Segundo Edwin Abbott, um estudioso de Shakespeare que viveu na Inglaterra vitoriana, nós a chamamos de Terra dos Planos. Alguns de nós são quadrados, outros, triângulos, alguns possuem formas mais complexas. Corremos precipitadamente para dentro e para fora de nossas construções planas, ocupados com nossos afazeres e brincadeiras planas.
Todos na Terra dos Planos têm largura e comprimento, mas não altura. Sabemos sobre esquerda e direita, para frente e para trás, mas nenhuma ideia, ou remota compreensão, sobre em cima e embaixo, exceto os matemáticos planos.
Eles dizem: "Escutem, é muito fácil. Imaginem a esquerda e a direita. Imaginem à frente e atrás. Tudo bem até aqui? Agora imaginem outra dimensão, em ângulos retos com as outras duas." E nós respondemos: "Do que vocês estão falando? Ângulos retos com as outras duas? Existem somente duas dimensões. Apontem esta terceira dimensão. Onde está ela?"
Então os matemáticos, desanimados, desistem. Ninguém escuta os matemáticos.
Toda criatura quadrada na Terra dos Planos vê outro quadrado meramente como um pequeno segmento de reta, o lado do quadrado mais próximo dela. Ela pode ver o outro lado do quadrado somente se caminhar um pouco. Mas o interior do quadrado é sempre misterioso, a menos que algum acidente terrível ou autópsia rompa os lados e exponha as partes internas.
Um dia, uma criatura tridimensional, com a forma de uma maçã, por exemplo, chegou à Terra dos Planos e andou a esmo por lá.
Observando um quadrado particularmente atraente e bem proporcionado, entrando em sua casa plana, a maçã decide, em um gesto de amizade interdimensional, dizer "olá". "Como vai você?" pergunta o visitante da terceira dimensão. "Eu sou um visitante da terceira dimensão."
O infeliz quadrado olha à volta da sua casa e não vê ninguém. Ainda pior, para ele, parece que o cumprimento, vindo de cima, está emanando do seu próprio corpo plano, uma voz do interior. Uma pequena insanidade, talvez ele pense corajosamente, e corre para a sua família.
Exasperada por estar sendo julgada uma aberração psicológica, a maçã desce à Terra dos Planos.
Agora, uma criatura tridimensional pode existir, na Terra dos Planos, somente em parte; pode ser visto somente um corte, somente os pontos de contato com a superfície plana da Terra dos Planos. Uma maçã escorregando na Terra dos Planos apareceria primeiro como um ponto e então progressivamente maior, quase que em fatias circulares.
O quadrado vê um ponto aparecendo em um quarto fechado em seu mundo bidimensional e lentamente crescer transformando-se quase em um círculo. Uma criatura de forma estranha e mutável surgiu de algum lugar.
Rejeitada, infeliz com a obtusidade dos muitos planos, a maçã bate com força no quadrado e o levanta, vibrando e girando nesta misteriosa terceira dimensão.
A princípio o quadrado não
consegue entender o que está acontecendo: está totalmente fora da sua experiência. Eventualmente ele se conscientiza de que está vendo a Terra dos Planos de um local vantajoso peculiar: "acima". Pode ver dentro de quartos fechados e dentro de seus companheiros planos. Está vendo seu universo de uma única e devastadora perspectiva.
Viajar através de uma outra dimensão proporciona, como um benefício incidental, um tipo de visão de raios X. Eventualmente, como uma folha que cai, nosso quadrado lentamente desce para a superfície. Do ponto de vista dos seus companheiros da Terra dos Planos, ele desapareceu de modo inexplicável de um quarto fechado, e então materializou-se, aflito, em algum lugar.
"Pelo amor de Deus", dizem eles, "o que aconteceu com você?" "Penso", descobriu-se dizendo, "que estava acima". Eles dão pancadinhas em seus lados e o confortam. As desilusões sempre aconteceram na família.
