sábado, 12 de dezembro de 2009

O fim da religião antiga

Conforme eu leio o excelente livro de Fustel de Coulanges - A Cidade Antiga, mais claro se torna a compreensão de como era a religião antiga e as causas de seu fim, por volta do século V AC, como resultado de uma transformação social, politica, filosófica e humana. A transformação nos trouxe até a tecnologia que torna a nossa vida no século XXI algo mais fácil e confortável, mas também deu espaço para que a humanidade abraçasse uma crença [o Cristianismo] que nos fez regredir psicológicamente.
Vale a pena ler o livro por inteiro para se ter uma idéia da riqueza que a humanidade abandonou ao querer tomar o lugar dos Deuses e do que era sagrado - a natureza e o corpo, em busca de mais liberdades [embora ainda sejamos escravos, por opção ou alienação], de mais "igualdades" [embora ainda procuramos garantir nossos pequenos feudos], acreditando piamente na razão que nos fazia sonhar na fantasia de que os Deuses eram apenas criações de nossa mente, a mesma filosofia que elegeu a razão acima dos mitos. Fustel de Coulanges registra magistralmente essa mudança lenta porém inexorável que ocorreu ao longo de 400 anos e aplainou o caminho para que após mais 400 anos o Cristianismo triunfasse e a Idade das Trevas tivesse início. Leiamos!
A princípio uma religião muito antiga fundara a família, depois a cidade; estabelecera em primeiro lugar o direito doméstico e o governo da gens; depois as leis civis e o governo municipal. O Estado estava estreitamente ligado à religião; dela nascera, e com ela se confundia. É por isso que, na cidade primitiva, todas as instituições políticas haviam sido instituições religiosas; as festas eram cerimônias do culto; as leis, fórmulas sagradas; os reis e magistrados, sacerdotes. É por isso ainda que a liberdade individual era desconhecida, e o homem era incapaz de libertar a própria consciência da onipotência da cidade. É por isso, enfim, que o Estado mantivera-se dentro dos limites da cidade, e nunca puderam ultrapassar a linha traçada em sua origem pelos deuses nacionais. Cada cidade tinha, não somente independência política, mas também um culto e um código. A religião, o direito, o governo, tudo era municipal. A cidade era a única força viva; nada lhe era superior ou inferior; nem a unidade nacional, nem a liberdade individual.
Resta-nos dizer de que modo esse regime desapareceu, isto é, como, mudando-se o princípio da associação humana, o governo, a religião e o direito se despojaram desse caráter municipal que tiveram na antiguidade.
A ruína do regime político que a Grécia e a Itália haviam criado pode ser atribuída a duas causas principais. Uma pertence à ordem dos fatos morais e intelectuais, outra à ordem dos fatos materiais; a primeira é transformação das crenças, a segunda é a conquista romana. Esses dois grandes fatos são contemporâneos; desenvolveram-se e concluíram-se juntos, durante a série de cinco séculos que precede a era cristã.
A religião primitiva, cujos símbolos eram a pedra imóvel do lar e o túmulo dos antepassados, religião que havia constituído a família antiga, organizando depois a cidade, alterou-se com o tempo, e envelheceu. O espírito humano cresceu em forças, e adotou novas crenças. Começou-se a ter idéia da natureza imaterial; a noção da alma humana tornou-se mais precisa, e quase ao mesmo tempo surgiu nos espíritos a idéia de uma inteligência divina.
Que pensar então das divindades das primeiras idades; dos mortos, que viviam nos túmulos; dos deuses lares, que haviam sido homens; dos antepassados sagrados, que deviam continuar a alimentar como se ainda vivessem? Semelhante fé tornou-se impossível. Tais crenças não estavam mais no nível do espírito humano. É bem verdade que esses preconceitos, por mais grosseiros que fossem, não foram facilmente arrancados do espírito do vulgo; reinaram por muito tempo ainda; mas desde o quinto século antes de nossa era os homens que refletiam se foram libertando desses erros. Compreendiam a morte de outra maneira; alguns acreditavam no aniquilamento, outros em uma segunda existência espiritual em um mundo de almas; em todo caso não admitiam mais que o morto vivesse no sepulcro, e se alimentasse com as dádivas que lhes ofereciam. Começou-se também a se ter idéia muito elevada da divindade, para que se continuasse a acreditar que os mortos pudessem ser deuses. Pelo contrário, imaginavam a alma humana indo procurar nos Campos Elísios sua recompensa, ou a pena de suas faltas; e, por notável progresso, não se divinizavam mais entre os homens senão aqueles que o reconhecimento ou a lisonja queria colocar acima da humanidade.
