segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

O Banquete dos Espíritos

Os ENAWENE NAWE possuem uma população de 545 habitantes que vivem em uma única aldeia, localizada no rio Iquê, tributário do Juruena, na porção sul da terra indígena. A atual aldeia -Halataikiwa - é composta por dezesseis edificações, sendo quinze residências comunais (hakolo) e uma Casa das Flautas (Yaõkwa ehakolone), onde são armazenados os instrumentos e algumas indumentárias rituais. As casas são grandes edificações que abrigam inúmeros grupos familiares.

As residências são ocupadas por diversos grupos familiares que, ligados por relações de parentesco, se associam com outros grupos familiares formando grupos domésticos dentro dos quais se organiza a produção de alimentos. O conjunto de grupos domésticos de uma casa forma o grupo residencial.

Já a Casa do Yaõkwa representa a presença constante dos espíritos no espaço aldeão. Em formato cônico, associado a um morro (numa referência a morada dos Yakaliti, e também da pedra de onde os Enawene Nawe saíram, segundo o mito de origem), essa edificação possui uma coluna central embaixo da qual, o Yakaliti, Kote, guarda os cantos. Quando um visitante chega à aldeia, em geral ele é acomodado em uma das residências. Mas essa situação não ocorre com todos. Relatos apontam a acomodação de visitantes na Casa das Flautas, o que demarcaria uma situação de hostilidade, como aponta Jakubazko: “Enquanto os visitantes bem vindos ou moradores forasteiros são incorporados pela dinâmica social Enawene Nawe - "adotados" por núcleos familiares, instalados no interior das residências, recebendo insígnias de inserção no universo social Enawene Nawe, enfim: domesticados, submetidos à sua ordem social, neutralizando a alteridade; os Cinta Larga, por exemplo, quando estiveram em visita (1981), ficaram alojados no interior da Casa das Flautas a casa dos Yaokwa (clãs), reduto dos entes sobrenaturais”.

O centro da aldeia é caracterizado como um local de sociabilidade masculina (com encontros diários no início da manhã e fim de tarde quando se conversa sobre diversos assuntos de interesse do grupo) e também palco das performances rituais.

O seu modelo de produção é regulado por padrões próprios. O calendário ritual organiza os plantios das espécies agrícolas centrais (mandioca e milho) e secundárias (feijão, batatas, carás, etc); além das expedições de pesca (nas modalidades de barragem, timbó, anzol, arpão) e coleta (mel, castanha do brasil, jenipapo, etc). Sua dinâmica de ocupação espacial lhes permite percorrer periodicamente grande parte do território (tanto o demarcado quanto o não-demarcado) a fim de cumprir o calendário de responsabilidades clânicas envolvido no jogo de reciprocidade com os Yakaliti e Enoli.

A vida ritual dos Enawene Nawe é tão rica e intensa que podemos afirmar que ela move o cotidiano deste povo; durante todo o ano enawene nawe há sempre alguma atividade ritual/sazonal acontecendo: ou se está em performances músico-coreográficas na aldeia, ou se está em expedição a partes alhures de seu território – sendo que mesmo em muitos períodos de expedição, os que ficam na aldeia também realizam performances diariamente.

O ano nativo é dividido em quatro períodos rituais articulados – YaõkwaDeroheSalomaKateoko - que regulam as relações sociais, econômicas e com o meio ambiente. Estes ciclos constituem a única maneira de manter a harmonia com os ENOLI e YAKALITI, estes últimos, donos dos recursos naturais e causadores de doenças e mortes quando não são saciados pelas ofertas dos Enawene Nawe. Já, com os Enoli, habitantes do eno (céu), eles guardam relações mais amistosas, ligadas a relação de ancestralidade. Dizem os Enawene Nawe que eles são como seguranças que os acompanham em situações de risco.

A realização dos rituais Yaõkwa e Derohe, associados aos Yakaliti, regula as atividades de plantio e pesca. Os rituais Saloma e Kateoko, associados aos Enoli, regulam as atividades de coleta de mel, pequenas pescarias familiares e pescarias coletivas com timbó em algumas lagoas marginais dos rios. Estas atividades são entendidas por Rodgers como elementos fundamentais para a vida cerimonial deste grupo: “as expedições de pesca e o cultivo do milho e da mandioca compõem as atividades imprescindíveis para a mobilidade e funcionamento da máquina ritual enawene nawe”.

