sábado, 27 de dezembro de 2008

A Gens e o Estado em Roma

Segundo a lenda da fundação de Roma, a primeira fixação no local foi a de certo número de gens latinas (cem, diz a lenda), reunidas em uma tribo. Logo se uniu a esta uma tribo sabina, de cem gens, ao que também se diz, e por último uma tribo composta de elementos diversos, igualmente de cem gens.
O conjunto da narração revela, à primeira vista, que não havia nada ali espontaneamente formado, exceto a gens, que, mesmo ela, em muitos casos, não passava de um ramo da velha gens-mãe, que tinha permanecido no antigo território.
As tribos levavam a marca de sua composição artificial, ainda que, em sua maioria, estivessem formadas de elementos consangüíneos e consoante o modelo da antiga tribo de formação natural (e não artificial); por certo, não fica excluída a possibilidade de que o núcleo de cada uma das três tribos acima mencionadas pudesse ser uma autêntica tribo antiga.
O escalão intermediário, a fratria, contava dez gens e chamava-se cúria. Eram trinta as cúrias. Pelo menos nos primeiros tempos da cidade, a gens romana tinha a seguinte constituição:
1. Direito de herança recíproco entre os gentílicos; a propriedade permanecia na gens.
Dada a vigência do direito paterno, na gens romana, da mesma forma que na grega, os descendentes por linha feminina eram excluídos na herança.
Segundo a Lei das Doze Tábuas - o mais antigo monumento conhecido do direito romano - em primeiro lugar herdavam os filhos, como herdeiros diretos que eram; não havendo filhos, herdavam os agnados (parentes por linha masculina); e, na falta destes, os demais membros da gens.
Em caso algum, a propriedade saía da gens. Aqui observamos a gradual infiltração nos costumes gentílicos de novas disposições legais, criadas pelo crescimento da riqueza e pela monogamia; o direito de herdar, a principio igual para todos os membros de uma gens, restringiu-se, em um tempo bastante remoto, aos agnados, e depois aos filhos e netos por linha masculina.
Na Lei das Doze Tábuas essa ordem aparece invertida, naturalmente.

2. Posse de um lugar coletivo para os mortos. A gens patrícia Cláudia, ao emigrar de Régilo para Roma, recebeu, além de uma área de terra que lhe foi assinalada dentro mesmo da cidade, um local para o sepultamento dos seus mortos.
Até nos tempos de Augusto, a cabeça de Varo, falecido na floresta de Teutoburgo, foi trazida a Roma e enterrada num túmulo gentílico (gentilitius tumulus), o que demonstra que a sua gens (a Quintília) ainda tinha o seu jazigo particular.

3. Solenidades religiosas em comum. Chamavam-se sacra gentilitia e são bem conhecidas.

4. Obrigação de não casar dentro da gens. Em Roma, parece que jamais se chegou a defini-la em lei escrita, mas era estabelecida como costume. Dos inúmeros casais romanos cujos nomes chegaram aos nossos dias, não é conhecido um único caso em que o marido e a mulher tenham o mesmo nome gentílico.
Outra prova dessa regra é a do direito de herança, na forma com que era adotado: a mulher saía da gens ao casar-se, perdia seus direitos agnáticos, nem ela nem os filhos que tivesse poderiam herdar de seu pai (dela) ou dos irmãos deste.
A gens não podia perder os gens dos seus membros que morressem, como aconteceria fatalmente se outras leis de herança prevalecessem. E essa regra não teria sentido se a mulher não fosse impedida de casar com um membro da sua gens.

5. Posse da terra em comum. Existiu sempre nos tempos primitivos, desde que se repartiu o território da tribo pela primeira vez. Entre as tribos latinas, encontramos o solo possuído em parte pela tribo, em parte pela gens, em parte por casas, que na época dificilmente seriam de famílias individuais.
Atribui-se a Rômulo a primeira divisão de terra entre indivíduos, á razão de dois jugera para cada um (mais ou menos um hectare).
Mais tarde, contudo, vamos encontrar a terra ainda em mãos da gens, e isso sem falar nas terras do Estado, em torno das quais gira toda a história interna da república.

6. Obrigação dos membros da gens de se ajudarem mutuamente e de se socorrerem. Na história escrita vamos encontrar apenas vestígios disso: o Estado romano, desde sua aparição, manifestou-se bastante forte para chamar a si o direito de proteção contra as ofensas.
Quando Ápio Cláudio foi preso, sua gens inteira vestiu luto, inclusive seus inimigos pessoais. E, ao tempo da segunda guerra púnica, as gens se associaram para pagar ,o resgate de seus membros aprisionados, mas o senado proibiu-as de fazê-lo.

7. Direito de usar o nome gentílico. Manteve-se até a época dos imperadores.
Aos próprios escravos alforriados era concedida permissão para usar o nome gentílico de seus antigos senhores; conquanto não lhes correspondessem, é claro, quaisquer direitos gentílicos.