A idéia da divindade transformou-se pouco a pouco, pelo efeito natural do poder maior do espírito. Essa idéia, que o homem a princípio aplicara à força invisível que sentia em si próprio, ele a aplicou aos poderes incomparavelmente maiores que via na natureza, à espera de que se elevasse até a concepção de outro ser, que estivesse fora e acima da natureza. Então os deuses lares e os heróis perderam a adoração dos seres racionais.
Quanto ao lar, que não parece ter sentido senão enquanto se ligava ao culto dos mortos, perdeu também seu prestígio. Continuou-se a ter na casa um lar doméstico, ao qual saudavam, adoravam, ofereciam libações; mas não passava de um culto de hábito, a que nenhuma fé dava vida.
O lar das cidades, ou o pritaneu, foi arrastado insensivelmente para o descrédito em que caíra o lar doméstico. Não se sabia mais o que significava, esquecidos de que o fogo sempre aceso do pritaneu representava a vida invisível dos antepassados, dos fundadores, dos heróis nacionais. Continuava-se a alimentar esse fogo, a cantar velhos hinos, cerimônias vãs, das quais não ousavam desembaraçar-se, mas cujo sentido ninguém mais compreendia.
Até as divindades da natureza, que se haviam associado aos lares, mudaram de caráter. Depois de haver começado por serem divindades domésticas, depois de se tornarem divindades da cidade, transformaram-se ainda uma vez. Os homens acabaram por perceber que os seres diferentes que chamavam de Júpiter, podiam bem ser um mesmo e único ser; e assim aconteceu com outros deuses. O espírito desembaraçou-se de uma multidão de divindades, e sentiu necessidade de reduzir-lhes o número. Compreendeu-se então que os deuses não pertenciam mais a uma família ou cidade, mas que todos pertenciam ao gênero humano, e velavam pelo universo. Os poetas iam de cidade em cidade ensinando aos homens, em lugar dos velhos hinos das cidades, novos cantos nos quais não se falava nem de deuses lares, nem de divindades políadas, e onde se liam as lendas dos grandes deuses da terra e do céu; e o povo grego esquecia os velhos hinos domésticos ou nacionais por essa poesia nova, que não era filha da religião, mas da arte e da livre imaginação. Ao mesmo tempo, alguns grandes santuários, como os de Delfos e de Delos, atraíam os homens, fazendo que com estes se esquecessem dos cultos locais. Os mistérios e a doutrina que continham habituavam-nos a desprezar a religião vazia e insignificante da cidade.
Assim, lenta e obscuramente, foi sendo feita uma revolução intelectual. Os próprios sacerdotes não lhe opunham resistência, porque enquanto os sacrifícios continuavam a ser oferecidos nos dias determinados, parecia-lhes que a antiga religião estava salva; as idéias podiam mudar, a fé podia morrer, contanto que os ritos permanecessem intactos. Aconteceu então que, sem que as práticas fossem modificadas, as crenças se transformaram, e a religião doméstica e municipal perdeu todo o domínio sobre as almas.
Depois apareceu a filosofia, que derrubou todas as regras da velha política. Era impossível tocar nas opiniões dos homens sem tocar também nos princípios fundamentais do governo. Pitágoras, tendo uma concepção vaga do Ser supremo, desprezou os cultos locais, e isso foi o bastante para que rejeitasse os velhos moldes de governo, e tentasse fundar uma nova sociedade.