Como aponta Silva (1998) “o calendário cerimonial estabelece as condições sociais (e cósmicas) da produção”. Assim, o seu modelo de produção está salvaguardado pelas práticas rituais que o regula. Conforme aponta Santos: “O extenso e complexo calendário ritual enawene é organizado em função de suas cerimônias devotadas a estas e outras subjetividades, em que o peixe aparece como item catalisador. Balizador das pescas de caráter coletivo, seu calendário é formalizado nos rituais”.

Mesmo diante de um novo contexto pautado pela vida em um território demarcado, os Enawene Nawe demonstram preferir manter o seu padrão de ocupação seguindo a lógica da ocupação imemorial, que abrange uma área muito maior do que os 742.088 hectares homologados, uma situação que, ás vezes, culmina em conflitos por uso de recursos com outros agentes regionais, tais como proprietários rurais e outras etnias Isso porque eles não adotam uma visão compartimentalizada ou meramente utilitária do território. Este está entrelaçado com sua concepção de vida (ritual, mitos, religiosidade, distribuição geográfica dos recursos, etc). Sua cultura é intrinsecamente associada às particularidades da hidrografia e do ciclo ecológico. Por isso, qualquer alteração no regime das águas ou na ictiofauna pode trazer conseqüências incomensuráveis ao desenvolvimento ritual, fato reconhecido, pelo Complemento do Componente Indígena: “A médio e longo prazo, pelo efeito cumulativo do conjunto das PCHs, esses impactos tendem a aumentar, causando alterações na qualidade da água – também pelo sucessivo turbinamento -, na dinâmica fluvial do rio, influenciando diretamente os organismos dos ecossistemas aquáticos, principalmente os peixes que são muito sensíveis Às modificações do meio em que vivem, constituindo o grupo animal mais evoluído que depende exclusivamente da água”.

O oferecimento de bebidas e peixes, conforme afirma Santos, é considerado a única forma de apaziguar a ira dos Yakaliti: “O peixe,vale dizer, é o artigo mais nobre da culinária enawene, figurando como símbolo de status, ainda que fugaz (até seu consumo), entre as famílias. Sua importância se dá, também, na relação do grupo com os seres pantagruélicos, os iakayreti, detentores do poder de vida e morte, sensivelmente aplacados com a oferta e consumo de peixe”.

Foi justamente por compreender a importância desse processo de harmonização dos espíritos que a antropóloga Virginia Valadão não teve dúvidas ao escolher o nome de – O Banquete dos Espírito – para o documentário realizado por ela, sobre o Yaõkwa, o mais longo ritual dos Enawene Nawe, com aproximadamente sete meses de duração.

Nas palavras de Santos: “Sempre preocupados em produzir e oferecer comida aos iakayreti, os Enawene-Nawe organizam, exclusivamente para eles, fartos banquetes, onde são vertidas bebidas ao chão, que, segundo os Enawene-Nawe, seguem diretamente para suas imensas panelas de pedra já bem posicionadas sob a terra”. A maior parte dos recursos (naturais e financeiros) acessados pelo grupo são envolvidos pela ótica da interdependência entre homens e espíritos.

O peixe tem função central dentro deste banquete. Ele é a moeda de troca, oferta apaziguadora da fúria e da belicosidade dos Yakaliti. É justamente para obtenção do pescado – para subsistência, ou fins cerimoniais - que eles realizam grandes expedições de pesca. De acordo com Santos:“Considerado como o mais nobre e desejado alimento, o peixe é usado como símbolo maior do pagamento do – preço da noiva e da conquista sexual, como retribuição aos serviços de cura xamânica e aos fitoterápicos administrados aos convalescentes e adolescentes – iniciados. Ele é, sobretudo, o mais importante tributo destinado aos deuses e espíritos: aos enore-nawe pela proteção, e aos iakayreti para que não façam mal nem causem a morte das pessoas”

O Yaõkwa é o ritual mais conhecido, e também o mais extenso. A cada dois anos os nove clãs se revezam no papel de anfitriões para realização do cerimonial. Esse rodízio visa apaziguar a relação com os espíritos Yakaliti, como aponta Rodgers: “A música dedicada ao ritual yãkwa, o qual ocupa sete meses anuais, é dos espíritos subterrâneos, dos yakayriti: dos yaka nawe – em linguagem ritual = povo flechador –, e eles não sobem à superfície para brincar em serviço... Há mesmo um excesso dessa presença, essa presença é acachapantemente afetante: o que se pode fazer é entrar vertiginosamente em sua dança para ritmicamente conviver com a inexorabilidade faminta (literalmente!) de suas volições, de seu querer interminável”.

