Um novo livro mostra que a liberdade sexual não começou com os cabeludos nos anos 1960. Surgiu no século XVIII, por uma aliança de prostitutas, intelectuais e libertinos.
O mundo em que vivemos é um monumento intelectual ao Iluminismo. A superioridade da razão, a primazia da consciência individual e a noção de que as leis da natureza (e não de Deus) governam o mundo são pilares da visão moderna sobre a vida. Essas premissas do Iluminismo estão tão entranhadas na consciência contemporânea que se tornaram parte do senso comum. Mais de 300 anos depois do movimento que sacudiu o mundo cristão e serviu de base às revoluções Americana e Francesa – assim como ao surgimento da ciência e da sociedade como as conhecemos –, ainda é possível encontrar, na mente de um rapaz de 20 anos que caminhe pelas ruas, concepções que vieram diretamente do arsenal iluminista, mesmo em áreas inesperadas e surpreendentes como o sexo.
Uma dessas premissas, que sobreviveu intacta desde 1700, diz respeito à diferença entre a sexualidade dos homens e das mulheres. Por volta de 1700, formulou-se uma tese segundo a qual os homens, como todos os animais, precisam naturalmente de sexo e deveriam estar mais ou menos livres para procurá-lo; e as mulheres, embora filhas da mesma natureza, estão sujeitas a outras regras de procedimento. No caso delas, decidiu-se, a necessidade de sexo era menor, por isso deveriam levar vida mais casta.
“Essa ideia estava em choque com toda cultura anterior desde a Bíblia, que apontava a mulher como naturalmente lasciva, incapaz de conter seu desejo sexual”, disse a ÉPOCA Faramerz Dabhoiwala, historiador da Universidade de Oxford, autor de As origens do sexo – uma história da primeira revolução sexual (Editora Globo, 687 páginas), monumental estudo sobre o sexo na Grã-Bretanha e na América do Norte entre os séculos XVI e XVIII. “Ainda somos tão influenciados pelo período iluminista que reproduzimos até suas contradições, como tratar de forma diferente a sexualidade de mulheres e homossexuais.”
O livro de Dabhoiwala, recebido com aplausos e prêmios no mundo anglo-saxão, revê radicalmente a história da liberdade sexual. Em vez de invenção dos jovens cabeludos dos anos 1960, que incendiaram as ruas de Paris e tomaram as pastagens de Woodstock pelo direito de transar sem casar, ele a atribui a uma conquista de libertinos e prostitutas dos anos 1700, que lutavam nas ruas de Londres e na Justiça contra a polícia dos costumes. O resultado prático desse embate é sintetizado numa estatística: em 1650, apenas 1% das crianças inglesas nasciam fora do casamento. Em 1800, esse número subira para 20%. “Como na época não havia contraceptivos, essa é uma evidência forte de que as pessoas faziam mais sexo. Em todas as classes sociais” afirma Dabhoiwala.
Os antecedentes, o contexto e os detalhes dessa transformação vertiginosa constituem o material de As origens do sexo.
O Estado, antes do século XVIII, tinha o direito de se imiscuir no comportamento íntimo das pessoas, porque não existia a noção da privacidade do corpo ou da vida. Tudo era público, e discutido publicamente, segundo os preceitos da religião e das leis, que se misturavam arbitrariamente. O Estado tinha o direito de investigar, julgar e executar, com base em ritos sumários, que dispensavam a necessidade de evidências factuais e testemunhos isentos. As pessoas eram condenadas por “fama” e “circunstâncias suspeitas”.
Se uma mulher casada permanecesse com outro homem que não fosse seu marido entre quatro paredes, poderia ser condenada à morte por adultério. Se um jovem solteiro de “má fama” fosse acusado de incidir sexualmente sobre uma mulher (ainda que solteira), poderia ser preso, açoitado e exilado por “fornicação”. O sexo entre homens, tratado pelo termo bíblico de sodomia, era punido com a morte. A polícia dos costumes e uma rede vigilante de delatores comunitários cuidavam para que as regras fossem implementadas sem desvios.