Anaxágoras concebeu o Deus-Inteligência, que reina sobre todos os homens e sobre todas as criaturas. Afastando-se das antigas crenças, afastou-se também da antiga política. Como não acreditava nos deuses do pritaneu, deixava de cumprir todos os deveres de um cidadão; fugia das assembléias, e não queria ser magistrado. Sua doutrina representava um perigo para a cidade; os atenienses condenaram-no à morte.
Vieram depois os sofistas, e tiveram mais influência que esses dois grandes espíritos. Eram homens ardentes no combate dos velhos erros. Na luta que travaram contra tudo o que se ligava ao passado, não pouparam nem as instituições da cidade, nem os preconceitos da religião. Examinaram e discutiram ousadamente as leis que ainda regiam o Estado e a família. Iam de cidade em cidade, pregando novos princípios, ensinando não precisamente a indiferença entre o justo e o injusto, mas uma nova justiça, menos acanhada e menos exclusiva que a antiga, mais humana, mais racional, e livre das fórmulas das idades anteriores. Foi uma empresa atrevida, que levantou uma tempestade de ódios e de rancores. Acusaram-nos de não ter nem religião, nem moral, nem patriotismo. A verdade é que sobre todas essas coisas não tinham doutrina bem definida, e que julgavam fazer muito combatendo os preconceitos. Eles removiam, como diz Platão, o que até então era irremovível. Colocavam a regra do sentimento religioso e da política na consciência humana, e não nos costumes dos antepassados ou na tradição imutável. Ensinavam aos gregos que para governar um Estado não bastava mais invocar velhos costumes e leis sagradas, mas era necessário persuadir os homens, e agir sobre vontades livres. Substituíam o conhecimento dos costumes antigos pela arte de raciocinar e de falar, a dialética e a retórica. Seus adversários ligavam-se à tradição, enquanto eles se ligavam à eloqüência e ao espírito.
Uma vez despertada assim a reflexão, o homem não quis mais crer sem conhecer suas crenças, nem quis deixar-se governar sem discutir suas instituições. Duvidou da justiça de suas velhas leis sociais, e surgiram outros princípios. Platão põe na boca de um sofista estas belas palavras: “Vós todos que aqui estais, eu vos considero parentes uns dos outros. A natureza, apesar da lei, vos fez concidadãos. Mas a lei, esse tirano do homem, violenta a natureza em muitas ocasiões.” — Opor assim a natureza à lei e ao costume, era atacar na própria base a política antiga. Em vão os atenienses exilaram Pitágoras e queimaram seus escritos; o golpe estava dado; o resultado do ensino dos sofistas foi imenso. A autoridade das instituições desaparecia com a autoridade dos deuses nacionais, e o hábito do livre exame estabelecia-se nas casas e na praça pública.
Sócrates, reprovando o abuso que os sofistas faziam do direito de duvidar, pertencia contudo à sua escola. Como eles, rejeitava o império da tradição, e acreditava que as regras de conduta estavam gravadas na consciência humana. Não se diferenciava deles senão em que estudava essa consciência religiosamente, e com desejo firme de nela encontrar a obrigação de ser justo e de fazer o bem. Colocava a verdade acima do costume, a justiça acima das leis. Distinguia a moral da religião; antes dele não se concebia o dever senão como um decreto dos deuses antigos; Sócrates demonstrou que o princípio do dever está na consciência do homem. Em tudo isso, quer quisesse ou não, ele fazia guerra ao culto das cidades. Em vão tomava o cuidado de assistir a todas as festas, e de tomar parte em todos os sacrifícios; suas crenças e palavras desmentiam-lhe a conduta. Sócrates fundava uma religião nova, que era contrária à religião da cidade. Acusaram-no, com verdade, “de não adorar os deuses que o Estado adorava.” Condenaram-no à morte por haver atacado os costumes e as crenças dos antepassados, ou, como se dizia, por haver corrompido a geração presente. Mas a revolução que os sofistas haviam iniciado, e que Sócrates continuara com mais moderação, não foi interrompida pela morte de um ancião. A sociedade grega libertou-se dia a dia cada vez mais do domínio das velhas crenças e das velhas instituições.