Cada clã está relacionado a um conjunto de espíritos e flautas aos quais os Enawene Nawe devem ofertar peixe, sal e bebidas. O descumprimento destas obrigações implica na represália violenta da legião de Yakaliti, como aponta Santos: “Os iakayreti, espíritos habitantes da paisagem e ‘senhores dos peixe’ são seres que vivem na sua dependência, e que, se não forem fartamente alimentados, ceifarão suas vidas”. Sendo assim, os Enawene Nawe se revezam bienalmente num ciclo de dez anos, que ao seu final deve ter contemplado todo o conjunto de espíritos. O revezamento para realização do Yaõkwa está diretamente relacionado com a organização clânica que abrange homens, espíritos, instrumentos musicais e território¸ como aponta Rodgers: “Entre os Enawene Nawe, música e território, estética e ecologia, estão estreitamente associados através de uma relação ritualizada com a ancestralidade. Para esse povo indígena, a topologia territorial – amplamente reconhecida e detalhadamente nomeada pela população em geral – está supreendentemente associada de forma direta a uma topologia musical da casa de flautas na aldeia (hayti) – algo bastante incomum nesse contexto sociocultural. O elo vital e motor dessa relação estreita é o ritual: toda a vida enawene nawe depende de uma vigília ritual ininterrupta a qual refaz continuamente uma espécie de ciência dos caminhos (awiti), os quais, entre outras coisas, ligam o território à casa de flautas através da noção de pertencimento clânico. Os caminhos atuam em várias dimensões cognitivas como vetores norteadores de toda reinvenção vital e cotidiana de sua sociocosmologia; a ciência de como percorrer, extrair, produzir, mas também desfazer e cuidar desses caminhos e seus ecossistemas (...) Essa ciência dos caminhos compõe uma estética no sentido mais amplo do termo: trata-se de uma ecologia estética, uma ecologia músico-ritual”.

A cada fase da vida o indivíduo é dotado de obrigações e responsabilidades que são imprescindíveis na ocupação de papéis sociais e da transmissão interna dos conhecimentos. O prestígio do indivíduo pode estar também associado ao status sazonal proporcionado à determinados indivíduos de acordo com a posição ocupada dentro de cada ciclo ritual. A cada ciclo, determinados indivíduos carregam certas responsabilidades que incluem, em geral, o direcionamento dos cerimoniais. De acordo com Mendes: “Dizem os Enawene-Nawe que o honerekayti é alguém que se encarrega de transmitir a ‘palavra bonita’ (aware xinakahã) aos pescadores. Este seu papel de conselheiro é exercido já na aldeia, antes mesmo da saída para as pescarias. O honerekayti é, acima de tudo, um mestre de cerimônias, designado especialmente para coordenar os ritos das pescas nos rituais de yãkwa e lerohi. (...) Em todas as atividades que mobilizam os rituais de salumã/kateokõ, aparecem dois tipos de personagens, ikinio e wakaniare(lo). Ikinio são, de um lado, os homens pertencentes a dois ou mais grupos clânicos, e de outro, as esposas dos harekare, mulheres de diferentes clãs; wakaniare(lo) são todos os demais da aldeia, mulheres e homens a partir de cerca de dez anos de idade”.

Ainda, as especialidades figuram como elemento de extrema importância dentro da organização social dos Enawene Nawe. Existem vários tipos de especialistas:
  • BARATALI/BARATALO (herbalistas) – conhece, manipula e prescreve plantas medicinais.

  • SOTALITI/SOTALOTI (xamãs) – cura doenças, retira substâncias deletérias do corpo, acessa o patamar superior, contacta e invoca as divindades celestes, recupera e repõe a alma (hesekonase) retida pelas árvores e a planta de mandioca, executa tapagem contra a fuga da alma usando yakoti.

  • HOWENATALI/HOWENATALO (benzedores) – sopra objetos, lugares e pessoas quando estas estão submetidas às regras de kadena; sopra as manivas de mandioca para o plantio, protege contra o ataque dos atahare-wayate e (do espírito) da planta de mandioca (atolo), lança males, doenças e morte às pessoas.

  • EHOLALALI/EHOLALALO (envenenadores ou feiticeiros) – fabrica e manipula substâncias venenosas, detém poderes e forças do mal, promove doeças e morte das pessoas.

  • SOTAKATALI (mestre de cantos) – detém os textos e partituras musicais, repassa a memória coletiva ao grupo, canta diante do doente grave para reter sua alma.

