sexta-feira, 8 de abril de 2022

Aldebaran

O sonho de Enki


Enquanto Enki e seu grupo trabalhavam duro para satisfazer a ganância de Anu, cinco jovens Deusas observavam de uma distância segura a movimentação frenética na região proibida das terras baixas.


Elas estavam acompanhando os jovens Deuses há algum tempo, com certa ansiedade e expectativa, enquanto eles marchavam em direção à Terra Negra. Uma delas, Ninlil, ficou particularmente apreensiva quando Enki ensaiou os primeiros passos nas terras baixas. Anat percebeu que ela estava transtornada e resolveu quebrar o silêncio fúnebre.


- O que aconteceu, Ninlil? Suas faces róseas perderam a cor, sumiu o seu sorriso fácil, uma nuvem paira em sua cabeça. O que perturba teu coração?


- Cala-te, Anat! Não te emociona ver nossos irmãos caminharem para a morte?


- Não é teu amor fraternal que te consterna, Ninlil. Eu te vi diversas vezes suspirar, quando olhava e falava de Enki.


- O que espera que eu diga? Que eu gosto de Enki? Qual de vós está aqui que não seja por estar preocupada com seu amado? Quem pode me condenar, censurar, repreender? Quem pode proibir, cercear, conter o amor? Maldito seja aquele que tornar o amor em vergonha.


- Ora, não precisa ficar tão brava! Veja, Enki está passeando em cima das terras baixas. Nada aconteceu a ele!


Ninlil volta sua atenção a Enki e sente como se um peso caísse de suas costas. De canto de olho percebe que suas irmãs também parecem estar mais aliviadas. Então ela tem uma ideia.


- Irmãs, vejam que eu estou certa. Nós todas temos bons motivos para estarmos aqui. Façamos nosso acampamento aqui, assim poderemos acompanhar os nossos amados e ajudá-los em segredo.


De imediato, as jovens Deusas concordaram com um estrondoso clamor de alegria, o que chamou a atenção dos jovens Deuses. Estes contentes, perceberam que não eram de todo desvalidos e renegados. Secretamente cada um levava em seu coração a atração, o interesse e o amor por uma dessas Deusas. O burburinho e a proximidade delas foi a melhor paga que poderiam ter.


Os trabalhos seguiam, dia a dia, noite a noite, por sete dias inteiros, sem cessar, para então os Deuses descansarem ao sétimo dia, como sempre fizeram desde tempos imemoriais, celebrando o sabbatu em memória de antigas Deusas, cujos nomes se perderam nas brumas do tempo, mas os Deuses se recordam delas como mães dos Deuses. Com a providencial ajuda das jovens Deusas, na noite de Sexta, todos comeram e beberam em homenagem às Deusas mães. Depois os Deuses e Deusas foram até o acampamento para cada qual compartilhar o leito. Dormiram, por fim, após algumas horas de ginástica intercorporal.


Naquela noite e nas seguintes, Enki foi assombrado por um pesadelo com uma Deusa desconhecida lhe falando e mostrando o futuro sangrento que aguardava os Deuses.


- Enki, o Habilidoso! Assim te chamam os Deuses. Breve, muito em breve, tu terás a devida oportunidade de me levar à tua casa. Nunca esqueça de teus votos, Enki!


A voz desta Deusa estranha surtia um efeito inesperado e constrangedor em Enki. Sentir a presença dela era como se Enki estivesse diante de Ninlil e de Nana, mas como uma mesma Deusa pode acender o amor filial e o amor erótico ao mesmo tempo?


Cenas perturbadoras do futuro dos Deuses, com pais matando os filhos, filhos matando os pais, mães devorando sua prole. Mas o que mais o aterrorizava era uma criatura, escura e pequena, que surgia e se espalhava como praga, a todo consumindo e dominando, tomando até o lugar dos Deuses. Ao acordar assustado, viu que Ninlil também não teve sonhos agradáveis e ambos guardaram segredo de seus pesadelos.


Os trabalhos prosseguiram até sua conclusão quando só então Enki pôde receber em seu acampamento Anu e sua comitiva. Os Deuses puderam admirar boquiabertos a obra de Enki e Anu tratou de realizar a inauguração da Cidade dos Deuses com toda formalidade e cerimônia. E Enki pôde observar, petrificado, uma terrível sombra pairando sobre a coroa e a cabeça de Anu.

A Cidade dos Deuses


A obra de Enki impressionava, nunca houve nem nunca haverá algo igual. Quando os Deuses desceram da montanha, saindo de suas tendas, ficaram assombrados desde o capitel que foi estrategicamente colocado para a comitiva de Anu passar. Após a passagem, um amplo páteo, cuja extensão abarcava toda a montanha, com pedras polidas firmemente assentadas. Mais adiante, uma incrível engenharia canalizava os rios, represava os lagos e silos drenavam o excesso de água. Para concluir a reforma, Enki reforçou com uma muralha a serra que separava o vale do pântano do grande mar, com comportas para regular a vazão de água.


O pântano, depois da intervenção de Enki, não exalava mais o cheiro de morte nem tinha mais o cenário de decomposição. Onde era o pântano, Anu podia orgulhosamente nomear de Cidade dos Deuses, que ele iria tirar proveito para reafirmar seu poder, seria calculadamente repartido entre os Deuses. Não estava nos planos nem no projeto, mas Anu separou a Cidade dos Deuses em setores que seguissem a divisão que havia sido conduzida com êxito na montanha dos Deuses. De forma arbitrária, com uso de força, por chantagem, por influência familiar, não havia limites para Anu realizar seus objetivos.


Deu a Urano o setor que foi chamado de Hélade, deu a Saturno o setor que foi chamado de Albion, deu a Elohim o setor que foi chamado de Canaan e deu a Amon o setor que foi chamado de Kemet. Reservou para si e seus familiares a montanha dos Deuses e o grande pátio em volta dela, chamando-o de Campos Elíseos. Como antes, os melhores materiais Anu guardava para si e por concessão onerosa dividia o excedente entre os demais Deuses. Exceto Enki, um Deus jovem que ainda não tinha qualquer direito de linhagem ou nobreza, recebeu um décimo do que porporcionava a Anu e ganhava o dízimo dos outros Deuses. Como se não bastasse essa afronta, Anu lhe deu o setor que foi chamado de Sumer, aumentando ainda mais a raiva e a revolta dos Deuses contra Anu.


Durante a assembleia, onde Anu instituiu as divisões, as obrigações, as vassalagens, a corvéia e os direitos, Nana percebeu que Ninlil estava com um semblante diferente. Com a escusa de que iria buscar com ela mais vinho para pôr à mesa, fez a Ninlil a pergunta que sua curiosidade lhe apertava na garganta.


- Irmã, aconteceu algo contigo, pois não tens mais a face de menina, mas de donzela. Por acaso inauguraste teu templo?


- Oh, minha senhora Nana! Eu não sei se fico feliz ou embaraçada. Eu abri meu templo e devo estar com a graça do Deus…


- Embaraçada estás, sem dúvida! Venha, minha irmã, que é mister clamar pelos teus direitos de linhagem. Rápido, vamos a Antu, senhora de todas nós, para que possamos clamar a herança.