8. Direito de adotar estranhos na gens. Era a adoção por uma família (como entre os índios americanos), que trazia com ela a adoção pela gens.

9. Direito de eleger e depor o chefe, não mencionado em parte alguma. Como, porém, nos tempos primitivos de Roma, todos os postos começando pelo de rei, eram preenchidos por eleição ou aclamação, e até os sacerdotes das cúrias eram eleitos por elas, é razoável que admitamos o mesmo quanto aos chefes (príncipes) das gens, ainda que pudesse ser regra eiegê-los de uma mesma família.

Conforme dissemos, dez gens formavam uma fratria, que aqui se chamava cúria e tinha atribuições mais importantes que as de sua correspondente grega. Cada cúria tinha suas praticas religiosas, seus santuários e sacerdotes; estes últimos, constituídos num organismo, formavam um dos colégios sacerdotais romanos. De dez cúrias se compunha uma tribo, que originalmente, como as demais tribos latinas, deve ter tido um chefe eleito - supremo comandante na guerra e grão-sacerdote. O conjunto das três tribos era o povo romano, o populus romanus.
Desse modo, ninguém podia pertencer ao povo romano se não fosse membro de uma gens e, conseqüentemente, de uma cúria e de uma tribo.
A primeira constituição desse povo foi como se segue. A gestão dos negócios públicos era da competência do Senado, composto dos chefes das trezentas gens, conforme Niehbur foi o primeiro a compreender; por serem dos mais velhos em suas gens, estes chefes chamavam-se patres, pais; o conjunto deles ficou sendo o Senado (de senex, velho - conselho dos anciãos).
A escolha habitual do chefe para cada gens no seio das mesmas famílias criou, também aqui, a primeira nobreza gentílica. Essas famílias chamavam-se patrícías e pretendiam para elas a exclusividade no Senado e ocupação dos demais cargos públicos.
O fato de que, com o tempo, o povo se fosse submetendo a tais pretensões e deixasse que elas se transformassem em direito real é, a seu modo, uma explicação da lenda que dizia ter Rômulo, desde o início, concedido aos senadores e aos descendentes dos mesmos os privilégios do patriciado.
O Senado, tal como a bulê ateniense, tinha poderes para decidir em muitos assuntos e proceder á discussão preliminar dos mais importantes, sobretudo das leis novas. Quem as votava, contudo, era a assembléia do povo, chamada comitia curiata (comícios das cúrias).
O povo se reunia, agrupado por cúrias, e em cada cúria provavelmente por gens, cada cúria contando com um voto na decisão das questões.
Os comícios das cúrias aprovavam ou rejeitavam todas as leis, elegiam todos os altos funcionários, inclusive o rex (o chamado rei), declaravam guerra (mas a paz era concluída pelo Senado) e, na qualidade de Supremo Tribunal, julgavam as apelações nos casos de sentença de morte contra cidadão romano.
Por fim, ao lado do Senado e da assembléia do povo, ficava o rex, correspondendo exatamente ao basileu grego - e de modo algum um monarca quase absoluto, como no-lo apresenta Mommsen.
O rex era também chefe militar, grão-sacerdote e presidente de certos tribunais; não tinha funções civis ou poderes de qualquer espécie sobre a vida, a liberdade e a propriedade dos cidadãos, desde que tais direitos não proviessem da sua condição de chefe militar no exercício de funções disciplinadoras ou de presidente de tribunal no exercício de atribuições judiciárias. As funções de rex não eram hereditárias e sim eletivas; as cúrias escolhiam o rex em comício, provavelmente de acordo com uma proposta do seu predecessor, e empossavam-no solenemente em outra reunião.
Também podia ser deposto, como prova o que aconteceu a Tarquínio, o Soberbo. Tal como os gregos da época heróica, os romanos no tempo dos chamados reis viviam, portanto, numa democracia militar baseada nas gens, nas fratrias e nas tribos, e desenvolvida a partir delas. Embora as cúrias e as tribos possam ter sido, em parte, formadas artificialmente, nem por isso deixavam de estar constituídas de acordo com o modelo genuíno e natural da sociedade de que se originaram, modelo que ainda as envolvia por toda parte.

Engels, Frederich. A Origem da Família, da propriedade privada e do Estado.


Nota: Nota-se que a gens era importante aos latinos sim, porque ligava o indivíduo à sua origem familiar, mas curiosamente houveram lutas entre as gens latinas, pelo domínio da região e, com a vitória dos Romanos, veio o Império Romano onde a gens recebeu seu valor como instituição social.

Um comentário:

Leo Carioca disse...

Bom, na própria Grécia nunca existiu um rei absoluto que governasse toda a Hélade e todo o Peloponeso, né?
O poder do rei só era ´absoluto` dentro da própria pólis grega que era governada por aquele rei específico.