No universo de Pollyana não existem dias ruins, e, se há algum problema no horizonte, é porque você não foi capaz de olhar as coisas da perspectiva correta. O importante, afinal, é sempre jogar o “jogo do contente”, de maneira que, ao pedir bonecas e ganhar muletas, poderá sentir alegria, no lugar de frustração, ao se dar conta de que não precisa delas. Os ensinamentos da menina de 11 anos, personagem de um clássico da literatura infantojuvenil publicado em 1913, parecem continuar fazendo a cabeça de muitos jovens e adultos. Ainda que em nova roupagem, um tanto mais moderna, ganha espaço nas redes sociais, principalmente entre certos círculos sociais muito afeitos a práticas entendidas como espiritualizadas, um discurso que – com seus “gratiluz” e “namastê” – prega o otimismo irrestrito como forma de driblar qualquer entrevero, evocando até supostos poderes de cura advindos das boas energias.
Potencializada pelas mídias digitais, em que estamos habituados a apresentar sempre o melhor dos nossos mundos, a amistosa retórica do “Good Vibes Only” (apenas boas energias) esconde implicações que, associadas a esse conjunto de valores, podem ser potencialmente prejudiciais tanto para seus adeptos quanto para pessoas que não partilham de tal modelo. Trata-se de um fenômeno que, por exemplo, ao reduzir a capacidade de lidar com a frustração e junto de outros diversos e difusos fatores, tem levado um grande número de jovens a desenvolver quadros de ansiedade e de depressão.
Não que cultivar pensamentos positivos seja, em si, um ato problemático. Pelo contrário: “Temos até a psicologia positiva, que joga luz sobre as vantagens de exercitar um olhar mais otimista sobre a vida, algo que se reflete em nosso comportamento e em nossas emoções. Não há dúvida de que a saúde é beneficiada por termos uma postura mais positiva”, sentencia Paula Figueiredo, psicóloga humanista e especialista em política pública e saúde mental. Além disso, prossegue ela, práticas terapêuticas como a ioga, a meditação e o “mindfulness”, em que que a positividade se faz muito presente, trazem em seu bojo uma compreensão mais dilatada da saúde, incorporando uma preocupação integrada entre o físico e o mental.
“É fato que nossa energia acompanha o nosso foco, e aquilo em que focamos cresce. Focar o que cada situação tem de positivo é compreender que mesmo as adversidades trazem benefícios – porque, afinal, nos fazem crescer”, complementa a escritora e life coach Carol Rache.
Supressão de sentimentos negativos gera adoecimento
É, portanto, recomendável que se exercite o otimismo. Mas é igualmente fundamental ao bem-estar que sentimentos tidos como negativos não sejam apagados. “Nossa vida não é uma constante de positividade: nós temos necessidade de manifestar tristeza, irritação e raiva, por exemplo. E sufocar esses sentimentos não os elimina, apenas vamos colocá-los em outro lugar até que eles reapareçam”, comenta a psicóloga. Ela salienta que a tentativa de suprimir sensações “ruins” impede o desenvolvimento da inteligência emocional, que está relacionada à capacidade de entrar em contato com essas emoções e canalizá-las de forma saudável e adequada.
“Quando a gente esconde o que está sentindo, abrimos gargalo para inúmeros adoecimentos da saúde mental”, alerta, assegurando que, de sua experiência clínica, tem presenciado um movimento coletivo de jovens que demandam ajuda profissional para lidar com a adversidade.
“Focar o lado positivo das situações não elimina a necessidade de reconhecer o lado desafiador. Tudo é dual. Toda moeda sempre terá dois lados”, adiciona Carol, que é muito ligada ao mencionado universo de práticas como a ioga e a meditação, mas que é crítica ao “Good Vibes Only”: “É um movimento que nega as emoções (compreendidas como) negativas porque teme se perder nelas e que usa a positividade como fuga”. Para ela, ter o otimismo como via de mão única indica uma tentativa de esquiva “da percepção de que somos duais, de que carregamos luz e sombra dentro de nós”, argumenta.