Tolo, efêmero e mortal leitor, que se empenha em coisas fúteis, acumulando patrimônio, vivendo em uma era onde a Razão se sobrepõe cada dia mais contra a Emoção, certamente não sabe, nem nunca se deu conta, de onde vem a fonte da riqueza. A ti será concedido mais misericórdia do que foi dada a Anu, que olvidou a quem pertence a majestade e o trono. Anu não possui a coroa, a coroa convive com ele enquanto assim desejar. Anu não tem força na armadura nem poder em sua espada se não tiver a unção sagrada dada por Antu. Nisto reside um mistério, homens, que não podemos ver de frente.


Voltemos aos jovens Deuses, os quatro que, com Enki, construíram a maravilhosa Cidade dos Deuses. A estes não foram dadas tantas honrarias, toda fama e riqueza seria dada a Enki e isto é justo, porque assim contrataram enquanto temiam por suas vidas às margens das terras baixas. Levaram apenas o coração das jovens Deusas, com quem viveriam como casais, em habitações simples, nas bordas mais afastadas, como que para se proteger das intrigas e disputas entre os Deuses, mas isto apenas providenciou o ninho para as tragédias que se seguiriam.


Mesmo Enki não estaria sempre com boa fortuna como parece estar. Sumer era seu jardim, ele tinha uma bela esposa e uma impressionante mansão com muitos servos sob suas ordens. E mesmo com tudo isso, mesmo com o reconhecimento que ele tanto buscava, sua admissão na corte de Anu, os elogios e aplausos, nada disso conseguia afastar o terrível sonho ou a soturna presença da Deusa desconhecida que o visitava desde a primeira noite que passou na Terra Negra.


Ainda não se sabe por que sonhamos nem como os sonhos são formados e seus significados são desconhecidos. Pesadelos, por outro lado, são uma estranha forma da nossa consciência ou de nos avisar ou de nos castigar. Para nossa sorte ou azar, sonhos e pesadelos se desfazem ao acordarmos. Nem isto Enki desfrutaria. Durante uma de suas audiências que ele concedia aos outros Deuses para ouvir seus pedidos e considerarem interceder por estes diante de Anu, Enki achou que estava sonhando acordado, ou pior, tendo um pesadelo acordado. Bem diante dele, causando intensa agonia, uma sensação mórbida, a figura e a presença da deusa desconhecida, que causava terror até aos Deuses que lá estavam e nunca haviam tido sonhos ou pesadelos com ela.

A dragonesa


Quando os Deuses não conseguiam se fazer ouvir nas assembléias convocadas por Anu, eles iam tentar a sorte nas audiências concedidas por Enki. O jovem Deus desfrutava do prestígio e da influência que os Deuses lhe davam, mas toda a agitação e burburinho cessou instantaneamente, prevalecendo um silêncio sepulcral, assim que chegou essa Deusa.


Certamente haviam Deusas nas audiências de Enki e, sem dúvida, cada uma tinha sua quota de beleza e poder que inspirava cortesia e respeito. Mas esta Deusa, ainda que tenha sido a última a chegar, foi se aproximando de Enki para ser atendida primeiro. Ela não parecia ser mais velha do que Ninlil, sua esposa, não obstante emanava uma majestade e uma sabedoria tão antiga quanto a de Antu. Sem dizer uma única palavra, deixou a todos prostrados de joelhos, em silêncio, enquanto prosseguia pelo salão até ficar diante de Enki.


- Enki, o Habilidoso! Assim te chamam os Deuses. Estás pronto para tuas contas?


- Quem és tu? Eu conheço a cada Deus e Deusa aqui presente, mas tu inspira mais respeito e temor do que todos.


- Tu me conheces muito bem, jovem Enki, embora não tenhamos sido devidamente apresentados. Devo dizer diante de todos nossos negócios pendentes, Enki?


A Deusa tinha firmeza, postura, dignidade, personalidade e poder. Para os padrões do mundo divino ela inspirava tanto o afeto materno quanto o sensual, mas para os padrões do mundo humano ela certamente inspiraria medo e terror.


Oh, povo do mundo que, com sua soberba e orgulho, tem se colocado no centro do universo e usurpado o trono dos Deuses! O sábio lhes diz que o que existe não serve para tua satisfação, as coisas são como são. Tudo que existe tem forma, mesmo os Deuses e que se saiba que apenas farsantes e vigaristas se ocultam na transcendência. O povo do mundo, vaidoso, gosta de imaginar e vestir os Deuses como pálidos reflexos de si mesmo e acabam tomando a figura como real. Os Deuses não são nossas sombras, nem nossos delírios, nem nossas projeções mentais. Os homens criam arquétipos para entender os Deuses, mas somos nós as sombras, os reflexos dos Deuses. Ainda que não gostemos do que vemos, os Deuses e Deusas manifestam a Verdade e, se nos chocamos, é porque nos negamos, nos recusamos a ver nossa essência ali repousada.


A perturbação que atingia Enki não era humana, mas divina. Aquela Deusa, por sua atitude e aparência, incendiava seu amor filial e seu amor erótico. Ela era tão alta quanto Antu, seu corpo esguio e curvilíneo era coberto com escamas em tons de vermelho, vinho e preto. Nas dobras e extremidades do corpo haviam belos e pequenos esporões. Nas mãos e nos pés, garras. Em sua cabeça, além do cabelo liso e negro, três chifres a coroavam. Era como um grande lagarto e fêmea, uma dragonesa.


- Diga o que quer, mas diga quem tu és.


- Eu sou Ninmag, filha de Nintu, neta de Mummu, descendente direta daquela que é mãe de todos nós, a Deusa que emergiu do Caos. O que eu demando é que cumpra tua promessa tornando-se meu consorte.


- O que dizes? Enki é meu marido!


- Irmãzinha, não desejo tirar tuas posses e honrarias. Pouco me importa que vivam juntos como casal. Teu precioso Enki será meu cortesão, dele gerarei meus filhos e a casa de Anu será nossa casa. Não te convém evocar teus direitos ou monopólio sobre o corpo e o amor de Enki, pois não existe senhorio e propriedade no amor e no relacionamento.


- Enki, o que significa isso? Tu me disseste que eu sou a tua amada, a única e a primeira.


- Irmãzinha, antes de tu Enki tocou e conheceu o meu corpo. Tu ainda és jovem, com o tempo há de aprender quais são teus reais direitos e descobrirás a função do consorte.


- Tu falas como se muitos anos tivesse, mas tua aparência é tão jovem quanto a minha. Por que nos trata como crianças?


- Irmãzinha, não se deve conhecer as coisas pelo seu aspecto externo. As coisas não são como parecem ser. Eu te chamo de irmãzinha, mas se tu evocares teus direitos de linhagem e herança, saiba que eu sou tua tia.


Enki estava visivelmente nervoso, se sentindo humilhado e acuado. Ele havia conquistado com muito risco e esforço o tão sonhado lugar na corte de Anu, algo que somente era assegurado graças ao seu matrimônio com Ninlil. Entretanto a tentação de ser o consorte de Ninmag enchia sua mente com idéias de poder e riqueza que o tornaria tão grande senão maior do que Anu. Estes sonhos teriam um fim manchado com sangue.


Ninlil não estava gostando do que via. Não tinha ela, junto com outros Deuses e Deusas, descido ao mundo chamado de Gaia e construído a colônia de Aldebaran? Ninmag não estava nem no grupo nem na caravana que havia escapado do Caos. Ninlil era uma Deusa jovem, mas por orgulho e vaidade negava-se a aceitar as verdades das coisas. Assim como nós, humanos, ela queria perceber o universo todo de sua perspectiva centrada em seu ego. A tragédia teria seu efeito devastador aumentado, pois tudo que Ninlil quis, naquele momento, foi aprender os segredos que Ninmag tinham, para seu uso futuro.