Depois dele, os filósofos discutiram com toda a liberdade os princípios e regras da associação humana. Platão, Críton, Antístenes, Espeusipo, Aristóteles, Teofrasto, e muitos outros, escreveram tratados sobre a política. Buscou-se, examinou-se; os grandes problemas da organização do Estado, da autoridade e da obediência, das obrigações e do direito, apresentaram-se a todos os espíritos.
A escola cínica vai ainda mais longe: ela nega a pátria. Diógenes vangloriava-se de não ter direitos civis em nenhum lugar, e Crates dizia que sua pátria era o desprezo da opinião alheia. Os cínicos acrescentavam esta verdade, então muito nova, de que o homem é cidadão do universo, e de que a pátria não são os estreitos limites de uma cidade. Consideravam o patriotismo municipal como um preconceito, e suprimiam do número dos sentimentos o amor da cidade.
Os estóicos retornaram à política. Zenão, Cleanto e Crísipo escreveram numerosos tratados sobre o governo dos estados. Mas seus princípios estavam muito afastados da política municipal. Sócrates julgava-se ainda obrigado a adorar, como podia, os deuses do Estado. Platão ainda não concebia outro governo senão o da cidade. Zenão passa por cima desses limites restritos da associação humana. Despreza as divisões que a religião antiga havia estabelecido. Como concebe o Deus do universo, tem também a idéia de um Estado que compreenderia toda a humanidade.
Mais eis um princípio ainda mais novo. O estoicismo, alargando a associação humana, liberta o indivíduo. Como rejeita a religião da cidade, rejeita também a servidão. Não quer mais que a pessoa humana se sacrifique ao Estado. Distingue e separa nitidamente o que deve permanecer livre no homem, e liberta pelo menos a consciência. Diz ao homem que deve fechar-se em si mesmo, que deve encontrar em si o dever, a virtude, a recompensa. Não lhe proíbe ocupar-se dos negócios públicos, antes convida-o a isso, advertindo-o, porém, de que seu principal trabalho deve ter por objeto o progresso individual, e que, seja qual for o governo, sua consciência deve continuar independente. Grande princípio, que a cidade antiga sempre desprezou, mas que devia um dia tornar-se uma das regras mais sagradas da política.
Começa-se então a compreender que há outros deveres além dos deveres para com o Estado, outras virtudes além das virtudes cívicas. A alma se prende a outros objetos além da pátria. A cidade antiga havia sido tão poderosa e tirânica que o homem fizera dela a razão de todo o seu trabalho e de todas as suas virtudes; ela havia sido a regra do belo e do bem, e não havia heroísmo senão para ela. Mas eis que Zenão ensina ao homem que ele tem uma dignidade, não de cidadão, mas de homem; que além de seus deveres para com a lei tem outros para consigo mesmo, e que o supremo merecimento não é viver ou morrer pelo Estado, mas ser virtuoso, e agradar à divindade. Virtudes um tanto egoístas, e que fizeram decair a independência nacional e a liberdade, mas pelas quais o indivíduo adquiriu importância. As virtudes públicas foram desaparecendo, mas as virtudes pessoais tomaram maior evidência, e começaram a surgir entre os homens. A princípio elas tiveram que lutar contra a corrupção ou contra o despotismo. Mas pouco a pouco se enraizaram na humanidade, e com o tempo transformaram-se em um poder com o qual todo governo teve de contar, e tornou-se necessário que as regras da política fossem modificadas para dar-lhes lugar livre.
Assim se transformaram pouco a pouco as crenças; a religião municipal, fundamento da cidade, extinguiu-se. O regime municipal, tal como os antigos o imaginaram, teve também de cair. Insensivelmente, os homens se libertavam das regras rigorosas e das formas acanhadas de governo. Idéias mais elevadas conclamavam os homens a formar sociedades maiores. A tendência então era a unidade, aspiração geral dos dois séculos que precederam a era cristã.
Autor: Fustel de Coulanges - A Cidade Antiga. Fonte: Ebooks Brasil

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