Outro efeito danoso da positividade tóxica está relacionado a um bloqueio do exercício da empatia. “Se eu classifico alguns sentimentos como inadequados, vou tentar enterrar eles em mim e não vou conseguir acolhê-los no outro. Ou seja, quando começamos a bloquear energias negativas, muito nessa de ‘apenas boas energias’, passamos a bloquear também pessoas ao nosso redor”, comenta Paula. Ela sublinha que, neste caso, não fala sobre se afastar de pessoas que, de fato, nos fazem mal, mas de se afastar de qualquer um que, em algum momento, esteja atravessando momentos difíceis.
A psicóloga destaca que, além de muito presente nas redes sociais, esses discursos parecem também reproduzir o modus operandi que prevalece no ambiente virtual – e os problemas decorrentes da positividade tóxica tendem a ser potencializados pelas mídias digitais. “A dificuldade de compreender o mundo em todas suas imperfeições me parece muito atrelada ao desejo de reproduzir na vida real o que construímos na vida virtual – um lugar em que escolhemos bem as fotos que vamos colocar, sempre tentando transmitir a mensagem que, o tempo inteiro, está tudo bem”, examina. Para ela, além de provocar a sensação de que a grama do vizinho está sempre mais verde, passa-se a tentar esconder, na vida real, o que se considera negativo ou feio.
Crer no otimismo como caminho único torna pessoas excludentes
Ao desestimular atitudes empáticas, o movimento Good Vibes Only se impõe como um obstáculo ao compromisso com a dor do outro e com a promoção de mudanças na sociedade. “Em um mundo que exige de nós compromisso com pautas sociais, ao imaginar que o pensamento positivo é a solução mágica tendemos a ser excludentes, pois não vamos conseguir nos conectar a dor do outro – que é expulso de casa por ser LGBT, que deixa de conseguir emprego pela cor da pele, que não consegue se sentar no banco do ônibus por ser gordo”, diz Paula.
Não é só. A positividade tóxica, de certa maneira, também está ligada ao negacionismo e ao pensamento anticiência. “Na urgência de ver o mundo como um lugar perfeito, passamos a ter dificuldade de encarar a realidade em todas as suas nuances”, pontua a psicóloga. “Tentar ver o mundo cor-de-rosa é tentar evitar ver no macro – e no mundo – aquilo que não queremos reconhecer que existe no micro – e em nós”, completa a coach.
Além disso, cedendo a crendices, muitos passam a compreender o otimismo como um remédio em si, algo capaz de, magicamente, impedir tragédias. Posts que traziam esse tipo de mensagem circularam nas redes sociais em janeiro, quando enchentes deixaram mortos e desabrigados em Belo Horizonte. Conteúdo semelhante também foi propagado em relação à pandemia do novo coronavírus. Houve até quem se disse curado da Covid-19 por “pensar positivo”. De maneira geral, essas postagens queriam fazer crer que a natureza poderia “ser manipulada pela força do pensamento”.
“O caráter tóxico da positividade começa quando passamos a achar que apenas pela ação do nosso pensamento ou por nossa disposição de humor a realidade vai se alterar”, escreve o psicanalista Christian Dunker em sua coluna publicada no portal “Uol”, em maio. Na publicação o professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) discorreu sobre a problemática do otimismo exacerbado. “A pessoa simplesmente não lê a continuação de ‘Pollyanna’, chamada ‘Pollyanna Moça’, publicada em 1915, na qual nossa heroína torna-se paralítica e sofre outras tantas desventuras”, anota, fazendo referência à personagem criada pela norte-americana Eleanor H. Porter, citada no parágrafo que abre esta reportagem. “O otimismo não nos protege do pior “, completa.
Original: https://www.otempo.com.br/interessa/positividade-toxica-movimento-good-vibes-only-adoece-e-e-obstaculo-a-empatia-1.2367204
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