A morte da italiana Eluana Englaro, que estava em coma havia 17 anos, na última segunda-feira (9/2), levantou mais uma vez a antiga polêmica sobre a eutanásia -a prática de auxiliar na morte de algum paciente que está sofrendo em estado terminal.
O procedimento tem forte oposição da Igreja Católica e é proibido na maioria dos países. Mas na Antiguidade, antes do surgimento do cristianismo, ajudar alguém a ter uma 'morte boa' era algo permitido e até corriqueiro.
A maioria dos médicos da Antiguidade era relutante em tratar casos ‘incuráveis’, deixando para os pacientes terminais poucas opções que não a eutanásia. Muitos filósofos da Grécia e Roma antigas consideravam o suicídio uma ‘morte boa’, como resposta apropriada e racional a diversos males.
Mas, apesar dessa permissividade, o juramento de Hipócrates, feito entre os séculos 5 a 3 antes de Cristo, condena a eutanásia. Segundo Ian Dowbiggin, historiador e autor de "A Concise History of Euthanasia", em entrevista ao G1 por telefone, isso provavelmente ocorreu como uma forma de protesto contra grande número de casos. "Os seguidores de Hipócrates proibiam os médicos de tirar a vida de um paciente. Mas na Roma e Grécia antiga no geral havia uma tolerância grande sobre a autanásia e o suicídio. Geralmente os médicos da época abandonavam o leito quando percebiam que um paciente estava quase morrendo."
A atitude dos gregos e romanos antigos a favor da morte assistida encontrou resistência nos primeiros séculos de nossa era: o judaísmo e a emergência do cristianismo criticaram fortemente a morte que não fosse natural. Mais tarde, um grande porta-voz dessa moral foi Santo Agostinho, que, em seu livro “Cidade de Deus” (de 428), argumentou que o suicídio era simplesmente outra forma de homicídio e que, portanto, também era proibido. Os reformistas eram tão ou mais contrários à eutanásia do que os católicos.
Foi apenas na Europa Moderna que o tema do suicídio e da dúvida sobre viver ou não começou a ser discutido em livros, peças de teatro e entre os intelectuais da época. A crença romana e grega que a eutanásia era uma vitória teve um pequeno ressuscitamento. Mas, apesar do intenso debate, o apoio ao suicídio como afirmação da autonomia individual e protesto contra a convenção moralista da Igreja ainda era pequeno no final do século XVIII.
Filósofos do iluminismo como Charles de Montesquieu, David Hume e Voltaire não apenas descreviam o suicídio como socialmente desejável e uma questão de opção pessoal, como também citavam a teoria de que eram fatores materiais que levariam uma pessoa a cometê-lo. A consequência a longo prazo desses escritos e debates foi o repúdio e posterior abolição de leis que criminalizavam o suicídio.
Outra mudança que ocorreu ao longo dos séculos XVIII e XIX foi a posição dos médicos em relação aos pacientes terminais. Se, nos séculos anteriores, saíam do lado do enfermo quando ficava claro que não havia mais forma de salvá-lo, no século XIX uma nova ética era formada e os médicos começaram a se preocupar mais com o bem-estar dos enfermos.
Segundo Shai Joshua Lavi escreve no livro "The Modern Art of Dying" ("A Moderna arte de morrer", inédito em português), "a palavra eutanásia passa a não mais significar apenas ‘boa morte’, mas sim o que os médicos poderiam fazer para assegurar uma boa morte. [...] A lei do leito de morte mudou da religião para a medicina”.
De acordo com André Mota, coordenador do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP, foi "através do desenvolvimento tecnológico da medicina, já no século XX, que se desenvolveram tecnologias capazes de atenuar o sofrimento dos pacientes terminais. Precisamos compreender que o médico moderno surgirá no século XVIII, com uma nova concepção do hospital e da presença do médico privandamente na casa das pessoas."
Os médicos não deveriam apenas ajudar o paciente a ter uma boa morte, mas deveriam evitá-la e postergá-la. E, à medida que leis foram criadas, morrer passou a ser um problema social, e não apenas um sofrimento individual.
O desenvolvimento de uma tecnologia que permite mater alguém vivo, embora sem consciência, aprimorou o debate. "A introdução de novas tecnologias mudou a atitude em relação à eutanásia. Hoje há um apoio maior em relação a opção de escolher entre viver entubado e em coma ou morrer simplesmente", explica o historiador Dowbiggin. Segundo ele, há universidades nos EUA e no Canadá que já não obrigam seus alunos formandos a proferir o juramento de Hipócrates, que condena a eutanásia.
Nos Estados Unidos, os estados de Oregon e Washington permitem a prática. Bélgica, Holanda e Suiça também legalizaram o procedimento.
Fonte: G1
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