O resgate de Enki


Em termos humanos, os Deuses chegaram há alguns anos em Gaia, estabelecera-se, prosperaram. O conforto e a segurança deram a oportunidade para os Deuses ampliarem seus domínios e riquezas. Em pouco tempo, os Deuses esqueceram de seus valores e logo a necessidade de mais espaço, mais casas, mais mantimentos e mais riquezas fizeram com que Anu cobiçasse a conquista das florestas e terras além.


A cada primavera em Gaia, Deuses e Deusas uniam-se, isto nunca foi caso para criar problema ou escândalo. Apenas um farsante se oculta na transcendência. Apenas um castrado condena o prazer, o sexo e o amor. Os Deuses aumentavam sua prole, a espécie divina se espalhava. Mas nem todos estavam felizes. Ninlil cobiçava o poder de Ninmag e constantemente vinha incomodar Anu, reclamando do sumiço de Enki a cada seis meses do ano de Gaia. Em termos divinos, uma semana. Aventuras e relações paralelas eram coisas costumeiras e normais para os Deuses. O Amor era uma força antiga que era respeitada pelos Deuses e reverenciada por não ter começo, meio ou fim. Foi Ninlil quem inventou o ciúme e essa estranha mania que nós humanos temos em querer tornar quem amamos algo de nossa posse. Pior, nós inventamos os tabus, as fronteiras e as proibições que nos tem tornado tão pobres e indigentes no amor.


Anu não tinha tempo ou paciência para estas queixas menores de uma esposa ressentida, ele sabia muito bem que Enki deveria estar nos braços e pernas de outras Deusas, não era surpresa ou novidade o boato da corte que Enki estava convivendo com Ninmag. Mas o apetite de Ninmag pelo corpo de Enki estava começando a ser um empecilho para os projetos e os planos de Anu. Para achar e resgatar Enki, Anu teria primeiro que encontrar o local onde Ninmag habitava e isto certamente estava além de seus domínios.


Anu convocou uma assembleia de emergência onde, fingindo uma preocupação paternal, requisitou aos Deuses uma comissão para reaver Enki. Um pedido e tanto, visto que apenas Enki se disporia a tal risco. Cronos, vendo nisto uma oportunidade, avisou Rhea, sua esposa, de sua decisão, pegou seu escudo e espada, deixando-a aos cuidados das irmãs dela, Thetis, Phoebe e Selene. oh, povo do mundo, podem imaginar por que ou como um Deus pode desafiar e quebrar as inúmeras proibições e maldições feitas aqueles que saíssem da Cidade dos Deuses e entrassem na floresta sagrada! Por muito menos nós desafiamos e quebramos a lei divina de não matar! Cronos ao menos o faz por altos ideais como honra, virtude e coragem.


Cronos foi quem primeiro ousou adentrar na densa floresta, deparou-se maravilhado com a fauna e a flora. Cronos foi quem nos flagrou em algum canto de Gaia mas não nos deu muita importância naquele momento. Ele lembrou de que Enki lhe contou sobre como dominou as terras baixas, pedindo em oração silente ao Espírito que ali habitava por proteção e salvo-conduto. Cronos bufou, ele é um Deus guerreiro, mas se isto funcionou com Enki, poderia muito bem funcionar com ele.


- Eu invoco ao Espírito que habita a Floresta Negra e vos saúdo. Eu venho em paz, não em guerra. Eu tenho que cumprir esta missão. Eu não vim para invadir vosso domínio, mas para achar onde Ninmag habita e de lá retornar com meu irmão Enki. Para isso, eu devo passar por vosso território, então eu vos peço que apazigue as plantas e as feras para que não me ataquem. Eu não usarei minha espada contra vós se não usardes as vossas contra mim. Passarei tão rápido e despercebido como o vento e seguirei meu destino.


Segui-se um imenso silêncio em toda a floresta. O único som foi o de algo batendo, pulsando, aproximando-se de Cronos. Ali, para o terror e medo de Cronos, o Deus mais guerreiro e corajoso que existiu, apresentou-se o Deus da Floresta Negra. Cronos deixou seu escudo e sua espada caírem e ajoelhou-se diante de tanto poder e majestade.


- Cronos, meu filho! Tu e toda tua gente são bem-vindos, pois sou vosso igual. Tua missão tem um propósito maior e mesmo assim terás que pagar um terrível custo!


- Meu Senhor! Eu não vos conheço mas eu, Cronos, o Valente, não receio coisa alguma nesta vida, exceto o vosso poder.


- Cronos, meu filho, o Valente! Assim como uma força maior que tu o colocaste nessa missão, uma força maior te protege e te conduz. Chame a isto de Destino, se quiser. Tu te ajoelhas diante de mim porque todos nós somos governados por estas forças. Nem eu nem Deus algum pode obrigar ou constranger a ser existente para que se ajoelhe diante dele.


- Então vós podeis ajudar-me a achar onde Ninmag habita e resgatar meu irmão Enki?


- Além da Floresta Negra, além das montanhas que cercam a Cidade dos Deuses, há o Grande Mar. Eu posso te conduzir até a praia mas mais além não. Tu deverás transpor o Mar Negro até a Ilha Negra. Lá encontrará o santuário de Ninmag.


Cronos foi deixado na orla, sozinho, ao sabor da sorte. Ele é um Deus que conhece tudo de campanha, de estratégia, de movimentação de tropas. Enki saberia como percorrer a superfície deste imenso mar e chegar nessa ilha, mas não Cronos. De dentro das águas, uma estranha criatura marinha aproxima-se de Cronos, saúda-o e oferece ajuda.


- Salve Cronos! O teu destino é tão brilhante quanto sangrento. Eu posso te levar até a ilha de Ninmag.


- Tu não temes o poder de Ninmag, a Senhora dos Mares?


- Eu sou um dos muitos Espíritos que habitam estas águas e todos nós somos livres e autônomos, não temos um Senhor ou Senhora.


- E qual a tua paga?


- Quando tu estiverdes no santuário de Ninmag para resgatar teu irmão, tu podes trazer de volta meu báculo que Ninmag furtou.


Cronos foi levado até a ilha onde Ninmag tinha seu santuário e ali outra estranha criatura veio ajudá-lo. Conduzido por uma trilha, por entre pedras, precipícios, plantas venenosas e bestas ferozes, Cronos chegou incólume até a montanha e a entrada da caverna onde Ninmag estava mantendo Enki em cárcere.


- Qual é a tua paga?


- Nobre Cronos, livra-nos da dominação de Ninmag.


Cronos assinalou com a cabeça e entrou na caverna. O ambiente da caverna assustaria qualquer um, menos Cronos. O único espanto que ele teve deu-se quando encontrou seu irmão Enki, em um estranho abraço com Ninmag, penetrando e sendo penetrado.


- Quem ousa conspurcar meu santuário? Adiante-se, mostre-se, apresente-se, pois eu sou tua igual!


- Eu sou Cronos! Eu vim para levar Enki!


- Então tu morrerás aqui!


