Somos a geração de mulheres que não podem mais ter tempo livre: estamos sempre a remarcar o café com as amigas e a salvar nos favoritos as receitas sem glúten que nunca testamos, postergamos a caminhada relaxante no final do dia e deixamos secar as suculentas e violetas que não temos tempo de regar, marcamos “tenho interesse” em inúmeros eventos de lazer que raramente conseguimos comparecer e nos esforçamos para não esquecer dos livros de poesia que um dia, quando sobrar tempo, tentaremos ler.
Essa é a condição da mulher contemporânea que passou a ver como única condição para a sua existência o acúmulo de títulos, cargos e cursos. Ora estamos pressionados a buscar com obstinação o alcance de uma vaga de emprego “estável”, ora estamos comprimidos na severa linha de produção acadêmica. Mediante tamanha exposição a ideologia do sucesso individual e incitação a competição, assistimos com medo a nutrição de nossas sombras egoístas e invejosas. Enquanto nossos objetivos não são alcançados recebemos com receio as atualizações dos nossos contatos no linkedIn e acompanhamos com ansiedade o lattes de nossos concorrentes em concursos que se quer foram lançados.
Estamos todas imersas (submersas e nos afogando!) nesse cenário que apesar de se apresentar como sinônimo de emancipação e libertação tem nos colocado sob um regime de escravidão. Para cumprir as metas impostas por esse sistema estamos negligenciando nossos ciclos, forçando nossos limites pessoais e adiando para a aposentadoria o nosso almejado contato com a arte, com o lúdico, com outras mulheres, com a natureza e com tudo aquilo que representa o prazer e o bem-estar em nossas jornadas. Na medida em que uma atividade não avoluma nossas contas bancárias ou não estica nossos currículos ela é imediatamente alvo de julgamento e repressão. Como consequência desse fenômeno, alojamos em nossos ombros o peso da culpa e seguimos dizendo sim a essa sociabilidade cruel que em troca do nosso sangue e da nossa essência, oferece a promessa do sucesso individual. Estamos todas no mesmo barco, ele está afundando e o nosso socorro virá somente no dia em que Héstia retornar ao governo de nossos lares-corações.
Héstia é a deusa que tem como símbolo o círculo, a deusa da lareira que mantinha acesa a chama nos lares, templos e cidades gregas. Sua presença era solicitada sempre que se fazia necessário o aquecimento ou a consolidação de uma lar e o estabelecimento do compartilhar nas relações. Héstia possuía qualidades essenciais que podiam ser honradas com fluidez pois ela não se deixava perturbar por influências e coerções externas. Em um momento em que nos encontramos afastadas dos caminhos dos nossos corações e que constatamos nosso compartilhar sendo substituído pelo competir parece fundamental acolhermos a presença arquetípica de Héstia.
A presença de Héstia nos auxilia a mergulhar em nosso interior e a reacender a intuição para que nosso foco seja direcionado para a plenitude de nossas essências individuais e não para as pressões que vem de fora. Héstia representa a mulher que imersa na organização de seu lar entra em profunda meditação e estado de harmonia. A mulher sob a presença de Héstia cuida dos detalhes de seu quintal ao mesmo tempo em que rega seu jardim interno. Nesse momento ela esta sob o domínio da paz interior e o tempo que corre agitado lá fora, ali no seu lar-coração já não existe mais. A mulher que nutre sua Héstia e aquece seu lar com amor não o faz para agradar alguém mas como uma forma de cuidado íntimo consigo.
Héstia enquanto protetora da lareira não é uma deusa de grandes causas ou com uma personalidade reconhecida, ela se sustenta em seu anonimato e na alegria interior de reinar sobre seu lar e sobre si mesma. A mulher que cultiva o arquétipo de Héstia permanece inabalável em relação a pressão para aquisição de bens, títulos ou prestígio. Ela simplesmente é e sua vida simples é plena de significados, sentidos e a conecta ao todo. A desvalorização de Héstia afasta a mulher do seu centro de paz interior e da sua capacidade de ser absorvida pelo tempo, de perder-se nele realizando algo que lhe dá prazer e que pacifica sua alma.
Convocar Héstia para o nosso cotidiano nos ajuda a nos desapegarmos das cobranças e olhares externos, da opressão do relógio e das metas exteriores que nos são impostas diariamente. Convidar Héstia para nos possuir significa meditar através do cuidado diário e afetivo com uma planta ou com um animal, significa entregar-se a preparação de um jantar ou desprender amor a organização de uma estante de livros. Héstia nos estimula a entregar nosso tempo a nós mesmas, aos nosso anseios mais íntimos e as pequenas coisas que nos dão prazer.
A participação da mulher no mundo do trabalho e na produção do conhecimento são conquistas louváveis e consequências de lutas e engajamentos importantíssimos. No entanto, é preciso repensar a forma como nos apropriamos dessas conquistas. Temos realizado a entrega irrestrita do nosso tempo a caminhos que muitas vezes não condizem com os caminhos do nosso coração e aceitado jornadas que nos são ditadas por fatores externos e que fortalecem e perpetuam ideologias com as quais não concordamos.
A competitividade e a busca por notoriedade e triunfo vem fazendo com que as mulheres se omitam em relação as suas aspirações particulares mais sinceras e também com que se afastem umas das outras, deixando que se dissipe a riqueza e a sacralidade do tempo feminino compartilhado. Convoquemos Héstia para nos amparar enquanto afirmamos para esse sistema que podemos considerar nosso lar o nosso reino, que ele pode ser constituído somente por nós mesmas e ainda assim, estaremos realizadas.
Que Héstia nos ampare enquanto proclamamos que podemos estar plenas em uma carreira profissional proeminente mas também temos o direito de nos contentar com carreiras anônimas, ter salários modestos e uma vida simples que nos proporcione tempo livre para realizarmos tarefas que aqueçam nosso coração e façam o relógio sumir. Lutemos para que nossas lareiras estejam sempre protegidas e o fogo em nossas almas sempre aceso. Lutemos para que nossos desejos mais íntimos sejam ouvidos e não mais substituídos pelas necessidades alheias. Lutemos pelo fim de nossa rendição a esse sistema sufocante que esfria nossos corações e perturba nossas mentes. Lutemos pelo retorno de Héstia.
Autora: Talita do Lago Anunciação.
Original: Brasil 247.
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