No século XX, em seu esforço para desvendar o inconsciente, Sigmund Freud, pai da psicanálise, disse que o sonho de estar nu em público é comum a todos os homens. Apesar da ligação estreita com vergonha e fragilidade, contudo, não se pode dizer que essas sempre tenham sido as conseqüências da nudez: ao longo da história, em diferentes contextos, o corpo despido também expressou orgulho, desafio ou liberdade.
Nas últimas semanas, a discussão sobre o significado da nudez para os brasileiros ressurgiu de onde não se esperava. Quem pôs o tema em circulação foi o ator Pedro Cardoso, em um discurso durante o lançamento de seu novo filme, Todo Mundo Tem Problemas Sexuais.
Sua tese surge meio deslocada em um tempo em que a nudez em suas várias formas – como os biquínis com tecido insuficiente para fazer uma gravata-borboleta – parece ter vencido. Mas ele atacou com força, sustentando que toda a indústria do entretenimento no Brasil estaria tomada por uma mentalidade "pornográfica", que força os artistas a se expor e assim os degrada.
A nudez está em toda parte.
Não deixa de ser intrigante que essa questão esteja sendo discutida no Brasil nos dias atuais. Quando a nudez é aceitável? Quando ela é ofensiva? E quem decide isso? Uma varredura cultural e histórica sobre essas questões nos leva a conclusões surpreendentes.
É errada a idéia de que a "evolução da mentalidade", como dizia a geração que adorava tirar a roupa nos anos 60, vai sempre na direção de mais para menos roupa, de menor para maior permissividade. Cada cultura em cada era tem sua própria etiqueta e suas formalidades. Pruridos somem e reaparecem tempos depois.
Essa é uma das graças da civilização.
O Brasil está vivendo uma fase mais recatada? Talvez não seja uma fase. Para o antropólogo Roberto DaMatta, a tese de que o Brasil do biquíni e do Carnaval é particularmente permissivo em relação à nudez é enganosa. Do ponto de vista de sua disciplina, explica ele, o uso de roupas, ou a falta delas, responde a certas molduras ou rituais.
No Carnaval, por exemplo, ninguém está realmente nu enquanto estiver coberto com algum elemento alegórico – ainda que seja a purpurina. E o regulamento da Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro é um eloqüente exemplo das sutilezas envolvidas nas definições da nudez: um destaque pode desfilar com seios, nádegas e tudo o mais à mostra. Mas, se deixar cair o tapa-sexo, comete falta grave e sua escola perde pontos.
"A fronteira entre a nudez aceitável e a obscena é uma dessas questões que não têm solução pronta", diz DaMatta.
Vários tipos de justificativa são apresentados quando uma obra de arte com figuras nuas é censurada – do simples pudor até as teorias mais complicadas.
Um argumento clássico é o de que o "nu artístico", ao contrário do "nu vulgar", não desperta sensações carnais no espectador.
Esse argumento foi desmontado pelo crítico inglês Kenneth Clark. "Se um nu deixa de despertar no espectador um vestígio de sentimento erótico, por menor que seja, ele não é apenas arte ruim como falsa moral", escreveu Clark.
Mais recentemente, a crítica americana Camille Paglia sustentou que a grande arte não se mistura apenas ao erotismo, mas, em certas ocasiões, também à pornografia – quando explora "as forças extremas do instinto e da sexualidade atuando por baixo das convenções sociais".
Na segunda metade do século XX, um novo fenômeno despontou com os movimentos hippie e beatnik: a nudez como forma de protesto social. Nos anos 80, os protestos envolvendo pessoas nuas passaram a fazer parte do repertório de entidades humanitárias.
Em seu blog, Pedro Cardoso sustenta que a nudez da televisão e dos filmes, na verdade, é uma deturpação de todas as manifestações legítimas da nudez, da arte real às passeatas para proteger os animais. Ela seria algo assim como uma forma de dominação imposta pelo "sistema" – e por isso deveria ser banida.
Nesse ponto, seu pensamento se aproxima do de feministas americanas como Andrea Dworkin e Catherine McKinnon, que atacaram a indústria pornográfica sustentando que ela era um fator de escravização política e econômica da mulher.
O que pode haver são restrições – impedindo que a pornografia, por exemplo, circule em qualquer lugar ou atinja as crianças. Esse é, aliás, o limite para a nudez em sociedades como a americana – ou a brasileira.
Controlá-la para impedir que atrapalhe o desenvolvimento de crianças faz sentido. "A exibição de conteúdo erótico na televisão, ainda que eventual, pode afetar as crianças mais do que se imagina", diz o psicanalista Joel Birman. "Elas são seduzidas sem perceber, e o resultado pode até mesmo ser traumático."
Bani-la para satisfazer adultos melindrosos ou puritanos é um erro (e não é descabido lembrar que a vida ascética costuma ser uma marca dos grandes autoritários.
Fonte: Veja [link indisponível]
Nota da casa: O discurso do ator, a despeito de estar disfarçado de contestação contra a exploração dos atores, da nudez ou da sexualidade, não explica o que ele considera uma "manifestação legítima da nudez" ou mesmo qual a relação entre esta e a ética. A nudez não tem qualquer função ética, pois ela teria que ter uma base moral e qualquer discussão nesse termo acabaria em uma contradição. Discutir a nudez em termos de ética não faz sentido algum porque induziria em considerar a nudez como anti-ética, quando a falta de ética está nas empresas de comunicação de massa, não na nudez em si mesma. Entrar nesse mérito daria ensejo a uma volta à censura, a mais repressão sexual, a mais distorções de comportamentos psicoafetivos, a mais violência sexual. A despeito de suas "boas intenções", o ator endossa um discurso que se pode considerar como neo-puritanismo.
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