Não é necessário representar esta antiga religião como as que foram fundadas mais tarde, com a humanidade mais evoluída. Há muitos séculos que o gênero humano não admite mais uma doutrina religiosa senão com duas condições: uma, que tenha um único deus; outra, que se dirija a todos os homens, e seja acessível a todos, sem afastar sistematicamente nenhuma classe ou raça. Mas a religião dos primeiros tempos não preenchia nenhuma dessas condições. Não somente não oferecia à adoração dos homens um único deus, mas ainda seus deuses não aceitavam a adoração de todos os homens. Não se apresentavam como sendo os deuses do gênero humano. Não se assemelhavam nem mesmo a Brama, que era, pelo menos, o deus de uma grande casta, nem a Zeus Pan-heleno, que era deus de toda uma nação. Nessa religião primitiva cada deus só podia ser adorado por uma família. A religião era puramente doméstica.
O culto dos mortos de nenhum modo se assemelha ao que os cristãos dedicam aos santos. Uma das primeiras regras desse culto era que não podia ser observado senão pelos familiares de cada modo. Os funerais não podiam ser religiosamente observados senão pelo parente mais próximo. Quanto ao banquete fúnebre, que depois se celebrava em épocas determinadas, apenas a família tinha o direito de assisti-lo, e os estranhos eram severamente excluídos. Acreditava-se que o morto não aceitava a oferta senão da mão dos parentes, não queria o culto senão de seus descendentes. A presença de um homem que não pertencesse à família perturbava o repouso dos manes. A lei, portanto, proibia aos estranhos aproximar-se de um túmulo. Tocar com o pé, mesmo por descuido, uma sepultura, era ato de impiedade, pelo qual se devia aplacar o morto e purificar-se. A palavra pela qual os antigos designavam o culto dos mortos é significativa: os gregos diziam pratiázein, os latinos parentare, porque as preces e oferendas não eram endereçadas senão aos antepassados de cada um. O culto dos mortos era, verdadeiramente, o culto dos antepassados.
Na Índia, como na Grécia, a oferta não podia ser feita ao morto senão pelos seus descendentes. A lei dos hindus, como a ateniense, proibia receber estranhos, embora amigos, no banquete fúnebre. Era de tal modo necessário que o banquete fosse oferecido pelos descendentes do morto, e não por outras pessoas, que se supunha até que os manes, em sua morada, faziam freqüentemente este voto: “Que nasçam sucessivamente de nossa estirpe filhos que nos ofereçam, na continuidade dos tempos, arroz cozido em leite, mel e manteiga purificada”.
Por essa razão na Grécia e em Roma, como na Índia, o filho tinha o dever de fazer libações e sacrifícios aos manes do pai e de todos os ancestrais. Faltar a esse dever era a mais grave impiedade que se podia cometer, pois a interrupção desse culto provocava uma série de mortes, e destruía a felicidade. Tal negligência era considerada verdadeiro parricídio, multiplicado tantas vezes quantos antepassados possuía o filho negligente.
Se, pelo contrário, os sacrifícios eram sempre observados de acordo com os ritos, se os alimentos eram levados ao túmulo nos dias marcados, então o antepassado tornava-se deus protetor. Hostil a todos os que não descendiam dele, expulsava-os de seu túmulo, castigando com doenças os que dele se aproximavam; para os seus, porém, era bom e compassivo.
Havia perpétua troca de favores entre os vivos e os mortos de cada família. O ancestral recebia dos descendentes a série de banquetes fúnebres, isto é, a única alegria que podia experimentar em sua segunda vida. O descendente recebia do antepassado a ajuda e a força de que necessitava neste mundo. O vivo não podia abandonar o morto, nem o morto ao vivo. Por esse motivo estabelecia-se poderosa união entre todas as gerações de uma mesma família, constituindo assim um corpo inseparável.
Cada família tinha seu túmulo, onde seus mortos vinham descansar um após outro, sempre juntos. Todos os que descendiam do mesmo sangue aí deviam ser enterrados, e nenhum homem de outra família podia ser nele admitido. Nele celebravam-se as cerimônias e aniversários. Cada família acreditava possuir antepassados sagrados. Nos tempos mais remotos, o túmulo ficava dentro da propriedade da família, no centro da casa, não longe da porta “a fim de que — diz um antigo — o filho, entrando ou saindo de sua morada, encontrasse todas as vezes os pais, dirigindo-lhe vez por vez uma invocação". Assim o antepassado mantinha-se no meio dos seus; invisível, mas sempre presente, continuava a fazer parte da família, e a ser o pai. Imortal, feliz, divino, interessava-se por aquilo que deixara de mortal sobre a terra; conhecia-lhes as necessidades e amparava-os na fraqueza. E aquele que ainda vivia, que trabalhava que, segundo expressão antiga, não se havia desempenhado da existência, esse tinha junto a si guias e apoio, que eram os pais. No meio das dificuldades, invocava sua antiga sabedoria; no sofrimento pedia-lhes consolo; no perigo, apoio; depois de uma falta, perdão.
