quinta-feira, 3 de maio de 2012

Religião - elemento propulsor

Longe de se prender à ignorância e à covardia, a Religião tem sido sempre poderoso estímulo da cultura: verifica-se que as grandes conquistas da civilização no decorrer dos séculos foram empreendidas primeiramente por interesses religiosos. Para ilustrar isto, os geógrafos apontam longa série de instituições culturais que a Religião inspirou ou, ao menos, fomentou pujantemente:

a) A casa. O domicílio do homem difere do ninho ou do antro do animal irracional não só por sua complexidade, mas principalmente por ser em seus primórdios um santuário religioso. Com efeito, o tipo característico da casa entre os romanos, por exemplo, se deve ao culto do fogo sagrado, fogo junto ao qual residiam os deuses Lares e Penates; para defender dos profanos o fogo santo, os homens construíram em torno dele um enquadramento, no qual aos poucos conceberam a ideia de estabelecer sua própria residência. Algo de semelhante se deu entre os gregos, os quais diziam que o fogo havia ensinado os homens a construir seu domicílio. O fogo parece ter entrado nas casas em geral primeiramente a título religioso; só posteriormente foi dentro de casa utilizado para fins domésticos (aquecer, cozinhar...); ainda há tribos antigas que deixam a cozinha com o seu fogo fora de casa, só introduzindo no domicílio o fogo de caráter religioso. Numerosos são os vestígios de crenças religiosas na arquitetura e na localização das casas, na disposição de portas, janelas e poços, entre os diversos povos.

b) As cidades. Também a formação e a configuração das cidades foram fortemente inspiradas por motivos religiosos. Era em torno de um templo ou de um recinto de culto que se ia aglomerando a população de uma região, dando assim origem a uma aldeia ou cidade; Enéias, por exemplo, fundou a cidade de Lavinium, levando para o santuário do mesmo nome os deuses de Tróia; na Idade Média era em torno de uma igreja situada no alto de uma colina, ou em torno de um mosteiro, que frequentemente se fundavam as cidades (tenham-se em vista os nomes compostos com moutier, mosteiro: Romainmoutier, Moyenmoutier, Noirmoutier...; em alemão Münster...).

Observe-se também que desde cedo se foram construindo cidades entre os egípcios, os mesopotâmios, os cretenses, porque a religião lhes favorecia; julgavam que os deuses queriam cidades; as grandes cidades gregas nasceram em período de efervescência religiosa. Ao contrário, os germanos, os celtas, os albaneses só tardiamente conheceram cidades, porque a sua sabedoria religiosa não as fomentava; foram não raro estrangeiros que entre eles fundaram as cidades.

c) A agricultura. Foi também muito estimulada por concepções religiosas, que atribuíam a certas plantas um valor sagrado ou uma função qualquer no culto. Tal foi o caso da figueira, que na índia traz o nome de fícus religiosa; os gregos diziam que o figo era símbolo de iniciação a melhor vida. A oliveira gozou de semelhante estima. O ópio, ao contrário, sendo proibido pelo budismo e o islamismo, é cultivado com estranha irregularidade no Oriente.

d) Os animais. Também não poucos animais têm recebido veneração religiosa. Em vários casos a passagem do animal selvagem para o estado de animal doméstico se fez mediante o estado de animal sagrado. O elefante, por exemplo, antes de ser animal doméstico, era animal sagrado na índia. No antigo Egito, os gatos sagrados eram numerosíssimos (descobriram-se milhares de múmias desse felino); julga-se com probabilidade que foram domesticados por constituírem objeto de culto religioso. Outros animais entraram no convívio do homem, a fim de honrarem a Divindade pela sua beleza; assim a íbis, no Egito; o pavão, na índia; o gamo, no Japão.

e) A indústria. Não menos profunda é a influência benéfica da Religião no desenvolvimento da indústria. A fabricação de laticínios, por exemplo, está em grande parte a serviço do culto no Oriente; nos templos do Tibete centenas de lamparinas ardem dia e noite, alimentadas por manteiga; os "lamas" têm o rosto, as pernas e as mãos untados com manteiga. A fabricação do papel e do livro têm dependido muito das necessidades do culto e da piedade; o mesmo se dá com os têxteis e a metalurgia.

