O valor de um ideal depende, evidentemente: (a) da sua
concordância com a própria noção de ideal, (b) da sua utilidade (...); (c) da
sua capacidade em estimular a acção nobre nos homens.
O ideal é a noção de que a Vida não basta. Pode
considerar-se a vida como não bastando por uma de 3 razões: (a) por ser falsa,
(b) por ser vil, (c) por ser imperfeita. São os modos [...] metafísico, ético e
estético de encarar a vida e o ideal. São os conceitos budista, cristão
(judaico) e pagão da existência.
Uma religião é um conceito do ideal comum a uma
colectividade. Por ser comum a uma colectividade assume aspectos manifestativos
(um ritual).
O ideal tem 3 formas: na sua relação com o universo - a
Verdade; na sua relação com os homens - a Virtude; na sua relação consigo
próprio - a Beleza. A Beleza é o Ideal Puro; é superior à Verdade e ao Bem
porque é a própria substância do ideal, inaplicado e irrefracto. A Beleza é o
que se prefere à vida, sem razão outra do que a preferência.
O ideal pagão é o mais justo e acertado de todos, porque,
assim como a relação fundamental entre o homem e o universo é a sensação, o
conceito metafísico mais acertado é o que baseie o universo na sensação:
portanto, o Misticismo, cujo ponto de partida é a crença na realidade da
sensação, a «crença na sensação» (mais curtamente). Como a essencial relação entre
os homens é a sociedade, a sociedade, em que vivemos, a essencia da virtude
está nas virtudes familiares e políticas. Como a essencial relação do ideal
consigo próprio é o de ser uma afirmação de que a vida não satisfaz, a noção
mais absoluta e pura do ideal é a de que a vida é imperfeita, se se considerar
as razões porque o é , se é por ser falsa, se é por ser vil, se por outra
qualquer. Assim o ideal pagão, a que estas 3 formas correspondem, é o mais
certo e justo de todos.
[Ricardo Reis/João Pessoa]
Não somos, na verdade, neopagãos, nem pagãos novos.
Neopagão, ou pagão novo, não é termo que tenha sentido. O paganismo é a
religião que nasce da terra, da natureza direitamente — que nasce da atribuição
a cada objecto da sua realidade verdadeira. Por sua própria natureza de
natural, ele pode aparecer e desaparecer, mas não mudar de qualidade.
«Neopagão» é um termo que tem tanto sentido como «neopedra» ou «neoflor». O
paganismo aparece com a saúde, desaparece com o adoecimento, do género humano.
Pode estiolar-se, como uma flor se estiola, e morrer, como morre uma planta.
Mas não toma a forma de outra coisa, nem é susceptível de formas diferentes da
sua substância.
Nós, que somos pagãos, não podemos usar um nome que indique
que o somos como «modernos», ou que viemos «reformar», ou «reconstruir» o
paganismo dos gregos. Viemos ser pagãos. Renasceu em nós, o paganismo. Mas o
paganismo que renasceu em nós é o paganismo que sempre houve — a subordinação
aos deuses como a justiça da Terra para consigo mesma.
Um estudioso do paganismo não é um pagão. Um pagão não é
humanista: é humano.
Aquele «paganismo» moderno, ou «neopaganismo», que não
compreende os dias santos, mas sim os poetas místicos, nada tem de comum com o
paganismo.
O pagão tem simpatia pela superstição, porque o homem que
não é supersticioso não é homem; mas não sente simpatia pelo humanitarismo,
porque quem é humanitário não é homem.
Para o pagão cada coisa tem o seu génio ou ninfa, cada coisa
é uma ninfa cativa ou uma dríade apanhada pelo olhar; por isso cada objecto tem
para ele uma espantosa realidade imediata, e com cada coisa ele está em
convívio quando a vê, e em amizade, quando lhe toca.
O homem que vê em cada objecto uma outra coisa qualquer, que
não seja isto, não pode ver, amar ou sentir esse objecto. O que dá a cada coisa
o valor de ter sido criada por «Deus», dá-lhe o valor por o que ela não é, mas
por o que ela lembra. Os seus olhos estão postos nessa coisa, e alhures o seu
pensamento.
O panteísta, para quem cada coisa vale pela sua participação
no todo, por igual vê uma coisa para pensar noutra, por igual olha para não
ver. Não pensa nela, mas na continuidade dela com o resto do mundo. Como pode
amar uma coisa quem a ama por um princípio externo a ela? A primeira regra do
amor, e a última, é que a coisa amada seja amada por ser essa coisa e não
outra, e amada por ser objecto de amor, não por haver «razão» para amá-la.
[Antonio Mora/João Pessoa]
Fonte: Arquivo Pessoa.
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