A intensa refrega entre Cronos e Ninmag fez com que a caverna estremecesse. Apesar de Cronos ter habilidade e experiência com batalhas, ele mal conseguia se defender dos ataques de Ninmag. Com um único golpe, Ninmag desarmou Cronos e estraçalhou sua espada e escudo, arremessando-o com violência contra a parede da caverna. O poder, a força e a fúria de Ninmag eram demais para Cronos que, aturdido, quebrado, sangrando, apenas podia esperar pelo golpe final. O que ele receava não era tanto o fim de sua existência, mas a derrota em uma batalha. Desesperado, a ponto de desmaiar, Cronos apanhou uma planta bulbosa que estava ali perto, apontou na direção de Ninmag e apertou a parte bulbosa da planta, lançando o pólen no rosto dela. A reação, imediata, inesperada, foi o entorpecimento e a queda de Ninmag.


Mesmo dolorido e sangrando, Cronos pegou e levou Enki de volta à Cidade dos Deuses. Enki protestou, apesar das boas intenções de Cronos e de sua missão ter um nobre propósito. Deu à criatura da ilha a planta como paga. Devolveu o báculo para a criatura do mar. Deu sua armadura ao Deus da Floresta.

O sonho de Rhea


A chegada de Cronos e Enki ao voltarem à Cidade dos Deuses foi um misto de incredulidade e maravilhamento. De improviso, os Deuses começaram a arrumar a festa de boas vindas. Para Enki, não para Cronos. Afinal, Cronos era um que havia preferido viver na periferia. Cronos tinha escolhido manter sua posição como rejeitado, renegado. Ele teve a oportunidade, mas preferiu se perder em seus sentimentos de rancor e mágoa. Ele simplesmente retornou ao seu lar para cuidar de suas feridas.


Em sua casa, Cronos foi recebido por Phoebe, Selene, Thetis e Rhea com cânticos de vitória, guirlanda de louros e muito vinho. Mesmo com essa recepção, carinho e amor devotado por quatro Deusas, Cronos não dissipou seu rancor e mágoa. Mesmo tendo três das mais belas Deusas dançando voluptuosamente em sua homenagem, mesmo estando nos braços de Rhea, sua esposa, Cronos tinha fechado seu coração ainda em mais trevas, em vinganças, em violência, em morte.


- O que houve, meu Rei? Por que teu coração está tão turvo?


- Minha amada, se eu pudesse te contar o que eu vi e vivi, teu coração também ficaria coberto com uma sombra.


- Eu sei como dissipar essa neblina que cobre teu coração, meu Rei.


Rhea apanhou o cetro de Cronos e o inseriu em seu mais sagrado templo, sendo efusivamente aplaudida por suas irmãs. Cronos sorriu com essa situação inusitada. Ele, tão acostumado a batalhas, ao enduro, à resistência, ao confronto que podia durar horas, não era capaz de travar esta batalha com Rhea por mais de meia hora. A tensão se esvai, esguicha como leite quente, vapor, espuma, sopa. Por alguns instantes Cronos compartilhou da felicidade ingênua e despreocupada tão comum entre os Deuses.


- Meu querido, meu Rei, enquanto estiveste longe eu tive um sonho estranho.


- Ora, querida, tu percebes uma sombra em meu coração mas não é capaz de ver uma no teu? Que truque é este?


- Não é truque, meu Rei, é um sonho, não é uma sombra. Um Deus que eu nunca tinha visto visitou-me em sonho e me mostrou o que havia de vir. Eu vi a ti, meu Rei, matando e devorando aos Deuses! Horrorizada, antes de despertar, o Deus desconhecido me disse que aquilo que desejardes e fizerdes a teu pai, sofrerá de teu próprio filho.


As trevas no coração de Cronos cresceram e apertaram seu coração. Ele levantou-se quase possesso. Quem poderia saber de seus planos? Ele não tinha contado a ninguém, nem para Rhea. Quem era esse Deus desconhecido? Como, com que poder, ele poderia ver o coração de Cronos?


- Diga-me, querida, como era esse Deus desconhecido?


- Eu não o vi muito claramente, pois ele parecia estar envolto pela floresta que nos rodeia. Mas ele era alto, tanto quanto Anu. Ele parecia ser tão jovem quanto tu, meu Rei, mas ao mesmo tempo mais antigo e mais sábio do que Anu.


- Por acaso era tão peludo quanto as bestas da floresta e de sua cabeça brotavam dois chifres, tão incandescentes quanto a lava?


- Meu querido Rei, conhece o Deus? Leve-nos até ele para que dancemos para ele.


A sugestão de Rhea conciliava com a intenção de Cronos que desejava questionar pessoalmente ao Deus da Floresta Negra. A dança das Deusas poderia propiciar o Deus ao favor de Cronos e para avisá-lo das torpes intenções de Anu. Caminhando por vias secundárias para evitar passar pelos demais Deuses que ainda estavam celebrando a volta de Enki, Cronos levou as quatro Deusas até o ponto na floresta onde havia encontrado o Deus.


- Meu Senhor! Eis aqui vosso servo! Eu vos peço que ouça o que tenho a vos contar.


Novamente houve um silêncio seguido de um intenso pulsar e a impressionante aparição do Deus da Floresta Negra. O comportamento das Deusas alterou-se de forma impressionante. Elas começaram a  apalpar e a alisar suas partes macias, suas dobras, suas reentrâncias, entregando-se ao arrebatamento do êxtase.


- Meu filho! Vieste visitar-me agora com presentes para perfumar e adoçar o meu dia?


- Meu Senhor! Nós viemos para alertar-vos dos reais interesses de Anu.


- Meus queridos! Acham mesmo que Anu, vosso rei, tem efetivamente tal poder e autoridade que vós lhes atribui? Saibam vós, meus filhos e filhas amados, que a nenhum Deus foi ou será dado a coroa do universo. Nem mesmo o rei está acima das leis que este promulga. Nem mesmo um reinado de medo perpetua-se sem que haja vontade.


- Então, meu Senhor, eu posso desafiar o destino e ter uma sorte, uma fortuna diferente para meu futuro?


- Tenham respeito e reverência, não temor. Sonhos e oráculos são avisos, não sentenças. Useis vossa força e coragem, dificuldades e obstáculos virão, mas não esmoreceis, para merecerdes os louros.


- Meu Senhor! Eu vos agradeço pelas orientações. Partimos com sossego e tranquilidade no coração, mas antes vos pedimos que saibamos o vosso nome.


- Meu filho, para me conhecer é necessário conhecer os mistérios da vida e da fertilidade. Tu tens os mistérios da guerra e da irmandade. Um mistério não pode tomar o lugar de outro mistério.

Em tudo, celebrai


Cronos retornou à Cidade dos Deuses e as três Deusas, Selene, Thetis e Phoebe, voltaram a seus lares e tentaram retomar suas vidas rotineiras, mas ninguém escapa incólume ao contato com o Deus das Florestas e das Feras. Na Cidade dos Deuses, a festa para Enki havia acabado deixando muito entulho e Deuses bêbados no chão. Os demais foram curar a ressaca, pois Anu tinha anunciado seus projetos mirabolantes.