f)  O comércio. Está claro que as aglomerações vultosas de fiéis motivadas pela religião acarretam intensificação benéfica do comércio; as primeiras moedas eram objetos estimados por seu caráter ritual ou seu valor religioso. A contabilidade dos bancos e escritórios tem suas origens nos templos da Mesopotâmia, onde os sacerdotes, movidos por respeito sagrado, faziam o inventário de tudo que dizia respeito ao culto e ao sustento do templo.

g) Os transportes, as vias e as pontes devem grande parte do seu incremento ao fervor religioso de peregrinos e missionários. Não raro a afluência a determinado santuário provocou a abertura de estradas, assim como a multiplicação e o aperfeiçoamento de veículos. - Em particular, as pontes têm sido obras de sacerdotes ou de pessoas dedicadas a Deus. Com efeito, os romanos pagãos, por exemplo, julgando que os rios tinham algo de  agrado, reservavam a construção de pontes a um grupo especial de sacerdotes. Entre os cristãos da Idade Média, era a caridade que levava os fiéis a formar confrarias construtoras de pontes: havia os "Irmãos Pontífices", aos quais se devem as pontes de Avinhão e do Espírito Santo, sobre o Ródano (França).

h) Por fim, note-se outrossim que no surto das artes está em geral a inspiração religiosa; as primeiras peças literárias das antigas e modernas civilizações são documentos religiosos; costumam estar redigidos em poesia, que é a forma literária mais correspondente ao entusiasmo sagrado (tenham-se em vista, por exemplo, as obras de Homero e dos "teólogos" gregos). A pintura e a escultura não são menos tributárias à Religião.

Em suma, registra-se o seguinte: sempre que nos é dado observar as origens ou as fases iniciais de determinada cultura, verificamos que as suas diversas manifestações estão todas indistintamente fundidas com a Religião; é no seio materno da Religião que elas nascem e por muito tempo são nutridas.

Donde se vê que considerar a Religião como algo de pré-lógico ou como produto da covardia do homem significa, de certo modo, lançar uma nota de desprezo sobre a própria cultura humana, que nasceu no seio da Religião.

Vêm a propósito aqui as observações de famoso geógrafo contemporâneo:

"A maioria dos homens atesta sobre a Terra a existência do sobrenatural; a espécie humana, em graus diversos, mas de maneira geral, é religiosa; esta, aliás, vem a ser uma de suas características; o "homo faber et sapiens" é também primordialmente um homo religiosus. Por obra dele, a terra está impregnada de religiosidade. A pujante tarefa cultural dos homens não foi efetuada somente em vista da instalação da espécie humana sobre o globo, mas parte muitas vezes grandiosa desses esforços foi empreendida mais ou menos diretamente a fim de proclamar ou exaltar a existência de seres sobrenaturais ou sagrados...

A religião nos aparece como um dos grandes fatores que transformam a face da Terra e, em qualquer caso, como o motivo de atividades caracteristicamente humanas... À semelhança do homem, o animal (irracional) lutou contra os elementos da natureza; mas o que somente o homem fez, foi dar vulto à ideia da Divindade sobre a face do globo. A Geografia religiosa vem a ser a Geografia mais especificamente humana..." (P. Deffontaines,Géographie et Religions. Paris 1948, 8.12).

4. Conclusão

A religiosidade é um elemento integrante da pessoa humana. O homem bem pode ser considerado um peregrino do Absoluto, um viandante rumo ao Eterno e Infinito. Até os materialistas marxistas procuram um novo estado de coisas e a plena satisfação de seus anseios através da mística do martelo e da foice. Os atritos que a religião causou entre os homens se devem, em grande parte, à valorização dos bens espirituais, que os antigos e medievais julgavam ser superiores aos bens materiais. A religião inspirou a entrega de tudo, até da própria vida, para não renegar o Valor Supremo que é Deus. Quando se avalia o passado, não se pode deixar de levar em conta esse traço próprio da mentalidade de nossos ancestrais.

Acontece, porém, que esse elemento integrante da pessoa humana - o senso religioso - não pode ser cego ou desligado da razão. É esta que distingue entre si fé e crendice. É com a inteligência que o homem crê, e não com os olhos da mente fechados pela cegueira do sentimentalismo ou das emoções.

Autor: Estevão Bettencourt

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