Em mais um episódio da série "Terra - que Tempo é Esse?", nossos repórteres mostram o ritual do Gelo Sagrado, uma celebração ancestral que agora, por causa do aquecimento global, já não usa mais o gelo.
A metade norte da maior cadeia de montanhas do planeta está tão perto do Equador que só tem gelo no topo por causa do ar frio, mais de cinco mil metros acima do nível do mar.
Mas, agora, mesmo nessas altitudes, o ar está mais quente. E os povos andinos já veem suas reservas de água congelada derretendo diante dos olhos.
Estamos no nosso continente, na parte peruana da Cordilheira dos Andes, que se estende por 7,5 mil quilômetros, da Venezuela à Terra do Fogo, e rumo às ruínas de uma grande civilização. Nestas montanhas, 800 anos atrás, os incas ergueram seu império.
Mudanças no clima sempre foram determinantes na história da humanidade. Agora, ameaçam também as janelas que nos permitem olhar para o passado. Como a cidade sagrada de Machu Picchu, no Peru, centro da civilização inca. Machu Picchu já está sentindo os efeitos das mudanças nos padrões de chuva.
Os terraços, nos quais os incas plantavam e faziam pesquisas agrícolas, sobrevivem firmes, séculos depois de o povo que os construiu ter desaparecido. Mas até quando?
As previsões dos cientistas são de que esta região vai enfrentar, cada vez mais, períodos de clima extremo: secas prolongadas, que desestabilizam o solo, seguidas de chuvas torrenciais, que provocam desmoronamentos.
Como se viu no início deste ano, estradas bloqueadas, vilas isoladas, milhares de turistas presos nas montanhas. Machu Picchu guarda provas de que os incas conseguiam prever épocas de tempo ruim.
Os incas eram capazes de prever um ano de chegada do El Niño apenas observando as estrelas. Um método que já foi confirmado pela astronomia moderna.
O nome El Niño é uma referência ao Menino Jesus, porque é perto do Natal que, em alguns anos, a água do Pacífico, na costa do Peru, fica mais quente, provocando mudanças no clima em todo o continente.
Em Machu Picchu, a previsão era feita num observatório muito diferente. Os pequenos poços de água limpa e parada funcionavam como espelhos do céu, refletindo as estrelas e planetas. A umidade no ar, que atrapalha a observação, era o sinal do El Niño.
Aos pés dos Andes, a civilização inca desabrochou usando a água limpa, abundante e bem distribuída. Os povos no vale ainda desfrutam do sistema hídrico implantado pelos incas. Mas da Venezuela ao sul do Peru, os Andes tropicais estão perdendo gelo.
Sônia Bridi: Professor, o fenômeno que se vê já nos Andes é consequência do aquecimento global?
Edson Ramirez, glaciologista: “Sem dúvida, mas nem sempre de forma direta. O aquecimento mudou o El Niño, um fenômeno que sempre existiu, mas está cada vez mais frequente e intenso. E a consequência é que a chuva diminuiu e o calor aumentou, o que faz com que as geleiras derretam muito mais rápido.
O Peru depende da água do degelo para praticamente toda a sua agricultura. Por isso, é um dos países mais sensíveis às mudanças climáticas. E o povo já adapta até suas tradições.
São 2h e a equipe do Fantástico está em Mayawani, uma vila a 200 quilômetros de Machu Picchu. Ela vai fazer o mesmo que milhares de peruanos: subir a montanha em busca do gelo sagrado.
A equipe está a 4,2 mil metros de altitude. O oxigênio já é bastante rarefeito. O grupo vai subir a 4,6 mil e tem que chegar lá até o amanhecer. Então, a cavalo vai dar uma ajuda grande.
Antes de partir, eles abençoam e mascam folhas de coca. A trilha é como uma procissão. Gente de todas as idades atravessa a escuridão até a primeira luz da manhã revelar os contornos áridos do caminho.
Três horas depois, o grupo chega à festa do senhor de Qoylor Riti: um rito ancestral, incorporado pelo catolicismo.
É como se uma cidade inteira surgisse literalmente da noite para o dia nas montanhas, no meio dos Andes. São 30 mil pessoas. É a maior peregrinação de povos nativos das Américas.
Enquanto milhares estão ainda chegando, outros tantos viraram a noite fria lá no alto, em cima da geleira, conversando. O tema: o sentido da vida.
Ao amanhecer, vêm se juntar aos outros. Eles são divididos em confrarias, grupos representando centenas de povoados dos dois lados dos Andes.
Música e dança são como mantras: um transe religioso que espanta o frio e a dificuldade de se movimentar nesta altitude.
Até pouco tempo, todas essas confrarias desciam trazendo blocos de gelo, gelo sagrado, que era levado até a cidade de Cuzco para ser abençoado em outra festa religiosa, a de Corpus Christi.
Só que três anos atrás, as confrarias perceberam que o gelo que antes chegava ao local já tinha se recolhido mais de um quilômetro, montanha acima. Então, a retirada do gelo foi proibida para que eles pudessem preservar o que eles têm de mais sagrado, que é a água. E, assim, a tradição não acelera um processo que a natureza já está fazendo rápido demais.
Eles não ouviram cientistas. Viram com os próprios olhos que o gelo está diminuindo. “Proibimos que se traga o gelo, porque já não tem mais gelo lá em cima”, diz o peregrino. “Tudo era neve. Vinha até aqui”, conta outro homem. “Agora, o aquecimento global, senhores, é uma preocupação”, diz outro peregrino.
Os que vêm das montanhas trazem penduradas peles de vicunha, uma parente da lhama. Os da selva portam cocares de penas.
Cada roupa representa um pedaço da rica cultura andina e da mistura que começou com a chegada dos espanhóis. Um ritual de iniciação. Chicotadas nos que venceram a noite no gelo.
Nesta festa não tem polícia, nem governo. Mas tem os pablitos, com uma fantasia, que mantém a ordem.
Um deles conta que vem há 20 anos.
Sônia Bridi: Vocês têm medo das mudanças no clima?
Peregrino: Sim. Tenho medo. O que será da nossa vida?
O desfile de peregrinos montanha abaixo não tem fim. Alguns se fantasiam de condor, o abutre dos Andes. Outros carregam cruzes.
Em vários pontos, eles se ajoelham para esperar um deus inca aparecer. O sol desponta, eles se benzem, como bons cristãos, e seguem em festa.
Lá embaixo, os peregrinos agora se agrupam e a equipe do Fantástico vai para o alto, até a nova fronteira do gelo, que não para de recuar.
Para chegar até a geleira, o grupo precisou subir a cinco mil metros de altitude. O problema é que essa geleira termina aos 5,3 mil metros e continua encolhendo. Isso, segundo os cientistas, significa que em 20 anos ela terá desaparecido por completo, junto com todo o gelo dos Andes tropicais abaixo dos 5,4 mil metros.
Vinte anos apenas e boa parte desse estoque de água congelada terá ido embora, deixando países como Equador, Bolívia e Peru com graves crises de abastecimento.
“Em maio já nevava. Agora, em julho, a chuva era farta. O frio está mais frio, o calor mais quente”, conta o peregrino.
Na voz do peregrino, a definição das mudanças climáticas, exatamente como preveem os cientistas.
Fonte: Fantástico [link morto]
Nota da casa: Muitos ritos antigos foram incorporados pelo Catolicismo e as pessoas perderam o sentido e o significado desses rituais. A humanidade ruma à auto-extinção pelas mãos do Capitalismo. O que está em jogo e a nossa preservação e isso passa por uma mudança na forma como nos relacionamos com o mundo, a natureza e conosco mesmo.
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