Jason Mankey em sua coluna Raise the Horns, na seção de
Paganismo do Patheos, publicou um texto interessante e provocante intitulado “O
Deus Cornífero não é tão velho quanto você pensa”. O artigo de Jason merece ser
mais bem explorado e esclarecido, porque ele comete muitos enganos e equívocos.
Jason diz que o Deus Cornífero é uma construção moderna, não
antiga e embora tenha em seu DNA algo do Diabo, isto é um conceito moderno.
Segundo Jason, os antigos não tinham um Deus Cornífero Universal, mas sim
diversos Deuses que portavam chifres em suas cabeças. Deuses que serviam a
diferentes necessidades e possuem identidades próprias que apenas tinham os
chifres em comum.
Eu devo adiantar que discordo da ideia teosófica que “todos/as
os/as Deuse/as são o/a Deus/as”, mas é a nossa crença no Deus Cornífero que é
uma construção moderna. A definição do Deus Cornífero ser uma construção
moderna entra em contradição ao colocarmos sua identificação com o Diabo, um
conceito que surgiu durante a Idade Média. Quando comparamos o Deus Cornífero
com os demais Deuses antigos que eram descritos ou representados com chifres, a
comparação precisa ser devidamente contextualizada com a mitologia, do
contrário estamos fazendo uma comparação conforme nossa visão provinciana.
Jason cita alguns dos Deuses antigos que costumam ser usados
como referência ou como modelos, arquétipos, do Deus Cornífero e é precisamente
em seus exemplos que ele comete alguns erros de interpretação.
Dois exemplos típicos são Cernunnos e Pan, Deuses que, Segundo
Jason, são completamente diferentes. Embora eu concorde com ele, o argumento
que ele apresenta não convence. Jason define Pan como o Deus do espaço selvagem,
separado da civilização, tendo conexões com bodes e pastoreio, é um Deus da natureza,
fertilidade, fecundidade, luxúria e sexualidade. Segundo Jason, Cernunnos jamais
foi representado com um falo ereto [como Pan] e é um Deus da caça e da
abundância. Jason chega a comparar e diferenciar os tipos de chifres que Pan e
Cernunnos portam e isto é crucial, afinal isto tem muito a ver com a divindade,
poder e majestade destes Deuses, mas não é porque possuem diferentes tipos de
chifres que eles sejam Deuses diferentes, as diferenças entre os deuses tem
mais a ver com sua origem e mitologia. Eu irei explicar Pan e Cernunnos, conforme
o argumento exposto no artigo, para que o leitor possa perceber o equivoco
cometido por Jason.
Segundo ele, Pan era um Deus de segunda categoria fora de
Arcádia e um Deus, favorecido por alguns, mas que não tinha um culto massivo
que o colocaria junto com as demais religiões majoritárias no Império Romano. Isso
não é inteiramente verdade, quando colocamos Lupércio, Fauno e Silvano, as versões
Romana de Pan, divindade indispensável nas celebrações da Lupercália, ou mesmo quando
levamos em consideração a importância de Pan no Orfismo.
Quanto a Cernunnos, Jason alega que seu culto era menos
ainda conhecido, tanto que seu nome aparece apenas em um registro arqueológico.
O que é um contrasenso, pois Cernunnos está vinculado à cultura e religião do
povo Celta, que praticamente dominou toda a Europa antes dos Romanos. Jason se
equivoca quanto a seu registro arqueológico, que ele deve se referir ao Pilar
dos Barqueiros, supostamente o único lugar onde aparece o nome Cernunnos, no
entanto a imagem pode ser encontrada também no Caldeirão de Gundestrup, imagem
que é a que é usada com mais frequência pelos Pagãos Modernos e mesmo assim
estas não são as únicas ocorrências da presença de Cernunnos por toda a Europa
Celta. Para arrematar, Jason não tem como afirmar que Pan e Cernunnos são
totalmente diferentes pelas evidencias que ele apresentou levando em
consideração a afirmação dele que seus cultos eram escassos, não é possível sequer
diferenciar os atributos desses Deuses levando em consideração apenas um único
registro arqueológico.
Jason comete um equivoco ainda maior quando inclui o Deus Dionísio
na lista e apontar que este Deus não é o Deus Cornífero por ser raramente
representado com chifres. Dionísio, assim como Pan e Cernunnos, é um Deus complexo
de difícil compreensão e interpretação. Como eu havia escrito em meu texto “Simpatia
pelo Diabo”, a identidade de uma entidade ou Deus não depende do que
acreditamos, mas sim da mitologia dessa entidade ou Deus. A origem de Dionísio
vem da península da Anatólia e antes de ser conhecido como Dionísio ele era
conhecido como Zagreu, um Deus com chifres.
Jason tenta estabelecer uma origem pressuposta do Deus
Cornífero com as origens culturais e religiosas da Europa e até nisto existe um
enorme problema. Quando falamos em Celtas, existem poucos registros sobre essa
civilização, mas os Celtas eram uma coletânea de povos que tinham em comum
apenas aspectos de linguagem e espiritualidade. Mesmo estes são descendentes dos
Indo-europeus, uma coletânea de povos antigos que surgiram na região do Vale do
Indo, onde fica o atual Paquistão. Dos Indo-europeus nós sabemos ainda menos de
sua cultura e religião, nós apenas pressupomos algumas características em comum,
então é espantoso que Jason alegue que os Indo-Europeus não tinham um Deus
Cornífero, esquecendo que esta é a mesma origem da religião Védica e da cultura
Hindu, onde Pashupati [um Deus que é semelhante demais a Cernunnos, Pan, Fauno,
Silvano e Herne] é uma das manifestações do Deus Shiva.
Jason pula muito da história e desenvolvimento do Paganismo
antigo, de sua sobrevivência na folclorização do cristianismo e de seu
ressurgimento na Europa da Idade Média juntamente com o aparecimento das
heresias. E talvez isto constitua um dos maiores erros de Jason e muitos pagãos
modernos: descartam totalmente a história da Europa durante a Idade Média, como
se a religião e a cultura popular não fosse resultado da assimilação e
sincretismo de crenças antigas e originais com o cristianismo, como se o discurso
oficial e jurídico da Caça às Bruxas não pertencesse a esse conjunto cultural
pitoresco.
Neste blog o leitor pode encontrar diversos textos explorando
a questão do Santo Ofício, de como a guerra contra as heresias passou a ser uma
caça às bruxas, de como missas negras realizadas por nobres tanto refletem
quanto influenciaram o conceito das assembleias de bruxas e de como o Mestre do
Sabat foi identificado como sendo o Diabo. Para entender isso, nós temos que
mergulhar nos processos do Santo Ofício, onde muitos contêm testemunhos
voluntários, obtidos sem tortura e de como, mesmo no discurso oficial do Estado
[secular e clerical], podemos encontrar ali rastros de uma autentica,
resistente e sobrevivente religião antiga, vinculado às nossas origens europeias
e pagãs.
Concluindo, o Deus Cornífero não é Cernunnos, Pan, Herne,
Fauno, Silvano ou Dionísio. O mais provável é que estes Deuses sejam tanto
filhos como pais deste que é o Senhor dos Mistérios da Bruxaria e Wicca
tradicionais, tal como dizemos em nossas cerimônias, na Carga do Deus: “Eu sou
o Velho e o Novo, eu sou o Pai e o Filho, meus nomes são incontáveis e o
universo é a minha coroa. Busquem-me com Amor e descobrirás o Mistério”.
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