Nestas contemplações interdimensionais, necessitamos não nos restringir a duas dimensões. Podemos, segundo Abbott, imaginar um mundo de uma dimensão, onde todos são um segmento de reta, ou até um mundo mágico de seres zero-dimensionais, os pontos.
Talvez sejam mais interessantes as perguntas sobre dimensões maiores. Poderá haver uma quarta dimensão física?
Podemos imaginar o gerar de um cubo da seguinte forma: tome um segmento de reta de um determinado comprimento e mova-o em comprimentos iguais a ângulos retos com ele mesmo.
Isto forma um quadrado. Mova o quadrado em comprimentos iguais em ângulos retos com ele mesmo e teremos um cubo.
Entendemos que este cubo lança uma sombra, que geralmente desenhamos como dois quadrados com seus vértices unidos. Se examinarmos a sombra do cubo em duas dimensões, notaremos que todas as linhas não são iguais e nem todos os ângulos retos.
O objeto tridimensional não foi perfeitamente representado nesta transfiguração em duas dimensões. É o preço da perda de uma dimensão na projeção geométrica. Tomemos agora nosso cubo tridimensional e transportemo-lo, em ângulo reto com ele mesmo, para uma quarta dimensão: não esquerda-direita, não frente e trás, não acima e abaixo, mas simultaneamente em ângulos retos a todas estas direções.
Não posso mostrar que direção é esta, mas posso imaginar que ela exista. Neste caso teremos gerado um hipercubo quadridimensional, também chamado tesseract. Não posso mostrar-lhes uma tesseract porque estamos aprisionados em três dimensões. O que posso apresentar é a sombra em três dimensões de um tesseract.
Parecem dois cubos aninhados, todos os vértices unidos por linhas. Para um tesseract real em quatro dimensões, todas as linhas seriam de igual comprimento e todos os ângulos seriam retos.
Imaginemos um universo como a Terra dos Planos, exceto que desconhecido dos habitantes, seu universo bidimensional é curvado em direção a uma terceira dimensão física. Quando os habitantes andam um pouco, seu universo parece bem plano. Mas se um deles anda mais obedecendo ao que parece uma perfeita linha reta, ele descobre um grande mistério; embora não tenha alcançado uma barreira e nunca tenha voltado, ele de alguma forma voltou ao local do qual tinha partido.
Este universo bidimensional deve ter sido torcido, inclinado ou curvado em direção a uma misteriosa terceira dimensão. Ele não pode imaginar a terceira dimensão, mas consegue deduzi-la.
Aumentem todas as dimensões na história, exceto uma, e teremos uma situação que pode ser aplicada a nós.
Onde é o centro do Cosmos? Há um limite para o universo? O que fica atrás? Em um universo bidimensional curvado para uma terceira dimensão, não há centro, pelo menos não na superfície da esfera.
O centro deste universo não está no universo, mas sim inacessível, na terceira dimensão, dentro da esfera. Enquanto houver somente uma grande área na superfície, não há limite para este universo, ele é finito, mas sem fronteiras. E a questão sobre o que fica atrás não tem significado. As criaturas planas não podem por si próprias, escapar das suas duas dimensões.
Aumentem todas as dimensões, exceto uma, e teremos uma situação que se aplica a nós: o universo como uma hiperesfera quadridimensional, sem centro e sem bordo, e nada atrás.
Por que todas as galáxias parecem estar se afastando de nós? A hiperesfera está se expandindo a partir de um ponto, como um balão quadridimensional sendo inflado, criando a cada instante
mais espaço no universo.
Em algum tempo após a expansão ter-se iniciado, as galáxias se condensam e são carregadas na superfície da hiperesfera. Há astrônomos em cada galáxia, e a luz que eles vêem também está aprisionada na superfície curva da hiperesfera. À medida que a esfera se expande, um astronomo em qualquer galáxia pensará que todas as outras galáxias estão se afastando dele. Quanto mais longe a galáxia, mais rápida a sua recessão. As galáxias estão embebidas e ligadas ao espaço, e a estrutura está se expandindo. E para a pergunta onde, no universo atual, ocorreu o Big Bang, a resposta é, claramente, em todo local.
