Bent é o título de uma peça de teatro escrita por Martin Sherman em 1979. Através da vida de dois personagens, é retratada a perseguição nazista aos homossexuais na Alemanha de Hitler. Em 1997 Sean Mathias adaptou a peça para o cinema e o filme (foto) alcançou grande sucesso de crítica e público por onde passou. Foi Bent que impulsionou pesquisas históricas nos anos 80 e 90 sobre a perseguição e extermínio promovidos pelo regime nazista aos homossexuais. Pela primeira vez, o público em geral tomou conhecimento que o mesmo regime totalitário que marcou judeus com estrelas amarelas e os matou, marcou homossexuais com triângulos rosa e os matou também.
Antes, porém, de Bent, foi Hannah Arendt que nos anos 50 publicou "Origens do Totalitarismo", que denunciou veementemente ao mundo a perversidade e "lógica" de sistemas totalitários como o de Hitler. No Prefácio de uma nova edição de sua obra, escrito em 1967, Hannah conceitua o ato de compreender. Diz ela que "compreender significa, em suma, encarar a realidade, espontânea e atentamente, e 'resistir' a ela - qualquer que seja, venha a ser ou possa ter sido".
É a partir do conceito de Hannah sobre o compreender que eu escrevo este artigo. Tento compreender a recente declaração da "psicóloga" Rozângela Justino nas "Páginas Amarelas" da atual edição da revista Veja, onde ela, desvairadamente, diz que a militância gay está ligada ao nazismo.
Certamente muitos de nós pensávamos que a incompetência desta senhora estava restrita à sua prática enquanto "psicóloga", aliás, é exatamente isso que o Conselho Federal de Psicologia reconhece na censura pública que impôs à Rozângela, confirmando a punição dada pelo Conselho Regional de Psicologia do RJ: que ela é uma incompetente. Contudo, ela foi além, mostrando com a tal declaração desvairada, que além de ser incompetente na sua profissão, é também enquanto "historiadora amadora", pois mostrou num importante periódico nacional sua burrice histórica. Mal intencionada e incompetente, é isso que a Rozângela Justino é!
É mal intencionada, pois tenta inverter os fatos ao dizer que o movimento gay se apropria da ideologia e do modus operandi do nazismo, assim, ela não só justifica ao público em geral a sua pervertida e adoecida visão da homossexualidade como também ganha junto ao público simpatia pela sua causa, pois o senso comum sabe, ainda que superficialmente, que o nazismo foi um mal e ainda é identificado com o Mal Absoluto. Mal intencionada, pois disseminando uma mentira, quer se colocar no papel de vítima e perseguida, enquanto na verdade, ela e seus pares cristãos fundamentalistas como Júlio Severo e toda essa laia fundamentalista são os algozes de homossexuais tanto quanto o regime nazista foi.
Quem são, na verdade, os nazistas dessa história? Jean Wyllys respondeu em seu blog a Rozângela: "nazista é a senhora!". Rozângela é tão incompetente, tão desvairada que não percebe que o que ela e seus pares tentam fazer é exatamente aquilo que eles nos acusam de fazermos: enquanto nós afirmamos a diversidade humana, eles querem plastificá-la, torná-la monocromática, e para isso, eles precisam eliminar os homossexuais "transformando-os" em heterossexuais, como se isso fosse possível.
Ao identificar homossexuais como doentes e pervertidos, sofredores de patologias, os "judeus" da vez, tentam, como Hitler, eliminá-los, não em campos de concentração nem com banhos em câmaras de gás, mas com terapias de reversão. Quem é cara pálida, o nazista nisto tudo? Quem trabalha para eliminar pessoas e suas características constitutivas - a orientação sexual - visando o estabelecimento de uma "raça" de heterossexuais? Quem usa de leituras pervertidas (sabemos que Hitler pervertia tudo o que lia e até o que via e ouvia a fim de corroborar sua loucura antissemita) das teorias da psicologia e até mesmo da Bíblia para corroborar sua nefasta prática?
