sexta-feira, 23 de maio de 2014

Irreconciliáveis

Aidan Kelly, no Patheos, em sua coluna “Including Paganism”, no tópico “The Goddess Murder II” faz várias perguntas concernentes não ao Paganismo, ou à Bruxaria, mas um desejo oculto em conciliar dois sistemas de crenças tão antagônicas quanto Paganismo e Cristianismo.

Aidan pergunta:

E se Maria Magdalena fosse esposa de Jesus e verdadeira sucessora?

E se ela fugiu para Alexandria e fundou uma comunidade baseada nos verdadeiros ensinamentos de Jesus?

E se ela teve que fugir novamente, para a Gália e continuou ali a comunidade?

E se os documentos contendo as doutrinas dela foram preservados por esta comunidade por séculos, através da Alta Idade Média?

E se esses documentos forem a base dos ensinamentos da “bruxa” chamada de Aradia?

E se a família de Aradia, como uma família de bruxas hereditárias, preservaram esses ensinamentos e distribuíram esses escritos até a Idade Moderna?

E se esses documentos fundamentalmente heréticos repentinamente aparecessem agora?

E se tais bruxas hereditárias fossem, portanto, cristãs genuínas que preservaram os ensinamentos originais de Jesus?

Aidan Kelly tem uma péssima reputação nos círculos da Wicca Tradicional. Ele é o autor de diversos livros que tentaram difamar o nome de Gerald Gardner e tentou refutar a hereditariedade de toda a Wicca Tradicional. Ele perpetrou tal acinte porque, depois de fundar a NROGD, queria que sua forma de wicca eclética fosse aceita, reconhecida e respeitada da mesma forma que as demais vertentes da Wicca Tradicional. Evidentemente, ele não conseguiu. Em sua busca por aceitação, ele foi um dos fundadores da COG, recebeu iniciação na Tradição Feri [uma forma de neopaganismo e uma forma de culto moderno de bruxaria], tornou-se membro da CAW, trabalhou com a Tradição 1734 e lançou recentemente outros títulos sobre a “história” da Bruxaria e da Wicca, nos termos dele. Eu não estranharia se Aidan tentasse, de alguma forma, reconciliar seu lado católico/cristão com seu lado pagão. Eu cometi esse mesmo erro, eu busquei por aceitação, reconhecimento, respeito, aprovação, permissão, benção. Um pagão, um bruxo autêntico não precisa de permissão, autorização ou aplauso, nós devemos servir aos Deuses.

O Cristianismo é irreconciliável com o Paganismo, mesmo em sua forma esotérica. Em seus primórdios, os cristãos mesclaram, em suas doutrinas, muitas das doutrinas das Religiões de Mistério que existiam na época, com o intento de angariar audiência e aumentar o número de prosélitos entre os “gentios”. Mas a história do Cristianismo está vinculada à história do Judaísmo, cuja característica principal é o monoteísmo, a noção de pecado e a condenação da bruxaria.

Eu vou deixar de lado as questões cruciais sobre a existência real e histórica de Yeshua ben Yosheph, as questões de se ele era o Ha-Massiah, ou o Cristo e as questões se Cristo veio para “salvar o mundo”. Vamos nos concentrar nas questões de Aidan a respeito de Maria Magdalena e Cristo.

Maria Magdalena é esposa de Cristo segundo a doutrina Gnóstica, uma forma de cristianismo esotérico, misturado com diversas outras doutrinas do Oriente Médio, como o Mazdeismo, o Mithraismo e o Orfismo. De acordo com a Gnose, Maria Magdalena é quem seria o Cristo, ou melhor, uma Alta Sacerdotisa dos Mistérios Antigos. Aquele quem foi chamado de Jesus Cristo foi um de seus iniciados, um dos poucos que tentou trazer ou conciliar o Judaísmo com as Religiões de Mistério, por causa do espírito do tempo, onde o sincretismo e a religião estavam se transformando em um fenômeno das massas. Jesus foi identificado como Cristo porque entre os Judeus a ideia de uma mulher como Alta Sacerdotisa é impensável, como ainda é para a Igreja Católica. Não é mera coincidência que muitos dos “ensinamentos” contidos nos Evangelhos são contraditórios e conflitantes com os ensinamentos do Velho Testamento.

A fuga de Maria Magdalena faz parte dos mitos dos cristãos gnósticos, mas sem termos acesso a estes “documentos”, não passa de conjectura absurda achar que estes textos teriam algo além de Cristianismo e esoterismo oriental indistinto. As comunidades cristãs se espalharam e cresceram, prioritariamente, em lugares onde “gentios” e judeus haviam formado comunidades, conhecidas como Nazarenos, da raiz Notzri, um conceito conhecido do Judaísmo, não por ser oriundo da cidade de Nazaré. Alexandria era uma dessas cidades, mas é tão provável falar em “verdadeiros ensinamentos” de Cristo quanto em “verdadeira bruxaria”. A Gália, atual França, foi incluída nesses mitos gnósticos cristãos graças a Carlos Magno, o rei da França, cuja família, os Merovíngios, tem sua própria lenda.