Se não houver matéria suficiente para evitar uma expansão para sempre do universo, ele deverá ter uma forma aberta, curva como uma seta, com a superfície se estendendo ao infinito em nossa analogia tridimensional. Se houver matéria suficiente terá então uma forma fechada, curva como uma esfera em nossa analogia tridimensional. Se o universo é fechado, a luz está aprisionada dentro dele.
Na década de 1920, na direção oposta àM31, observadores descobriram um par distante de galáxias espirais. Seria possível, eles se perguntaram, que estivessem vendo a Via-láctea e a M31 em outra direção, como veríamos a parte de trás da nossa cabeça com a luz que circunavegou o universo?
Sabemos agora que o universo é muito maior do que o imaginado em 1920. A luz leva muito mais do que uma existência do universo para percorrê-lo. E as galáxias são mais jovens do que o universo. Mas se o Cosmos é fechado e a luz não pode escapar dele, então é perfeitamente correto descrever-se o universo como um buraco negro. Se quisermos saber como é o interior de um buraco negro basta olhar à volta.
Mencionamos anteriormente a possibilidade de túneis para ir de um local no universo para outro, sem cobrir a distância interposta — através de um buraco negro. Podemos imaginar estes túneis como tubos atravessando uma quarta dimensão física. Não sabemos se estes túneis existem, mas se existirem, eles sempre se engatarão a outro local em nosso universo? Ou será possível conectarem com outros universos, locais que de outro modo seriam para sempre inacessíveis a nós? Pelo que sabemos deve haver muitos outros universos. Talvez sejam, em um sentido, aninhados um dentro do outro.
Há uma ideia — estranha, apelativa —, uma das mais estranhas conjecturas na ciência ou religião. É totalmente indemonstrável, talvez nunca seja provada. Mas é excitante. Somos informados de que existe uma hierarquia infinita de universos, de modo que uma partícula elementar, como um elétron, em nosso universo, revelaria, se penetrada, ser universo fechado e inteiro.
Dentro dela, organizada no equivalente local de galáxias e estruturas menores, haveria um número imenso de outras, muitíssimo menores, partículas elementares, que são elas mesmas
universos no nível seguinte, e assim por diante — uma regressão descendente infinita, universos dentro de universos, sem fim. E ascendente também.
Nosso universo familiar de galáxias e estrelas, planetas e povo, seria uma única partícula elementar no próximo universo acima, o primeiro passo de outra regressão infinita.
Esta é a única ideia religiosa que conheço que ultrapassa o número sem fim de universos cíclicos infinitamente antigos na cosmologia hindu. Como se parecerão estes outros universos? Serão
montados sobre leis da física diferentes? Terão estrelas, galáxias e mundos, ou algo inteiramente diferente? Serão compatíveis com uma forma de vida diferente e inimaginável? Para entrar neles, teremos de alguma forma que penetrar em uma quarta dimensão física, certamente um empreendimento não muito fácil, mas talvez o buraco negro seja o caminho. Talvez existam pequenos buracos negros nas imediações solares. Suspensos no limite do eterno, poderíamos transpor...
Carl Sagan – Cosmos, pg. 262-267
Nota: O observador sagaz irá perceber que os cientistas recorrem à uma linguagem metafórica para explicarem a Ciência de forma acessível, a mesma linguagem dos mitos. O que o ser humano (crente ou descrente) deveria perceber é que os mitos e as religiões não são (ou não deveriam ser) as donas da Verdade, mesmo porque a Verdade é dona de si mesma. Os mitos e as religiões são sistemas, como a Ciência, que aponta os indícios através dos quais se pode ter um vislumbre da Verdade.
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