O sotakatali é a especialidade com maior prestígio e também uma das mais difíceis de exercer, como descreve Rodgers: “Os sotakatare são como guias do povo enawene nawe por entre esses caminhos, e é a sua sabedoria, a sua ciência, que imprime singularidade ao modo de vida enawene nawe”. Além da extrema dedicação despendida para aprendizado e memorização dos cantos, o sotakatali tem que estar atendo a uma série de regras comportamentais que incluem a parcimônia, a concentração, a evitação do sono, etc. Os Enawene Nawe são o povo da música e, por isso, não é mero acaso que os sotakatali sejam as figuras de destaque dentro desse cenário, conforme indica Jakubazko: “Os Sotakatare, por sua vez, consistem numa categoria de agentes sociais que, assim como os outros, dominam especialidades de vital importância para a ordem social Enawene, no entanto são considerados como os grandes pensadores, filósofos dessa sociedade, sendo imensa a admiração, prestígio e autoridade a eles conferidos”.

O seu ofício tem uma função primordial na garantia da harmonia entre homens e espíritos e, consequentemente, na garantia da existência de seu povo. Rodgers apresenta uma clara definição dessa relação (in)tensa: “Um povo, cujas eternas idas e vindas que são, na verdade, o único caminho possível para o conhecimento, o aprendizado profundo – e portanto para se preservarem da morte através da sábia administração do ritual –, que pressupõem o adensamento das distâncias relativas entre um ponto do território e sua aldeia, entre uma casa de um determinado conjunto de yakayriti e a casa de flautas, entre um motivo musical (ritmo, melodia e texto) e outro, entre um determinado conceito e outro, o único meio, portanto, para se jogar o jogo político das temporalidades sobrepostas”.

A representação simbólica do líder para os Enawene Nawe está condensada na figura de WADALI, antepassado que guiou o grupo na saída da pedra. A noção de chefia, em sua associação com o ancestral mítico, abrange fala calma, capacidade de comunicação, de contornar situações conflituosas e manter as boas relações e convivência na aldeia. Em contraposição ao Wadali, seu irmãoWAYALIOKO é o personagem humanizador da mitologia. Wayalioko “dificulta” a vida dos Enawene Nawe ao descumprir regras sociais, mas, em contraposição, por meio de suas peripécias, ensina a necessidade da força para vencer a batalha da vida.

Segundo sua visão, “antigamente os Enawene moravam dentro da pedra. Um dia um raio atingiu a pedra e fez um buraquinho. Um passarinho acordou e saiu. Lá fora ele viu as flores, comeu peixe-agulha, comeu lobó, comeu traíra, olhou os rios, as árvores, e voltou para dentro da pedra. Na volta, o passarinho passou bem apertado pelo buraco dentro da pedra ficou pensativo e calado. Vendo o passarinho assim, o chefe Wadare falou:
- O que houve titio, você está doente?
- Não, sobrinho, eu sai por aquele buraco eu vi lá fora, é bonito! Eu peguei lobó... Eu vi lá fora, é bonito! Wadare, meu sobrinho, eu vi tudo lá fora, é bonito! Venham comigo, vamos sair lá fora, é bonito!
Wadare chamou o picapau de cabeça vermelha e disse:
- Aumente este buraco para a gente sair
O picapau foi batendo, toc, toc... e abriu um buraco do tamanho dessa porta as pessoas foram saindo da pedra e cada povo tomou um rumo”.

Esta pedra está localizada nas cabeceiras do rio Papagaio (afluente do Juruena), num local que é reivindicado pelos Paresi como área indígena. Após a saída da pedra, guiados pelo ancestral mítico, Wadali, os Enawene Nawe passam por um período de deslocamento ao encontro do local que seria considerado como seu território por excelência, que se estende até a foz do Tonowina (rio Juina-Mirim).

Existem também laços de origem cosmológica com o alto rio Juruena. Foi no salto do Juruena que o tabu das flautas às mulheres foi rompido quando Doliro, filha do Yakaliti Kañawali, sobreviveu à condenação lhe imputada pelo fato de ela ter visto as flautas sagradas do Yaõkwa, após ter se banhado com uma erva – mekali – com efeitos purificadores. O caldo desta erva caiu nas águas do Juruena formando a espuma que, até os dias de hoje, corre abaixo do salto. Esse mito está presente em cantos do Yaõkwa e em versos de cura dos howenerekati: “Hiyeyalo Yaõkwa, hiyeyalo Yaõkwa (Você viu o Yaõkwa). Maiha yako nowayowa, maiha yako nowayowa (Não, eu não o vi)”.