Apesar da coragem e valentia de Cronos, ele não perguntou diretamente ao Deus desconhecido o que significava o sonho de Rhea, nem como ele poderia saber o pensamento que morava em seu coração. Mas Cronos não era muito inteligente, ele achou mesmo que pudesse enganar ou contornar o Destino. Quando o sol trouxe mais um dia à Gaia, à Cidade dos Deuses, Cronos não atendeu ao chamado, nem se prestou a ajudar seus irmãos e irmãs. Povo do mundo, saibais que servir aos Deuses é estar disposto a ajudar sua família, seus parentes e sua comunidade, mesmo com planos equivocados. Rejeitar, criticar, vos irá tornar desagradável, um ser rejeitado, renegado, abandonado em sua própria auto-comiseração, como Cronos. Nós somos nossos carcereiros e carrascos.


Os Deuses avançaram pela floresta, derrubaram árvores e levantaram casas, dando origem às novas colônias dos Deuses, que ganharam o nome dos setores dos patriarcas de cada família. Assim cresceram a colônia de Hélade, a colônia de Albion, a colônia de Canaan e a colônia de Kemet. Assim cresceram da mesma forma os ventres de Rhea, Selene, Thetis e Phoebe, devidamente preenchidas pelo Deus das Florestas.


Povo do mundo, vós podeis achar um escândalo que Deusas, jovens mulheres, tenham seus ventres ocupados por uma misteriosa concepção, uma forma de ocultar conjugações carnais, consumidas em um sacramento sagrado. Saibam vós que não há coisa alguma mais sagrada do que o desejo, o prazer, o amor, nem cerimônia mais sublime do que o sexo.


Neste ponto eu vos tenho de conduzir por três rotas. A primeira mostra Anu em júbilo por suas conquistas, que alimentam tanto a ilusão do poder quanto a iminente destruição. Ninmag despertou do sono induzido pelo pólen da planta bulbosa e seu despertar mostrou quão fácil ela tombou, a ausência de Enki e o roubo de seu báculo.


Cronos não sabia, mas Ninmag tinha controle das águas e das criaturas nela por intermédio desse báculo, que agora estava nas mãos de Typhon, um tirano que se aproveitou da ingenuidade e inocência de Cronos para ser o Senhor dos Mares. Pior, Cronos deu aos habitantes da Ilha Negra uma forma de restringir e controlar o poder de Ninmag que, pode-se dizer, era a mãe de todos eles e via, impotente, seus filhos se entregarem ao frenesi da rebeldia pueril. Povo do mundo, saibais que o poder de um Deus não está em um objeto, nem nos cultos e crenças que devotamos, apenas farsantes e vigaristas dependem de sacerdotes e livros sagrados.


Ninmag estava desarmada mas não desvalida, em grandes asas alçou voo e ganhou o firmamento, com uma direção certa, para a Cidade dos Deuses, para pegar seu amado Enki, para enfrentar o déspota Anu. Povo do mundo, saibais que não há Deus, entidade, espírito ou homem que seja senhor e dono do poder, nem pela palavra, nem pela espada, nem pela riqueza, nem pelo medo. Até um reinado de terror mantém-se somente com a anuência dos dominados. Onde há vontade, coragem e consciência, a coroa e a majestade pertencem a todos.


Anu havia esquecido das leis universais e realmente acreditava que repousava nele o poder e a autoridade. Assim que o vulto de Ninmag estava à sua vista, pairando no horizonte, entre as nuvens e as águas, Anu vestiu sua armadura, desembainhou sua espada, dispondo-se para enfrentar Ninmag, certo de sua superioridade e vitória. A preocupação de Anu não é proteger a Cidade dos Deuses ou seus irmãos e irmãs, mas a de demonstrar e reforçar seu papel como Senhor, Deus Pai, Deus do Firmamento.


Ninmag não tem interesse algum nessas demonstrações pueris de força e poder, um Deus ou Deusa legítimos e verdadeiros não são inseguros. Ela não tem interesse algum na figura patética de Anu, na gaiola dourada que ele construiu aos Deuses, nem na vida submissa que os Deuses se conformaram a levar debaixo da autoridade de Anu. Ninmag quer apenas Enki para ser seu consorte, por mais algum tempo ou até encontrar outro Deus mais interessante para brincar de cópula. Mas ao ver Anu, todo presunçoso, em sua brilhante armadura, com sua longa espada nas mãos, em cima do seu monte, em cima do seu castelo, em uma visível postura de desafio a ela, Ninmag não hesitou em atacar Anu com tudo.


As fundações da Cidade dos Deuses estremeceram, o firmamento tingiu-se de sangue, a montanha fendeu-se e jorrou pedras incandescentes, os canais e lagos artificiais feitos por Enki partiram, uma enorme onda retoma para as águas a orgulhosa Cidade dos Deuses. O corpo de Anu afunda em um torvelinho, junto com seu belo castelo, junto com sua preciosa armadura e longa espada. Não se vê Ninmag em lugar algum. Povo do mundo, esta é a paga e o resultado de todo conflito, toda luta, toda guerra. Não há vitória ou vitoriosos, apenas destruição, morte, horror. E assim termina o ciclo de Anu.

Cronos e Saturno


Ainda temos pontas soltas a prender e nós a desfazer antes de passarmos adiante, para que o profeta do profano possa contar o que os Deuses fizeram após a morte de Anu. Sigamos a segunda rota onde veremos a história de Cronos e o porque seu destino está marcado por Saturno, pai dele e patriarca de sua família.


Para entendermos a delicada relação entre os Deuses e como esta relação resultou na tensão entre Saturno e Cronos teremos que voltar ao tempo onde não havia tempo, no lugar onde não havia lugar, o Caos.


O Caos era tanto uma circunstância quanto uma consciência divina composta de múltiplas personalidades, onde existência e inexistência se digladiam. Em algum momento desse tempo não-tempo duas consciências divinas tiveram poder suficiente para despertarem, ganharem a auto-consciência e se estabilizarem dentro do torvelinho do Caos. Estas forças, estas entidades, estas divindades eram tão primordiais e distintas, tão antagônicas e opostas que suas existências poderiam acarretar a dissolução deles e delas. Por falta de definição melhor, este é o Deus e a Deusa que nós louvamos e adoramos em nossos círculos. Nosso Deus e nossa Deusa tiveram e usaram o poder que tinham não para se autodestruirem, mas para se unirem em amor, desejo e prazer. O ato de criação do universo foi um ato de geração. A Deusa provê a substância, o Deus provê a modelação. E disso surgiram diversos oásis em meio ao Caos, inúmeros cosmos, compostos por inúmeras galáxias, inúmeras dimensões, inúmeros Deuses e Deusas.


Povo do mundo, não vos enganeis achando que a existência, a vida, apenas ocorre coberta por carne, por cadeias proteicas de carbono. O carbono é apenas uma das substâncias que conhecemos que formam a vida e nosso conhecimento é limitado. Vida e existência são condições que vão se manifestar de diversas formas que vão além do carnal, do material.


Este é o tempo quase-tempo, o Caos ainda rodeia a tudo, pequenos oásis, cosmos, galáxias, Deuses e Deusas. Conforme as coisas vão surgindo, ganhando consistência e permanência, a vida e a existência tornam-se mais complexas, os Deuses ganham “massa corpórea” e podem, enfim, copular e gerar sua descendência. Por imitação, por convenção, por um mistério, um Deus pode ser o rei ou o consorte, uma Deusa pode ser a rainha ou a donzela. A donzela pode reclamar seu direito de ser rainha quando tiver um filho. O consorte pode reclamar seu direito de ser rei ou unindo-se à rainha ou depondo o rei. A Deusa que tiver uma filha, esta torna-se sua herdeira e sua donzela que, para clamar por seus direitos, procurava algum Deus para unir-se. Cabe à deusa regente e suas filhas determinar se este Deus é o consorte ou é o rei. A situação de Saturno e sua natureza deram as condições para que fosse criada a tensão entre ele e Cronos, seu filho.


