No dia 31 de agosto de 2022, foi divulgada uma pesquisa feita pelo site JOTA e pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados (IBPAD) sobre a opinião dos brasileiros em relação ao casamento homoafetivo. A pesquisa entrevistou cinco mil pessoas e mostrou que 57% delas concordam que homossexuais devem ter esse direito. Ainda de acordo com a pesquisa, 69% dos potenciais eleitores de Lula (PT) e 38% de Jair Bolsonaro (PL) são favoráveis ao casamento igualitário.
Os dados referentes aos eleitores de Bolsonaro não impressionam se pensados a partir de estratégias discursivas de ódio à diversidade que têm sido acionadas desde quando o atual presidente era deputado federal. É possível falar em “estratégias discursivas” nesse contexto porque o que se percebe é que a chamada “pauta de costumes” tem sido um instrumental a serviço do avanço e da manutenção do neoconservadorismo.
Como disse o Prof. Dr. Michel Gherman, da UFRJ, na palestra “Religião, reacionarismo e espaço público no Brasil” (2022), o bolsonarismo tem um vínculo radical com a estética, e, justamente por isso, lida com questões que estão em nosso imaginário e sentimentos que são despertados através dessas imagens. Uma das mais acionadas é esta, a da família. Mas, não uma família qualquer, a “família tradicional brasileira” e, como tem sido reforçado pela presença pública de Michelle Bolsonaro, a “família evangélica".
A noção de família acessa campos simbólicos que nos são constitutivos enquanto sociedade. Falar sobre economia, sobre o decrescimento do PIB, sobre índices inflacionários, pouco comunica para muitas pessoas. Essas são questões que grande parte da sociedade percebe no dia a dia, na hora da compra no supermercado, na hora de pagar as contas. Por isso, quando Jair Bolsonaro, e, mais ultimamente, Michelle Bolsonaro, acionam o conceito de família eles criam um rápido vínculo comunicacional e simbólico. Deste modo, a partir desse tema, levam a política para as casas, para as igrejas, porque estão tratando de uma questão que, por muito tempo, foi considerada como da esfera do privado. Eles criam uma mística de proteção do privado por meio da política – afinal, não é a família apenas, é a segurança da família, é a manutenção da família, é a promessa de que privilégios serão mantidos.
Nesse cenário, famílias homotransafetivas são rechaçadas e a escalada neoconservadora contra a diversidade é acirrada. Comumente, mesmo no campo mais progressista evangélico, a pauta de costumes é considerada como sendo “cortina de fumaça”, ou seja, algo que mascara ou esconde as reais intenções das falas e ações. Entretanto, o que tem se mostrado na prática, principalmente, nos últimos quatro anos, é que a pauta de costumes não é a cortina de fumaça, é a própria fogueira! Os discursos de ódio à diversidade servem como combustível para o acirramento da violência e para a manutenção de um regime quer aniquilar tudo o que não está a serviço do avanço do neoconservadorismo.
Não à toa, o Brasil continua sendo, de acordo com relatório de 2021 do Grupo Gay da Bahia, o país do mundo onde mais LGBTIA+ são assassinados: uma morte a cada 29 horas. Ainda assim, o lema tão evocado de “pelo amor à família!” tem sido expandido por um sem número de arranjos familiares, dentre eles as famílias homotransafetivas, que abalam a ideia de “família cristã”.
A “família cristã” se evocada a partir da Bíblia, na verdade, não existe. A Bíblia mostra diversos tipos de arranjos familiares que desestabilizam qualquer modelo único ou exclusivo de família. Por exemplo, na Bíblia existem algumas narrativas de homens casados com várias mulheres, como Elcana, que tinha duas mulheres, Ana e Penina (cf. 1º Samuel 1, 1-2). Existe, também, o exemplo de Salomão, que tinha setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas (cf. 1º Reis 11, 3).
O teólogo Tom Hanks, em seu livro “La Diversidad de ‘Familias’ (50) en la Biblia” (2016), apresenta 50 exemplos de arranjos familiares do Antigo e do Novo Testamento. Segundo o autor: “(…) se a palavra “família” não aparece nas línguas originais, que antes falam de “casas” patriarcais, (…) então nossos [modernos] “valores familiares” não encontram base na Bíblia”.
É impossível afirmar que existe um modelo único de família a partir do texto bíblico. Entretanto, a serviço de um regime de exclusão que favorece homens brancos, cisgêneros e heterossexuais, surgem tradições, dogmas e ideologias de exclusão. Essas disputas ideológicas em torno do conceito de família têm se acirrado no cenário político atual, porque esse debate ainda é um dos principais combustíveis que alimentam a fogueira dos privilégios.
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/a-familia-crista-evocada-a-partir-da-biblia-na-verdade-nao-existe/
Nota: a autora não falou do caso de Abraão que causou-se com a própria irmã. Ou das filhas de Lot, onde o Deus Bíblico fechou os olhos, mas foi castigar Sodoma. Não por seus hábitos sexuais (de onde vem "sodomia"), mas por não terem sido hospitaleiros. Tem a dita Sagrada Família, mas eu escrevi sobre esse modelo em algum lugar.
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