada, é fechada num túmulo, e ao cabo de uns dias, quando o abrem, o corpo terá desaparecido, o que se torna uma situação muito idêntica ao da Iria peninsular!”(SOARES, Lina Maria, 2010, p.214)
A lenda da santa é a tomada do Rio Nabão pelo Cristianismo, é a tentativa de apagar os cultos das águas à Nábia, é tornar as águas culto à nova fé.
De qualquer forma, as tentativas de apagar os cultos à Nábia não deram de todo certo, ou nem eu, nem outros, estaríamos falando dela hoje, pois nada na história da humanidade se apaga, só precisa ser relembrado; essa foi a idéia ao escrever sobre Nábia, pois ela ainda vive.
Bibliografia:
MELENA, José L. – Un Ara Votiva in: VELEIA, Revista de Prehistoria, Historia Antigua, Arqueologia y Filologia Clasicas. Pais Vasco: 1984.
OLIVARES PEDREÑO, Juan Carlos – Los Dioses de la Hispânia Céltica – Madrid : Real Academia de la Historia : Universidad de Alicante,2002.
SANTOS JUNIOR, J.R & CARDOZO, Mário – Ex- Votos às Ninfas em Portugal. Salamanca: Zephyrus – Revista de prehistoria y arqueología Vol. IV, 1953
SOARES, Lina Maria – Da Scallabis Romana a Sactarem: Espaços, Gentes e Lendas in: Espaços e Paisagens. Antiguidade Clássica e Heranças Contemporâneas. Vol. 3. História, Arqueologia e Arte, org. OLIVEIRA, Francisco et. all. Coimbra: Associação Portuguesa de Estudos Clássicos – APEC, 2010.
VASCONCELLOS, J. Leite de – Religiões da Lusitânia, Volume II, Lisboa: Imprensa Nacional, 1905.
Original: http://www.ramodecarvalho.com.br/mitologia/mitologia-continental/deusa-nabia/
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