Saturno nasceu em uma situação nem um pouco propícia. Urânia, sua mãe, não tinha uma linhagem direta com a Deusa-Mãe, ela era fruto de um relacionamento casual e seus consortes não se tornaram um Deus-Rei. Assim como Cronos, Saturno conheceu uma vida cheia de dificuldades, privações e humilhações. Assim como Cronos, Saturno conheceu muitos pais antes de crescer o suficiente para lutar pelo seu lugar. Esse foi o erro e o crime de Saturno. Cansado de não ser notado, cansado de ver a honra de sua mãe desmerecida, escolheu uma rota de sangue até chegar ao trono. Um a um, matou todos os Deuses que tivessem conhecido sua mãe. Uma por uma, ele estuprou as Deusas, esposas e filhas, destes Deuses. Uma destas era Gaia, a Deusa que notou nosso mundo, de quem recebeu o nome em homenagem.


Quando Gaia exigiu seus direitos de herança, Saturno tratou de garantir seu privilégio de consorte e posição de Deus-Rei, aclamando a Cronos seu filho e protegido. Foi Saturno quem primeiro percebeu e fez proveito de uma regra implícita nos direitos de linhagem, iniciou a supressão do matriarcado e iniciou a implantação do patriarcado. Saturno usurpou o poder através de Gaia e paradoxalmente Cronos, seu filho com Gaia, garantia seu nome como patriarca da família.


Por sua própria natureza, pelas condições em que assumia o encargo, pelo capricho do Destino, Saturno foi um tirano de sua família e de sua casa. Gaia sofreu as mesmas humilhações que Urânia e Cronos o lembrava de sua própria infância atribulada. Saturno sabia muito bem o fim que lhe aguardava e pressentia que Cronos viria lhe trazer a Nemesis.


Quando Saturno conheceu Anu e soube de seus planos de sair do Caos em busca de um lugar para erguer um novo reino, ele associou-se imediatamente com Anu, tanto por este ser semelhante a ele, quanto para solidificar sua autoridade na família. Na corte dos Deuses, com a vassalagem a Anu, tornou-se tolerável a presença de Saturno. Com a morte de Anu e a destruição da Cidade dos Deuses, Saturno teve o bom senso de tomar a si a responsabilidade de manter a construção da colônia de Albion. Os Deuses estavam tão assustados e perdidos que se sujeitaram a Saturno. Alguns temiam que Ninmag ressurgisse, outros que Anu retornasse, mas a maioria havia se acostumado tanto a servirem a Anu, de dependerem tanto de sua liderança, que os Deuses receberam com júbilo a coroação de Saturno como Senhor de Alba. Por outro lado, a morte de Anu e a destruição da Cidade dos Deuses dariam a Cronos as condições para crescer, se fortalecer e, no tempo certo, contestar e destronar Saturno. Uma tragédia que cessaria apenas quando um filho de Cronos reestabelecesse a ordem.

Em busca das relíquias


Saturno estava na beira do grande lago que se formava onde antes era a Cidade dos Deuses. Quando Ninmag apareceu nos céus, os sentimentos de Saturno estavam divididos, ele não sabia se ficava desesperado ou extasiado. Esses sentimentos não estavam dirigidos a Anu a quem se poderia supor que Saturno tivesse lealdade e companheirismo. A parceria era uma necessidade, uma ferramenta, uma situação tolerável, para os objetivos e sonhos que Saturno tinha. A tensão entre desespero e êxtase era acusado porque Saturno temia pelo seu couro. O porte e o poder de Ninmag o impressionou.


Com o arremate da luta, Saturno vê o reino e o poder de Anu afundar em um torvelinho. A sensação era a de perder o lar familiar, o de ser órfão, mas enquanto a Cidade dos Deuses era engolida pelo grande lago que se formava, muitos planos tomaram o lugar dos sentimentos. Nisto Saturno tinha muito em comum com Anu, sua personalidade violenta era apenas comparável com sua ganância. E Saturno queria tornar a sua Albion tão grande e tão gloriosa, senão maior, que a Cidade dos Deuses. Nestes sonhos mirabolantes ele via a necessidade de se resgatar a coroa, a espada e a armadura de Anu. Com isso em mãos, os outros Deuses se ajoelhariam diante dele e as outras colônias seriam suas vassalas.


Fazer planos é uma coisa, realizá-los é outra. Saturno conhecia o poder de Ninmag sobre as águas. A Deusa havia caído junto com Anu. E se seu poder submergiu junto dela ou haveria mais algum Deus ou Deusa que conhecesse o segredo, não era de conhecimento de Saturno. Ele teria que apelar a Deuses e Deusas mais velhos que pudessem orientá-lo. Por mais doloroso que fosse, Saturno teria de ir até Urânia, sua mãe. Não pela distância, não pela dificuldade, mas pela carga emocional e feridas que seriam revividas.


Por um capricho do Destino, Urânia foi buscar seu refúgio entre as sete colinas sagradas ao norte de Alba, onde os boatos contam que ela vivia como uma Lupina, uma família de Deuses menores. Para ir até lá, o único em quem Saturno poderia confiar era Cronos, seu filho bastardo e exilado. Pontus, seu irmão mais novo, inexperiente e irresponsável não se queixou ao ter de assumir a coroa. Saturno entrou na floresta e certamente deve ter nos notado, mas como Cronos não nos deu muita importância. Ele também sabia dos boatos de que ali habitava um Deus desconhecido, mas orgulhoso como era não se deu o trabalho de conhecê-lo.


As sete colinas sagradas era o último lugar onde os Deuses queriam estar. Ali existiam, perambulavam e habitavam diversos espíritos, entidades e divindades, locais e estrangeiras, com uma ligação muito física com a natureza e viviam de uma forma inaceitável para os padrões aristocráticos dos Deuses. Ver a altiva e antes poderosa Urânia, sua mãe, cercada de entes que faziam questão de se manifestar em formas tão revoltantemente carnais, não foi agradável. Ritos repugnantes viscerais, animais e selvagens ocorriam em diversas clareiras, e círculos marcados por pedras. Saturno sentiu que, em algum momento, ele teria que submeter estas entidades ou civilizá-las.


- Eu desejo falar com Urânia.


- Vinde adiante! Apresente-se! Mostre-se amistoso e visita-nos em paz e conforto, pois somos vosso igual.


- Não sou vosso igual, pois minha linhagem é pura e meu sangue das estrelas. Vós sois selvagens, eu sou civilizado. Vós sois Deuses menores.


- Menores? Quem é menor, nanico?


Um Deus em uma forma de um enorme urso negro aproxima-se de Saturno pronto para arrancar a cabeça dele.


- Basta Avvagdu! Este é Saturno, o meu filho amado. Diga-nos, grande Rei de Alba, o que deseja de nós?


- Salve Urânia, Rainha Excelsa do Firmamento, a Formosa Deusa Mãe…


- Basta! Nós não queremos ouvir mais estas fórmulas aristocráticas vazias e hipócritas. Diga-nos logo vosso desejo.


