A verdade é um erro.
A verdade é um critério necessário à conservação da vida. É verdadeira uma opinião, ou uma atitude, na proporção
em que torna possível ou fácil uma adaptação ao meio.
A verdade relativa:
1) Para todos os seres com os mesmos sentidos que nós,
completa ou incompletamente;
2) Para a humanidade em geral;
3) Para aquela parte da humanidade a que nós pertencemos.
1. A verdade chamada metafísica, isto é, o universo tal qual
directamente no-lo revela o conjunto dos nossos sentidos.
2. A verdade chamada moral (propriamente intelectual)
composta das ideias abstractas que distinguem a actividade intelectual humana
da sub-humana.
3. A verdade de valores, que distingue a actividade
intelectual civilizada da não civilizada. (Ou a verdade criativa?)
Houve, por isso, 3 momentos de renovamento desde que caducou
o paganismo puro e simples:
1) A subjectivação pelo simbólico. (Platão)?
2) A subjectivação pela atenção sintética aos sentimentos
como sentimentos; como sujeito (Renascença — vide sentimentalistas e
Shakespeare).
3) A subjectivação pela atenção analítica aos sentimentos
(Romantismo).
Mas o nº 4 não será agora, com o renascimento do ocultismo e
Platão o mero esboço?
Estando tudo mais ou menos confundido, sabe-se o elemento
característico, dos outros períodos?
O fenómeno chamado cristianismo derivou da junção de três
tendências inteiramente diversas e que só a circunstância exteriormente
unificadora de existirem adentro do Império Romano conseguiu jungir em uma só.
(1) A interiorização do paganismo, isto é, a
espiritualização do helenismo;
(2) A emergência extrajudaica do monoteísmo judeu;
(3) A influência cosmopolita do império romano.
(1) O paganismo helénico tem duas feições: a exotérica, que
é a do mito popular e admite os deuses, objectivista, patente, consoante o são
todas as manifestações populares, e, sobretudo, todas as manifestações do
espírito grego; e a esotérica, que o heleno aprendia apenas nos mistérios, a
parte oculta do paganismo, ligada intimamente — mais mesmo que a parte aparente
e normal — aos velhos cultos e sacerdócios do Egipto e do Oriente indefinido.
Em Pitágoras emerge, afirma-se em Platão, este esoterismo
pagão. Porque emerge? Porque o espírito da filosofia pagã começou da limitação
objectivista. Desceu às cavernas das iniciações. Abriu portas insuspeitas no
mistério da alma humana.
O adoecimento do espírito objectivo.
O sincretismo helénico, o carácter sintético do paganismo
devia complicar-se . Tendo começado por admitir todos os deuses, devia,
interiorizando-se, acabar por admitir todas as ideias de deuses.
Assim, (...), no seu paganismo fundamental, o cristianismo é
um paganismo de três dimensões, não só externo mas também interno; não só
admissor dos deuses de todas as crenças, mas aperfeiçoador de todas as crenças.
É isto o paganismo superior.
(2) O judaísmo, ao mesmo tempo que põe a força fixadora, põe
a força desvirtuada de Cristo. Na sua essência útil e vital, o cristianismo é
um paganismo interiorizado, um paganismo completo, um politeísmo de dentro.
Mas, com a outra alma, o altropsiquismo dos cultos
orientais, o psiquismo superior foi buscar o monoteísmo judaico, mortal para a
própria essência do paganismo porque exclusivista e fechado.
Tanto assim que toda a renascença ideativa cristã é uma
renascença ao mesmo tempo pagã e platonista. Os dois aspectos acompanham toda a
renascença, porque são o mesmo: um é a essência, outro a consequência. Há duas
renascenças ideativas adentro do cristianismo: a renascença e o romantismo.
Em ambos o paganismo é evidente e o platonismo também. É que
um é a base, outro a sobrebase da força verdadeira do cristianismo.
Na sua essência, o cristianismo é um paganismo esotérico. Na
sua desvirtuação, o cristianismo é um judaísmo degenerado, na sua forma
exterior católica, o cristianismo é um império romano subjugado.
A libertação ocultista moderna serviu, provavelmente, os
fins de trazer o cristianismo ao seu ponto são: o paganismo esotérico.
Para isso é preciso despir-se do culto judaico, isto é, do
seu elemento moral, abolir o humanitarismo de Cristo, (...)
O aperfeiçoamento de qualquer sistema religioso dá-se de uma
de três maneiras, ou de mais do que uma das três conjuntamente: a) pela
intelectualização dos seus elementos míticos componentes; b) pela
subjectivização desses elementos; c) pela sua mera simplificação (complicação)
exterior.
A intelectualização dos elementos componentes distingue-se
da sua complicação pelo facto de que a intelectualização interpreta, ao passo
que a mera complicação não interpreta. A intelectualização chega a um resultado
extremo, supondo que aceita os elementos (como no caso presente, de facto, se
supõe): à redução desses elementos a simbólicos ou símbolos. A complicação não
envolve essa obra: apenas os conduz, a cada um, a um conteúdo mais complexo, a
um alcance maior, portanto, sobre os sentimentos.
O paganismo seguiu um caminho natural ao intelectualizar-se;
mas esse caminho foi perturbado pela erupção de elementos bárbaros, orientais,
que desvirtuaram o sentido desse movimento.
A erupção do elemento oculto, estabelecendo uma base de
aproximação com os credos orientais, deixou aberto o paganismo à invasão dos
princípios daqueles credos, profundamente anarquizantes do paganismo, e da
natureza humana.
A essência do paganismo está em 3 coisas:
1) A pluralidade dos deuses como essência de mitologia;
2) A adopção da criação como ideal humano;
3) A concepção do universo essencial como fenómeno
essencialmente objectivo.
O elemento vital do cristianismo é o paganismo
transcendente, que inclui. É o elemento vital porquanto: 1) é aquele que
estabelece continuidade com o passado; 2) é aquele que representa um
prolongamento do passado, um passo a mais, e não um mero acrescentamento; 3) é
aquele que, em todas as ocasiões de reviviscência europeia, nós vemos que surge
como símbolo, modo em suma, dessa ressurreição.
Há no elemento pagão do cristianismo duas componentes a
notar: o paganismo propriamente dito, e o interiorismo nado do paganismo que se
aprofundou.
Chegado a um certo ponto, o paganismo não podia mais
progredir objectivisticamente; só subjectivando-se podia continuar.
Ora em que consiste a subjectivização? Em 3 fenómenos:
(1) Na redução dos fenómenos objectivos a simbólicos,
desmaterializando-os assim. Não se lhes erra as proporções ou a forma de realidade;
dá-se a essa realidade um sentido de eco e não de palavra, não de questão mas
de interpretação.
(2) Na atenção dada aos fenómenos subjectivos de modo a
dar-lhes, ou a sentir-lhes, uma realidade concreta tão certa como a dos
fenómenos objectivos. Isto é, no alargamento da experiência directa pela
observação intensiva dos fenómenos do espírito.
[Fernando Pessoa]
Fonte: Arquivo Pessoa
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