segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Pelo direito à magia

Autor: Fábio de Oliveira Ribeiro.

Não é de hoje que os pastores evangélicos hostilizam as práticas religiosas afro-brasileiras. Os exemplos de violência religiosa são muitos.

A decisão proferida em favor do terreiro de candomblé é impecável:

"Segundo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a liberdade de manifestação da própria crença ou religião é restrita unicamente às limitações prescritas em Lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas.”

“Em consonância com os tratados internacionais, a Constituição da República, no art. 5º, VI, garante a igualdade, inviolabilidade e liberdade de consciência e crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e protege os locais de culto e suas liturgias. No entanto, a liberdade de culto religioso não representa uma garantia absoluta, devendo sofrer limitação quando o seu exercício extrapolar os limites da razoabilidade, a ponto de invadir a esfera de direitos de terceiros…”

“No caso dos autos, os documentos anexados à petição inicial, demonstram uma aparente violência simbólica contra as convicções religiosas da Casa Fanti-Ashanti. A força das manifestações emanadas pelos requeridos não aparenta mero proselitismo, pois as frases de ordem tentam comunicar uma hierarquia entre as crenças.

Não se trata de simples manifestação com o intuito de expressão religiosa ou evangelização. Em verdade, trata-se de manifestação que visa afrontar os frequentadores da Casa Fanti-Ashanti, uma vez que sequer os membros das igrejas representadas pelos requeridos estão de passagem. De fato, conforme se observa das filmagens juntadas em Ids. 67821187; 67821189; 67821193; 67821194 e 67821195, os manifestantes encontram-se parados, proferindo palavras em direção aos filhos da Casa Fanti-Ashanti.”

O juiz que prolatou esta decisão está coberto de razão. Em nosso país e enquanto a Constituição Federal de 1988 estiver em vigor, ninguém tem liberdade para importunar quem quer que seja alegando “liberdade de culto”. Essa garantia constitucional não permite aos evangélicos impor suas crenças aos membros de outros cultos religiosos mediante grave ameaça ou violência. Eventuais abusos cometidos pelos pastores e evangélicos podem e devem ser objeto de responsabilização criminal e, eventualmente, acarretar indenizações por dano material e moral.

Todavia, algo mais precisa ser dito. A intolerância religiosa de alguns evangélicos não é acidental. Ela faz parte de um programa bem estabelecido de disputa simbólica que foi estudado profundamente na dissertação de pós-graduação por Antonio Gracias de Vieira Filho.

Há uma evidente contradição entre a intolerância programática de algumas igrejas evangélicas e a tolerância religiosa prescrita de maneira expressa pela Constituição Federal de 1988. Portanto, não é a toa que alguns pastores costumam vomitar o mantra “mais Bíblia, menos constituição”. Como se consideram interpretes privilegiados da Bíblia, a derrocada do sistema constitucional os elevaria à condição de ideólogos, operadores e governantes no regime político teocrático que eles pretendem implantar e que nós devemos rejeitar de maneira enfática exigindo a aplicação da legislação em vigor.

Aqueles que atacam e agridem os umbandistas, que destroem templos de candomblé e que usam armas de fogo para impor suas crenças obviamente estão completamente mergulhados numa paranoia coletiva. Eles acreditam que podem julgar e condenar as pessoas que tem crenças diferentes, como se não existissem regras jurídicas aplicáveis a todos que garantem a tolerância religiosa e tipificam como crime a violência praticada contra as pessoas dos umbandistas e contra o patrimônio dos cultos afro-brasileiros. Nunca é demais lembrar que o art. 20, da Lei 7.716/1989, com a redação dada pela Lei 9.459/1997, especificamente tipifica como crime a manifestação de intolerância religiosa.

Essa legislação, todavia, parece não amedrontar os evangélicos mais exaltados. Ao que parece existe outra legislação que eles consideram em vigor: aquela que proibia a bruxaria e a feitiçaria durante a Idade Média.

É evidente que a legislação medieval que coibia a bruxaria e a feitiçaria (que parece inspirar a ação de alguns pastores evangélicos) é diametralmente oposta à legislação atual brasileira que garante a liberdade religiosa e criminaliza a violência por razões religiosas e as manifestações de intolerância contra as religiões afro-brasileiras. Gostem ou não os evangélicos, o direito à magia é uma realidade no Brasil. 

A questão de saber se a magia, a feitiçaria ou a bruxaria concretiza ou não aquilo que promete é juridicamente irrelevante desde meados do século XVIII. Com efeito, o Regimento de 1774 da Inquisição “… reflexo das reformas almejadas pelo Marquês de Pombal para o tribunal, foi um ‘marco fundamental para o fim da repressão às práticas mágicas em Portugal’ [e obviamente no Brasil colônia].

Além de ser um princípio civilizatório fundamental, a liberdade religiosa existente no Brasil pode ser considerada uma excelente fonte de renda para os pastores evangélicos. Eles são aferrados aos tesouros que amealham explorando a credulidade popular.

Essa intolerância programática lucrativa (estudada de maneira profunda e detalhada na tese acima mencionada) deveria ser o ponto de partida para começarmos a impor limites à exploração da fé no Brasil.

Não há dúvida de que os pastores não tem direito de julgar e condenar as outras religiões, nem tampouco podem maltratar, ameaçar e agredir umbandistas, macumbeiros, xamãs, etc… como se a legislação medieval de repressão à feitiçaria estivesse em vigor. O dano moral que eles causam às suas vítimas pode e deve ser indenizado na forma do Código Civil. Nesse caso não é preciso qualquer alteração legislativa, pois a intolerância religiosa é crime e os pastores que se tornam criminosos obviamente não tem a prerrogativa constitucional de distribuir justiça.

Portanto, a tolerância do Estado laico em relação a eles não pode ser limitada. Caso contrário, os episódios de violência religiosa tendem a aumentar, inclusive e principalmente porque as igrejas estão sendo transformadas em gabinetes partidários sem que o TSE reprima o abuso de poder que malfere a legislação eleitoral.

É evidente que os umbandistas e os “vermelhos” estão sendo transformados em inimigos irredutíveis que merecem ser exterminados fisicamente ou eleitoralmente. O processo de demonização do “outro” que está ocorrendo em algumas igrejas evangélicas é similar àquele que foi promovido pelos teólogos e inquisidores que criaram bruxas durante a Idade Média. Até quanto isso será tolerado?

Fonte (citado parcialmente): https://jornalggn.com.br/opiniao/o-direito-a-magia-e-o-declinio-da-tolerancia-religiosa-no-brasil/
Nota: alguns dos testemunhos das acusadas de bruxaria foram voluntários, como o caso de Isobel Gowdie. Conforme Stuart Clark e Francisco Bethencourt, as autoridades que começaram o Santo Ofício foram criados dentro da mesma cultura e folclore do povo, resultado da assimilação e sincretismo das crenças antigas com o Cristianismo.

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