- Antes, nobre Urânia, saiba que Anu caiu.


- Aquele que almeja ser mais do que pode ser há de cair. Nós não estamos interessados em fofocas da corte e vós não vieste até aqui por compaixão a vosso rei. Diga-nos o vosso desejo.


- Nobre Urânia, ainda que tenha se afastado de vossa família, deveis saber que deve ter começado a corrida para o trono. O que eu desejo é recuperar as relíquias de Anu e clamar pelo trono.


- Tolo! Nós saímos da corte e vós quem ignora que o trono é concedido ao Deus que é consagrado como consorte pela Deusa Mãe! Ah, raça das estrelas! Por vossas origens vós vos considerais tão superiores, tão altivos! Esqueceram-se até das Leis do Universo! Vos custará caro tanta arrogância e presunção! Vossas conquistas serão vossas sentenças.


- Eu não temo o Destino! Eu vos imploro que me diga como reaver as relíquias de Anu.


- Apenas quem conhece o mistério das águas poderia do grande lago trazer à superfície o tesouro de Anu. Deveis procurar Ninmag.


- Nobre Urânia, Ninmag, a Senhora das Águas caiu com Anu.


- Isso é lastimável. Vós tereis ou que encontrar o báculo de Ninmag ou aprender a domar as águas com a Senhora dos Mares. Procureis pela Pithon, no santuário além da Hélade, a colônia de nosso irmão, Urano.

Quadrilátero amoroso


Quando Saturno retornou a Alba seu irmão Pontus foi prestativo e receptivo, não por saudades ou preocupação fraternal, mas para não dar chance aos boatos da corte chegarem ao ouvido de Saturno a respeito de suas ações. Para sorte de Pontus, Saturno enredava-se mais e mais nas armadilhas do Destino, Saturno estava apressado e não deu ouvidos a Pontus ou à corte dos Deuses.


- Gaia, minha amada esposa e rainha de Alba. Apronte-se pois iremos à Hélade ter com nosso irmão Urano.


- Meu coração exulta, meu amado rei. Nós poderemos rever Ceres, nossa irmã.


- Oh, sim, iremos. Aquele velhaco do Urano tem uma fortuna e tanto ao se tornar consorte da jovem e bela Ceres. E ela tem dois anos a menos que tu!


- Nós duas éramos bem pequenas quando aceitamos, eu a ti, ela a Urano.


- Sim e se não me engano você não gostou muito de que ela havia se intitulado Deusa da Terra.


- Isso foi uma bobagem. Quem quer ser Deusa do chão, do pó deste mundo, quando se é Deusa do planeta? Nesta e nas gerações vindouras será o meu o nome dado a este mundo.

- Então eu devo ficar de olho em Urano. Eu sei muito bem o que aquele velhaco pensa quando te vê por perto.


Pontus vê Saturno partir em viagem mais uma vez, mas desta vez com Gaia, o que o deixa no trono mas em uma situação precária sem ter uma Deusa que lhe confira a posição e a autoridade. Qualquer Deus poderia lhe cortar a cabeça, se clamasse pelo trono apoiado por alguma das irmãs, primas ou sobrinhas de Gaia. Os problemas de Pontus não nos interessam no momento, seguiremos a caravana de Saturno.


Foram necessárias quarenta semanas de nosso mundo para Saturno chegar até a colônia de Urano, chamada Hélade, sob os auspícios do Deus desconhecido. Povo do mundo, cheios de orgulho e vaidade, saibam que em suas origens, a Hélade e seus habitantes, que fundaram nosso pensamento e cultura, não estavam nas formosas ilhas, mas no continente, em uma região que conforme os gostos e as preferências ora chamam de Europa, ora chamam de Ásia. Tolo e fútil povo do mundo! Colocais nomes, fronteiras e divisórias mesmo onde estas coisas não existem!


Urano ficou agastado ao ver Saturno aproximando-se de suas portas, mas alegrou-se ao ver Gaia na caravana. Ele não suportava os modos graves e soturnos de Saturno e nunca seria capaz de esquecer a leveza e jovialidade de Gaia. Imediatamente fez seus servos abrirem as portas do Olimpo, sua cidade-estado, sua fortaleza e seu castelo. Instou, em seguida, a Ceres para que se aprontasse.


- Exultai, Ceres, minha rainha, pois nosso irmão Saturno e nossa irmã Gaia vieram a ter conosco.


- Alvíssaras! Eu não suporto Saturno mas eu amo minha irmã Gaia.


- Nem tudo é perfeito! Aturemos o que nos agrava e manifestemos amor a quem nos agrada!


Ceres aprontou-se alegremente para rever sua irmã, ingenuamente esquecendo das verdadeiras intenções e planos de Urano para esta visita. Saturno adentrou ao Olimpo e ficou impressionado e invejoso pelo fausto e luxo que encontrou. Franziu a testa e fechou o semblante com a chegada de Urano na sala de recepção, mas logo esqueceu-se de tudo ao ver a bela pele alva e o cacheado dourado dos cabelos de Ceres. Mesmo depois de tantos anos passados neste mundo, Ceres ainda parecia com aquela menina com quem ele brincava na infância e logo seguiram o desejo e a concupiscência.


- Pelos Deuses antigos! Minha irmã Ceres, como tu cresceste!


- Pater Saturno, Mater Gaia, sejam bem vindos em nossa humilde casa.


- Humilde? Há! Ora, vamos, Urano, orgulhe-se de ter saído de sua tenda de pele de cabra e chegado a tal palácio!


- Nosso querido irmão Saturno é muito gentil.


- Gentil e sedento! Ouvi falar que tu faz uma beberagem que rivaliza com o hidromel.

- Vinus, meu caro irmão. Venha, vamos deixar as mulheres com seus afazeres e vamos nós cuidar dos nossos.


- Urano, meu irmão, nós temos que nos unir, agora que Anu foi engolido pelas águas. Enquanto eu construía Alba, eu ouvi falar que estas florestas têm um Deus desconhecido.


- Sim, eu também ouvi tais rumores, mas nunca o vi. Dizem que ele é o Espírito deste mundo, conduz ritos selvagens, em assembléias com diversos espíritos e entidades, em círculos, no meio da floresta.


- Eu também não o vi e nós não sabemos se podemos confiar nele, qual seu poder ou qual a relação dele com nossa corte. Temos que nos garantir. Urania me disse que há um santuário além de suas paredes.


- Sim, o santuário de uma Deusa local, chamada de Pithon. Os boatos sobre a vida de Urânia vivendo como Lupina soam terríveis, mas é um verdadeiro terror o que eu ouço sobre o santuário de Pithon.


- Nós precisamos encontrar este santuário, meu irmão. Esta Deusa pode nos dar a chave do reino dos Deuses. Mas antes de traçarmos um plano, diga-me, do que é feito este vinus?

- De pequenas frutas rubiáceas que brotam de uma moita selvagem que se arrasta, se agarra e se pendura por todo lugar. Gostou do meu vinus, irmão?


Saturno deixa cair sua cumbuca, bem como seu corpo. Desacostumado, deixa-se abraçar pelos vapores do vinus e se deixa levar pelo arrebatamento do sono dos ébrios. Urano prontamente abandona seu irmão e sai em busca daquela que comprime seu coração, Gaia. Ele encontrou-a junto de Ceres, no jardins do castelo. Discretamente, chama a atenção de Gaia que, em sua curiosidade ingênua e juvenil, aproxima-se dele, deixando Ceres entretida com algumas bestas que esta havia domesticado.