Depois do Concílio de Niceia, a Igreja Católica condenou toda e qualquer outra forma de Cristianismo que não fosse a sancionada por Ela mesma. Com a queda do Império Romano e o surgimento dos reinos bárbaro-cristãos, têm inicio a Idade Média e as guerras contra as heresias. Nessa era onde havia um totalitarismo do Vaticano, poucos escritos não canônicos sobreviveram, assim como hereges sobreviveram em comunidades isoladas, mas é pouco provável que tenham tido qualquer vinculo com os cultos campesinos e com os cultos de bruxas. Ainda assim seriam cristãos, com uma forte influência do Judaísmo, não cederiam ao sincretismo religioso que misturou as crenças originais europeias pré-cristãs com o Cristianismo.

Aradia, figura lendária da Stregueria, viveu na Itália, não na França. Sua lenda, tal como nos foi contada por Charles Godfrey Leland, tem pouca ou nenhuma base histórica. O livro “Il Vangelho di Aradia” pode muito bem ser uma obra de ficção escrita por Charles que utilizou como base algumas crenças do folclore da Toscana, Itália. Na época em que Charles Leland escreveu este texto herético, a Igreja perdeu muito de seu poder, o Colonialismo fomentou o Movimento Romântico e um crescente interesse entre artistas e intelectuais pela Bruxaria. Muitos livros, sejam acadêmicos, sejam literários, traziam muito da concepção judaico-cristã sobre o que era Bruxaria e quem eram as bruxas, ou seja, como um mero resultado da folclorização do Cristianismo. O livro de Charles Leland tem aportes que tocam aspectos da teologia cristã, como a figura de Lúcifer e a missão “redentora” de Aradia, como um reflexo tardio da figura de Maria Magdalena. A Stregueria, a Bruxaria Tradicional, as Religiões de Mistério, podem até ter a noção de purificação, mas isso é algo individual, através de sacrifícios pessoais e intransferíveis. Mesmo nos cultos de Orfeu, Dioniso, Atis, Mithra e outros “proto-cristos”, os rituais de expiação coletivos tinham que ser realizados em um templo, cujos sacrifícios tinham que ser realizados dentro de uma cerimônia e era aberto apenas para neófitos que iriam entrar para o templo. Circunstâncias que denotam uma grande distância entre as Religiões de Mistério e o Cristianismo. O ato de sacrifício de Cristo foi feito em terreno profano, sem a presença de ritual, cerimônia, sacerdote ou Deus, portanto foi um ato em vão.

Por fim, a alegação de que essas bruxas hereditárias fossem cristãs genuínas que preservaram os ensinamentos de Cristo. Aqui entra no perigoso jogo do “cristão verdadeiro”, um terreno onde é fácil cometer uma falácia no argumento, haja visto as inúmeras vertentes do Cristianismo pelo mundo. Os Evangelhos são uma pálida evidência do que se consiste nos “ensinamentos” de Cristo, se não contarmos os Apócrifos e outros textos gnósticos. A expansão do Cristianismo não foi pacífica nem foi aceito sem resistência, quando o Império Romano, por Constantino e Teodósio, decretou o Cristianismo como a única religião oficial, houve revoltas e guerras, mas no fim o Cristianismo foi implantado, mas não sem acabar assimilando, incorporando as crenças locais e a população contribuiu através da sincretização e folclorização do Cristianismo. A Bruxaria está contida no folclore da Europa então aconteceu que cristãos se envolveram com Bruxaria e bruxas usaram elementos da crença oficial para ocultar seu Ofício, mas estão em um terreno perigoso, estão andando no fio da navalha. Uma bruxa hereditária e tradicional não vê problema algum com as ferramentas que usa, mas dificilmente irá aceitar a autoridade da Igreja, do Cristianismo ou de Cristo. Um cristão que ignora as bases de sua crença o faz porque a Bruxaria funciona e as entidades presentes na natureza são mais solícitas do que o Deus Cristão. Ainda assim um cristão “genuíno” dificilmente poderia ser um bruxo hereditário, pelas próprias condições do Cristianismo e as características intrínsecas da Bruxaria. Somente com uma leitura muito superficial, tendenciosa e romântica que um cristão poderia “ver” os milagres de Jesus como atos resultantes de Bruxaria ou de Magia. Somente com essa visão idílica e utópica Maria Magdalena seria vista como Alta Sacerdotisa. Somente rejeitando todo o alicerce contido no monoteísmo judaico-cristão que se pode alegar que os ensinamentos originais de Cristo possam ser a base da Bruxaria Hereditária. Para um acadêmico que pretende ser historiador da Bruxaria, Aidan Kelly está cometendo muitos pecados. Para a comunidade acadêmica e pagã, o texto dele é mais um de seus desvarios.

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