No ritual Saloma, a referência ao salto do Juruena, considerado território e local da aldeia dos peixes. Já no Yaõkwa, a referência à região de implantação do Complexo Juruena aparece na seguinte canção que fala sobre a aldeia dos peixes, onde eles realizavam seus rituais. Nessa história, os peixes convidam uma mulher muito bonita, chamada Ayadero, para dançar no pátio de sua aldeia:“Kohase nawe awerohanaita (Os peixes estão dançando). Halakolo Ayadero ekakwa. (De braços dados com Ayadero)”.

Segundo Santos & Santos, antigamente, para os Enawene Nawe, os peixes eram dotados de características antropocêntricas que foram perdidas, ao longo do tempo, em decorrência do descumprimento de determinadas regras sociais: “Segundo os Enawene-Nawe, no começo dos tempos os peixes dominavam a língua dos humanos, a arte do canto, da composição, da instrumentação e da dança; tinham a habilidade do benzedor, hoenaytare, isto é, de soprar e proferir textos mágicos; obedeciam a certas regras de parentesco e de hierarquia, viviam em aldeias e praticavam rituais, tais como os humanos. A condição social e antropocêntrica primeira dos peixes definia, de antemão, a natureza e o grau de interação entre eles e as demais espécies e criaturas do universo. Tais relações se apoiavam em estatutos de eqüidade entre sujeitos com semelhantes posições sociais e compromissos jurídicos. Fatos marcantes, porém, envolvendo assassinato e antropofagia, desestabilizaram a condição eqüiestatutária entre peixes e humanos, fazendo com que os primeiros fossem arremessados para o limbo da sociabilidade, sem que isto tenha acarretado a perda ou a laminação integral de sua condição antropocêntrica”.

Dessa maneira, os cantos prenunciam o caráter transitório da existência, posto que este pode ser rompido, a qualquer momento, diante do descumprimento das obrigações sociais, tal como ocorreu com os peixes ao perderem o seu ancestral, de acordo com o mito relatado por Santos & Santos:“Depois de ter devorado alguns indivíduos da comunidade dos gaviões, o peixe Dokose, líder e avô de todos os peixes, resolveu também vitimar um garoto enawene. Em resposta, os gaviões e os próprios Enawene decidiram arquitetar sua morte, conseguindo, com a força e astúcia da harpia, arremessá-lo para fora d’água. Mas, com a morte de Dokose, os peixes perderam definitivamente sua memória histórica, esqueceram para sempre o que haviam aprendido: a música, a arte da cura, o papel sócio-político. Outra perda considerável foi sua capacidade de comunicação com os humanas e, com ela, o comprometimento das qualidades antropocêntricas. Com isso, os peixes foram relegados a uam condição quase negativa de sociabilidade com os humanos”.

Observa-se que as relações mitológicas e produtivas entre os Enawene Nawe e o rio Juruena, ultrapassam os limites da área demarcado. Cabe aqui um comentário a respeito da noção que os Enawene Nawe possuem sobre território. Para eles, a paisagem não é mera invenção da natureza e de sucessivas eras geológicas do planeta, como afirma Rodgers: “Trata-se, portanto, de uma ecologia ancorada em fortes referências territoriais e musicais, inextricavelmente imbricada em todos os aspectos da efervescente vida social enawene nawe”.

A paisagem, enquanto morada dos espíritos, foi também construídas por estes. A geografia corresponde a uma noção de ocupação imemorial dos Yakaliti – retomada através dos cantos e sopros de cura - que transitam num intenso vai-e-vem ao longo do território, como aponta Santos & Santos: “Os iakayreti deslocam-se pelas águas dos rios e pelas profundezas da terra. Sua moradia são os acidentes e outros locais da paisagem natural: ilhas, morros, cachoeiras, lagoas, brejos e corredeiras e barrancas de rio”. Sendo estes ocupantes incontestáveis da região, são eles também os donos dos recursos naturais e cabe, aos Enawene Nawe, retribuir com fartura a concessão destes para a utilização dos recursos.
Por tudo isso, podemos afirmar que, onde um de nós vê um morro, um Enawene Nawe pode ver um majestoso conjunto habitacional da legião de Yakaliti; onde um de nós vê uma bela cachoeira – ou bom ponto para se instalar uma hidrelétrica -, um Enawene Nawe vê o pátio da aldeia dos peixes onde eles dançam e celebram seus próprios rituais. Estas relações estabelecidas entre os Enawene Nawe e o alto rio Juruena são desconsideradas pelos estudos antropológicos do Complexo Juruena.

Baseado no texto de Juliana de Almeida

Original: Chakaruna

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