Um dos fundamentos desse mundo repressivo era a concordância coletiva em torno de seus valores. O público acreditava que o sexo fora do casamento era pecado. Tinha certeza de que Deus as puniria por seus erros. Concordava que a comunidade tinha o direito de vigiar e denunciar infratores, pois eles poderiam colocar a coletividade em desgraça junto a Deus. Havia vozes que se levantavam para defender que não havia erro em fazer sexo, mas eram tímidas e esporádicas. No livroTrópico dos pecados, que trata da inquisição sexual no Brasil no final do século XVI, o historiador Ronaldo Vainfas mostra que, mesmo na colônia desregrada, sujeita a controle social mais frouxo que nas metrópoles, a maioria moral prevalecia. “Para cada homem que negava haver pecado na fornicação”, escreve Vainfas, “vários diziam o contrário, advertindo o suposto herege e não raro denunciando-o à Inquisição.”
Dabhoiwala mostra como a combinação de uma série de novidades históricas acabou com a unanimidade moral. Primeiro, diz ele, veio o crescimento das cidades. Vigiar e punir, em metrópoles como Londres e Paris, tornou-se virtualmente impossível. O autocontrole das comunidades rurais de 200 pessoas não era aplicável a cidades com quase 1 milhão de habitantes. Depois houve as guerras religiosas entre protestantes e católicos, a partir do século XVI. Elas abriram a porta ao dissenso radical das ideias que levaria, gradualmente, ao rompimento do fundamentalismo religioso e ao questionamento da ordenação divina da sociedade. Por fim, emergiu desse caldeirão de ideias e fatos a noção de indivíduo, onde antes havia apenas Deus, a família e a comunidade. O indivíduo abstrato, com seus direitos e aspirações, passou a ocupar o centro das atenções dos intelectuais e agitadores políticos. É a esse novo homem, um igual entre iguais, que se dirige o preâmbulo da Constituição americana de 1787, ao afirmar o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade.
Quando o médico austríaco Sigmund Freud publicou Três ensaios sobre a sexualidade, em 1905, e estabeleceu a importância do impulso sexual sobre o comportamento humano, houve escândalo e discordâncias. Mas a balança moral já se inclinara em direção à liberdade. Mesmo atacado, Freud podia dizer, anos depois: “A moral sexual – como é definida pela sociedade, e em sua forma mais extrema pelos americanos – parece-me muito desprezível. Defendo uma vida sexual incomparavelmente mais livre”. No tempo dele, a repressão sexual ainda era forte, mas não era mais exercida pela polícia. Ficara a cargo da educação, da família e da religião. Tornara-se ideológica – e podia ser combatida abertamente.
Freud trabalhava sobre a herança de gigantes intelectuais como o enciclopedista Denis Diderot (1713-1784), nas palavras de Dabhoiwala, um “obcecado” pelas questões da moral sexual. “Os iluministas acreditavam que o sexo estava no coração daquilo que definia a humanidade. Ele era absolutamente essencial ao projeto iluminista”, diz Dabhoiwala. “Eles consideravam o sexo como o prazer mais importante da vida, fundamental ao propósito da felicidade.”
Passados 300 anos, é possível identificar esses valores nas ideias que ouvimos e repetimos todos os dias. O sexo evoluiu da condição de pecado para a de manifestação inevitável e saudável de vida. A tolerância em torno dele, seja profissional, seja amador, tornou-se universal. A última barreira é o preconceito contra homossexuais, mas ele perde espaço em toda parte. Apenas nas sociedades pré-modernas, em que o fundamentalismo religioso e os comportamentos tradicionais ainda vigoram, persistem a proibição sexual e as patrulhas do comportamento.
A única forma de progresso inventada pela humanidade exige um grau cada vez maior de liberdade para homens e mulheres. E mais liberdade, como ficou claro em 1700, leva, inevitavelmente, a mais sexo.
Autor: Ivan Martins. Publicado em Época.
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