Não vejo nenhum homossexual trabalhando pela destruição da família como tanto gostam de acusar os fundamentalistas religiosos! Ao contrário, vejo homossexuais lutando pelo direito de se unirem diante da lei, pela adoção de crianças abandonadas por heterossexuais a fim de lhes proporcionarem uma vida saudável, familiar, digna e honesta. Vejo homossexuais lutando por constituírem suas famílias e lutando pelo direito à igualdade diante da lei que lhes é negada pelo trabalho perverso de legisladores que professam uma fé tão pervertida quanto à de Rozângela Justino. Vejo homossexuais lutando pelo direito de existir, tendo sempre que fazer frente ao desejo sombrio, este sim nazista, de eliminá-los, de silenciá-los. Não vejo homossexuais tentando reverter a sexualidade de nenhum outro ser humano, mas lutando legitimamente pelo pleno direito de ser quem é.
Hitler, no seu desvario em "criar" uma nova raça, marcou homossexuais com triângulos rosa, os confinou em campos de concentração, os despojou de sua dignidade humana ao tratar como bicho o que é gente. Nesta vida, mata-se de muitas maneiras e uma delas é a negação do direito ao outro de existir como ele é. Mata-se, matando no outro o que lhe constitui e o identifica socialmente. Mata-se usurpando do outro sua cidadania, o marginalizando, tirando deste, sua igualdade em relação aos outros seres humanos. Mata-se, tentando, a partir de uma prática perversa, charlatã, "curandeira", reverter, reorientar a sexualidade do diferente, como faz Rozângela Justino e seus pares psicólogos "cristãos". Deveriam lavar a boca antes de se identificarem como cristãos ou se converterem, de fato, ao amor, porque é isso que Deus é, amor.
Rozângela diz em vários textos e declarações à imprensa que está sendo silenciada, amordaçada, impedida de praticar sua profissão. Diz que "ajuda" homossexuais que voluntariamente desejam reorientação de sua sexualidade, mas não enxerga que essa gente legitimamente sofrida, vítimas de uma sociedade homofóbica, de uma religião homofóbica, de uma família homofóbica, buscam, na verdade, auto-aceitação, autocompreensão; precisam de reafirmação e de tratamento digno que lhes garanta a plena aceitação de si mesmos para terem vida feliz. E o que Rozângela faz? "Mata" a verdade dessas pessoas, adoecendo-as ainda mais, o que realmente pode levar-lhes à morte. Quem não conhece ou jamais ouviu falar de homossexuais que se mataram por não se aceitarem como tais, não-aceitação esta agravada pela religião, família e sociedade?
Rozângela, a desvairada, declarou a Veja: "Essas pessoas que estão homossexuais estão ligadas a todo um poder nazista de controle mundial". Mas pergunte a ela quem é o Exodus Internacional ou pesquise sobre essa famigerada organização de evangélicos fundamentalistas que fazem o mesmo trabalho que esta senhora faz e verão que quem se alinha a um "poder mundial" que visa eliminar homossexuais é ela mesma! O Exodus Internacional promove o que chamam de "seminários" e "workshops" em todo o mundo, sempre usando a estrutura de uma igreja local. "Eliminar" homossexuais "transformando-os" em heterossexuais é a especialidade da organização internacional.
Não sou profeta como Ezequiel, mas escrevam o que eu digo: Rozângela Justino, se continuar insistindo nessas falácias, trazendo a público suas pervertidas e equivocadas opiniões quanto à homossexualidade e recebendo o que tem recebido de seus pares, da Justiça, e do público esclarecido, ou seja, o atestado de sua incompetência e desvario, acabará marginalizada pelos que hoje a apoiam: a igreja evangélica fundamentalista.
Autor: Márcio Retamero, 35 anos, é teólogo e historiador, mestre em História Moderna pela UFF/Niterói, RJ. É pastor da Comunidade Betel do Rio de Janeiro - uma Igreja Protestante Reformada e Inclusiva -, desde o ano de 2006. É, também, militante pela inclusão LGBT na Igreja Cristã e pelos Direitos Humanos. Conferencista sobre Teologia, Reforma Protestante, Inquisição, Igreja Inclusiva e Homofobia Cristã.
Original [A Capa] perdido. Repostado. Texto originalmente publicado em 11/09/2009, resgatado pelo Wayback Machine.
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