- Meu irmão Urano, que bela casa tens!


- Sim, querida irmã Gaia e isto tudo pode ser teu.


- O que dizes? Eu sou esposa de Saturno e Ceres, a quem eu amo mais do que a um irmão, é a tua esposa.


- Isto pode ser acertado. Vem e vê como teu marido e rei não merece teu apreço.

Urano conduziu Gaia até o salão onde ele e Saturno conversavam e lá Gaia viu o orgulhoso, circunspecto e grave Saturno roncando, deitado em um catre, as faces rubras como os frutos usados para a fabricação do vinus.


- Eu estava tratando com ele e teu marido contou-me de seus sonhos delirantes de conquistar a chave do reino dos Deuses. Fique comigo e tudo será teu.


- Tudo? Serei eu a Deusa desse mundo? E o que será de Ceres?


A conversa torna-se íntima e não demora para que Urano conquiste seu prêmio e regozije com o butim. Povo do mundo, não se escandalize com os fatos da vida, do amor, do desejo, do prazer. Não torne o fardo de viver maior que o necessário.

A obsessão de Saturno


Os vapores do vinus dissiparam-se e Saturno despertou do sono dos ébrios, sentindo um gosto ruim na boca e a cabeça latejando. Nós chamamos de ressaca e a associação dos efeitos posteriores do consumo excessivo de álcool com o movimento das marés não é coincidência. Povo do mundo, sabei de uma vez por todas que não existem coincidências, o acaso ocorre porque também faz parte do universo, da natureza.


Saturno percebeu que estava só e logo imaginou que seu irmão Urano deveria estar cortejando Gaia, sua esposa. Saturno, ao invés de correr atrás de Gaia, foi em busca de Ceres. Povo do mundo, que vive uma vida sem cor, sem sabor, sem alegria, vós nunca entendereis e manifestareis o real significado da palavra Amor! Vós que misturais agendas pessoais em vossos sensos hipócritas de moral, não tem competência para censurar os Deuses!


Enquanto Saturno procurava por ceres pelo castelo, chamado de Olimpo, ele recordava-se de sua infância e que os poucos e raros momentos de paz, tranquilidade e conforto foram sempre os que ele passara ao lado de Ceres. Os caprichos do Destino e da Fortuna conduziram Saturno até o jardim onde Ceres estava tão entretida com suas bestas domesticadas que nem se deu conta do sumiço de Gaia. Dentre estas, certamente um casal de nossos ancestrais compartilhavam desse cativeiro dourado, mas mesmo assim nós não fomos notados e não podemos condenar Saturno.


- Saudações, Ceres, minha irmã.


- Pater Saturno, não são belos meus bichos?


- Hã…sim…adoráveis. Querida irmã, devia estar fazendo coisas melhores e maiores. Se vier comigo, tu será a Deusa Mãe, aquela que será reverenciada pelas gerações como a Deusa desse mundo.


- Pater Saturno, o que está me propondo é ousado, perigoso e traiçoeiro. E onde tua esposa Gaia entra nesse seu grande plano?


- Gaia não tem a vitalidade e a juventude para tal cargo. E não é segredo algum que Urano a queria e eu a ti. Então nós temos que acertar as coisas e fazer justiça.


- As coisas são como são, como devem ser. Nós aturamos o que nos desagrada, como diz Urano e, para ser sincera, eu não suporto a ele tanto quanto a ti. Vós, Deuses, meninos, são todos iguais, são apenas estorvos.


- Considere então como isso pode ser consertado se tu, Ceres, tomar o lugar de Antu.


- O que diz? Isso é mais que ousadia, é blasfêmia e heresia. Cuidado com o que deseja, Saturno.


- Pois aguarde meu retorno e te mostrarei que nós, meninos, não somos estorvos, nós temos nossos méritos.


Saturno partiu do Olimpo, deixando para trás Ceres, Urano e Gaia no luxo, rumo ao seu funeral, atravessando por perigosas escarpas entre trilhas, por montanhas desconhecidas. Ceres disse a verdade em sua reação juvenil, temperamental e imatura demais para se importar com tudo isso. Como num péssimo roteiro, Urano e Gaia ressurgem no jardim como se nada tivesse acontecido, para chamar Ceres para o jantar e ninguém lamentou a ausência ou a partida de Saturno. Este, seguindo as instruções de espíritos locais e o impulso da fúria de seu coração, chegou na entrada do santuário de Python e, com suas emoções confundidas com as lembranças da temível Ninmag e a desgraça de Urânia, o poderoso Saturno hesitou. De dentro do santuário surgiu a figura da Pithon, em corpo e altura, semelhante a Ninmag, mas suas cores eram verde, dourado e amarelo.


- Adiante-se! Apresente-se! Mostre-se amistoso e visite-nos em paz e conforto, pois somos o vosso igual.


- Eu perambulei pelas sombras deste mundo por muito tempo. Eu, Saturno, filho das estrelas, venho aqui para humildemente pedir à grande Pithon que me mostre a luz.


- Nobre Saturno, siga-nos e mostraremos o coração, a magia deste mundo.


A Pithon levou Saturno até a fenda sagrada onde, diz-se, o Espírito deste mundo habita e dali Ele sai, trazendo a vida. A visão terrível que Saturno viu foi semelhante à de Enki, pais matando filhos, filhos matando pais, mães devorando sua prole. Mas, ao contrário de Enki, isso não perturbou o coração de Saturno.


- Diga-me, Pithon, como faço para recuperar as relíquias de Anu?


- Mesmo diante da tragédia desejas prosseguir?


- Para viver sem sonhos e com medo é melhor morrer.


- Então não queres vir para a luz. Sonhos que se realizam são justos, os que não, são caprichos do orgulho cego.


- Então mata-me agora.


- Nós fazemos sacrifícios por dever sagrado, jamais por apetite ou vingança. Para ti, damos a rota para o teu destino. Tu terás de humilhar-se mais e pedir a ajuda daquele que mais odeia.


-Este é um enigma ou um jogo? Eu devo arriscar-me em um caminho perigoso e desconhecido contando com a ajuda de quem mais odeio?


- Este é o preço que deve pagar. Não temes a violência e a morte, mas teme este que odeia?


- Jamais! Aquele fedelho nunca foi uma ameaça, apenas uma irritação.


- Então nos traga teu maior desafeto, pois o destino dele está ligado ao teu.


Cada vez mais decidido, Saturno recoloca seu elmo, sobe em sua montaria e, dispensando até sua comitiva, parte sozinho até a região chamada de Anatólia, onde aquele que ele chamou uma vez de filho, Cronos, deve estar escondido em exílio. Povo do mundo, guardem este nome no coração, pois esta é uma das regiões sagradas que ocultam nossas origens.


Saturno não teve dificuldades para encontrar Cronos pois ele, como todos os Deuses das estrelas, estava construindo uma cidade para dar início à uma civilização. Povo do mundo, o nome dessa cidade era Troia. Lembrem-se de Roma, de Atenas, mas jamais se esqueçam de Tróia. Cronos não demorou para sair dos portões de sua cidade com sua armadura completa e espada em punho para enfrentar Saturno.


- Ora, ora. Enfim, aprendeste algo útil. Vamos, guarde essa faca antes que te cortes. Nós temos negócios a discutir.

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