Na verdade, hoje em dia muito dificilmente poderemos compreender que o homem possa adorar ao pai ou a um antepassado. Mas reflitamos que os antigos não tinham idéia da criação; para eles o mistério da geração era o que para nós pode ser o mistério da criação. O que gerava parecia-lhes uma criatura divina, e por isso adoravam os antepassados. Era necessário que esse sentimento fosse muito natural e poderoso, porque aparecia como princípio de uma religião na origem de quase todas as sociedades humanas; encontramo-lo entre os chineses, como entre os antigos getas e citas; entre os povos da África, como entre os do Novo Mundo.
O fogo sagrado, que tão intimamente estava ligado ao culto dos mortos, tinha também, como caráter essencial, pertencer apenas a uma família, representava os antepassados; era a providência da família; não tinha nada em comum com o fogo da família vizinha, que era outra providência. Cada lar protegia apenas os seus.
Toda essa religião limitava-se ao círculo de uma casa. O culto não era público. Pelo contrário, todas as cerimônias, eram celebradas apenas pelos familiares. O fogo sagrado nunca era colocado fora da casa, nem mesmo perto da porta externa, onde um estranho poderia vê-lo. Os gregos colocavam-no sempre em um recinto fechado, para protegê-lo do contacto e olhar dos profanos. Os romanos escondiam-no no meio da casa. Todos esses deuses, fogo sagrado, lares, manes, eram chamados de deuses escondidos, ou deuses do interior. Para todos os atos dessa religião exigia-se segredo; se uma cerimônia fosse assistida por um estranho, era considerada perturbada, manchada por um único olhar.
Para essa religião doméstica não havia nem regras uniformes, nem ritual comum. Cada família tinha a mais completa independência. Nenhum poder exterior tinha direito de dar regras para esse culto ou crença. Não havia outro sacerdote além do pai; como sacerdote, ele não conhecia nenhuma hierarquia. O pontífice de Roma, ou o arconte de Atenas, podia certificar-se de que o pai de família cumprisse todos esses ritos religiosos, mas não tinha o direito de obrigá-lo a nenhuma modificação. Cada família tinha suas cerimônias, que lhe eram próprias, suas festas particulares, suas fórmulas de oração e seus hinos. O pai, único intérprete e pontífice dessa religião, era o único que tinha o poder de ensiná-la, e não o podia fazer senão a seu filho. Os ritos, as palavras da oração, os cantos, que faziam parte essencial dessa religião doméstica, eram patrimônio ou propriedade sagrada, que a família não participava a ninguém, e que era até proibido revelar a estranhos.
Assim, a religião não residia nos templos, mas nas casas; cada um tinha seus deuses; cada deus protegia apenas a uma família, e era deus apenas de uma casa. Não se pode supor razoavelmente que uma religião com tais características fosse revelada aos homens pela imaginação poderosa de alguém, ou que fosse ensinada por uma casta de sacerdotes. Ela nasceu espontaneamente no espírito humano; seu berço foi a família; cada família fez seus próprios deuses.
Esta religião não podia propagar-se senão pela geração. O pai, ao dar vida ao filho, dava-lhe ao mesmo tempo sua fé, seu culto, o direito de manter o fogo sagrado, de oferecer o banquete fúnebre, de pronunciar fórmulas de orações. A geração estabelecia misterioso vínculo entre a criança que nascia para a vida e todos os deuses da família. Tais deuses eram sua própria família, theòi enghenéis; seu próprio sangue theòi synaimoi. A criança, portanto, ao nascer, recebia o direito de adorá-los, e de oferecer-lhes sacrifícios, assim como, mais tarde, quando a morte, por sua vez, o divinizasse, ele devia ser contado entre os deuses da família.
Mas é necessário notar esta particularidade: a religião doméstica não se propagava senão de varão para varão. Isso, sem dúvida, prendia-se à idéia que os homens faziam da geração. A crença das idades primitivas, tal como a encontramos nos Vedas, e nos vestígios que ficaram em todo o direito romano e grego, era que o poder reprodutor residia unicamente no pai. Somente o pai possuía o princípio misterioso do ser, e transmitia a centelha da vida. Dessa antiga opinião resultou que o culto doméstico passou sempre de homem para homem; a mulher, dele não participava senão por intermédio do pai ou do marido; depois que estes morriam, a mulher não tomava a mesma parte que o homem no culto e cerimônias do banquete fúnebre.
Autor: Fustel de Coulanges - a Cidade Antiga
Fonte: Ebooks Brasil
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