Se você achou a abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim uma festa exótica, imagine as seguintes cenas: cem bois são degolados a sangue frio e transformados em churrasco no Estádio Ninho de Pássaro; diante do resultado positivo de um exame de doping, um corredor canadense é forçado a ir de joelhos de Montreal até Aparecida do Norte, como penitência; pais carregam seus filhos paraplégicos ou cegos até uma estátua de Michael Phelps, o genial nadador americano, na esperança de que os “poderes olímpicos” do atleta os curem.
Insanidade completa? Não se ainda estivéssemos disputando as Olimpíadas no formato que elas tinham na Grécia Antiga. Para os gregos, a expressão “devotos do esporte” não era só uma metáfora, já que os Jogos Olímpicos funcionavam, antes de mais nada, como um festival religioso. Ou, para usar uma comparação mais prosaica, uma espécie de superquermesse, cujo “santo padroeiro” era ninguém menos que o rei dos deuses gregos, Zeus, senhor do relâmpago.
Comecemos com a mortandade pública de bovinos, que certamente deixaria os defensores dos direitos dos animais em polvorosa caso tivesse acontecido em Pequim neste ano. “Em Olímpia [cidade-sede perpétua das Olimpíadas gregas], assim como nos outros santuários principais de Zeus, o deus era conhecido como hekatombaios, ou seja, merecedor de cem bois”, escreve o historiador Nigel Spivey, professor de arqueologia e arte clássica da Universidade de Cambridge (Reino Unido) e autor do livro “The Ancient Olympics”. “Os bois eram massacrados diante de uma multidão de fiéis, e os recintos sagrados ficavam cheios do sangue deles. Ao longo dos séculos [as Olimpíadas gregas duraram de 776 a.C. a 392 d.C.], os ossos, cinzas e entranhas bovinas foram formando uma pirâmide”, conta Spivey.
Origens misteriosas
É indiscutível, portanto, que Olímpia, no Peloponeso (a península ao sul da Grécia), só se tornou um centro poliesportivo porque era um importante santuário de Zeus. Como e quando exatamente isso aconteceu ainda é motivo de debate entre os arqueólogos, mas o certo é que a região já recebia oferendas (em geral representadas por estatuetas de bronze, ofertadas a templos do deus) no começo do século 8 a.C., o que parece casar com a data tradicional de 776 a.C. para o início dos jogos.
Outro possível elemento religioso das origens olímpicas são os chamados jogos funerários, uma prática descrita até pelo célebre Homero na Ilíada, sua obra-prima sobre a guerra de Tróia. Os jogos funerários parecem ter sido uma espécie de ritual em honra de grandes heróis mortos - personagens que, segundo a mitologia grega, em geral eram o fruto da união entre deuses e mortais e acabavam sendo divinizados após a morte. (É possível pensar nos heróis como uma espécie de categoria intermediária entre as divindades e os seres humanos - uma comparação possível, embora imperfeita, é com os anjos e santos da tradição cristã.) De um jeito ou de outro, as competições atléticas em Olímpia (que começaram com uma simples corrida, mais ou menos equivalente aos nossos 200 metros rasos, e passaram a incorporar modalidades como o boxe e a luta livre) logo se tornaram uma das formas mais apreciadas de honrar Zeus e os outros deuses gregos. Ao atrair competidores de todas as cidades de cultura grega, de uma região que ia da atual França à Geórgia, as Olimpíadas viraram o festival religioso mais importante do mundo antigo. E até para treinar era preciso buscar a proteção dos céus: cada cidade-Estado grega tinha, em seu(s) ginásio(s), o deus padroeiro dos atletas.
Milagreiros
Tanto a vitória quanto a derrota nos Jogos Olímpicos eram consideradas manifestações da vontade divina, e os participantes eram obrigados a fazer um juramento sagrado de ter participado de uma rotina devota de treinamentos e de não trapacear. (Os que fossem pegos tentando passar a perna nos adversários eram obrigados a financiar uma série de estátuas de Zeus, as chamadas Zanes, que eram colocadas no recinto sagrado de Olímpia.)
Quem fosse vitorioso, no entanto, muitas vezes já ficava a meio caminho de virar “santo” - ou herói, para ser mais exato. Suas estátuas, como as dos deuses, eram erigidas e expostas no santuário. A modalidade que mais conferia capacidades divinas ao vencedor, segundo a crença grega, era o chamado pankration, uma forma brutal de luta vagamente parecida com o nosso vale-tudo. “Algumas estátuas de campeões do pankration eram veneradas como talismãs mágicos, capazes de conferir força e com poderes de cura”, afirma Spivey. Uma história sobre Teágenes, “medalhista de ouro” tanto no pankration quanto no boxe, mostra como os gregos acreditavam nesses poderes. Conta-se que, após a morte de Teágenes, um inimigo do campeão costumava chicotear sua estátua todas as noites, querendo se vingar postumamente do desafeto. Certa madrugada, a estátua caiu sobre o invejoso, matando-o. Os moradores de Tasos, terra de Teágenes, “julgaram” e “condenaram” a estátua a ser jogada no mar. Só que as colheitas da cidade ficaram muito ruins depois disso. Os moradores de Tasos consultaram um oráculo e foram instruídos a recuperar a estátua. Deu certo: as colheitas voltaram ao normal.
Autor: Reinaldo José Lopes, do G1, em São Paulo.
Um comentário:
INTERESSANTE ESTE ARTIGO....E EDUCATIVO
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