Saudações a todos.
Seguindo linhas mencionadas antes, eu gostaria de apresentar um argumento lógico em que venho trabalhando, a favor do politeísmo. Aqueles com uma formação filosófica provavelmente gostarão de saber antes que isso é um argumento a posteriori baseado na evidência da diversidade da experiência religiosa. Até agora, tive uma boa acolhida ao apresentá-lo por meio de uma analogia expandida, então aí vamos nós.
Imaginem uma vila com cinco casas, cujos moradores têm algumas crenças notáveis sobre os gatos. Ou, em quatro das cinco casas, sobre O Gato…
Um pesquisador do folclore chega à vila um dia, bate à porta da primeira casa, e pede para entrevistar o dono da casa com relação à sua crença em entes felinos. “Claro que eu acredito no Gato”, responde ele. “Existe um Gato, que é castanho com olhos azuis. Eu aprendi sobre O Gato com os meus pais. Toda manhã eu vou à varanda, chamo ‘Aqui, gatinho, gatinho!’ e deixo uma tigela de miúdos — e na manhã seguinte, eles se foram. Eu já vi O Gato uma vez, em pessoa — e Ele ronronou para mim, o que mostra que Ele aprova a minha crença. Ele é castanho de olhos azuis, como eu disse”.
O dono da casa #1 tem opiniões definidas sobre os outros moradores da vila, que discordam dele quanto à natureza do Gato. Obviamente eles nunca encontraram o verdadeiro Gato, ele insiste, ou saberiam que Ele é castanho de olhos azuis. “Uma pena, realmente”, diz ele, “que eles não conheçam melhor, e continuem fazendo os chamados errados e deixando os tipos errados de comida para gatos que não estão lá”. Ele insiste que a comida que os outros deixam é comida por vagabundos errantes à noite.
O pesquisador vai até a segunda casa, e faz as mesmas perguntas. O dono da casa #2 também acredita na existência de um único Gato, mas diz que Ele é preto com olhos verdes. Toda noite ele deixa uma tigela com leite na porta dos fundos e chama “Bichano-chano-chano!” e o leite desapareceu na noite seguinte. Ele também teve um encontro pessoal com O Gato, e descreve em termos de arrepiar a noite em que voltava bêbado do bar da vila vizinha, quando ouviu um miado extraterreno e viu O Gato olhando para ele com olhos brilhantes do alto da cerca de casa. “Eu digo, quase morri de susto naquela noite, e a minha vida mudou do avesso: desde aquele dia eu não voltei mais a beber”.
O dono da casa #2 também tem algo a dizer sobre seus vizinhos mal-informados, que discordam dele quanto à natureza do Gato. Ele sabe que eles deixam comida, mas está convencido de que essas oferendas são levadas, não pelo Gato, mas por algo muito menos agradável. “Ratos de esgoto saem à noite e comem o que os outros deixam lá”, diz ele. “Claro, tenho certeza que alguns deles acreditam que estão alimentando O Gato, mas estou convencido de que outros estão deliberadamente alimentando os ratos –até mesmo acariciando seu pêlo sebento. Revoltante, eu digo. Cedo ou tarde, no Seu tempo, O Gato matará todos os ratos e aí veremos quem nesta vila receberá o ron-rom e quem receberá arranhões e mordidas!”
Nosso pesquisador segue para a terceira casa, e faz as mesmas perguntas. A dona da casa também acredita no Gato, mas tem pontos de vista muito mais tolerantes que seus vizinhos. “Ele é um macho grande e alaranjado com olhos cor de laranja”, ela explica. “Sei que os outros discordam, claro. É preciso admitir que eles realmente obtiveram conhecimento verdadeiro sobre O Gato; afinal, todos reconhecem que O Gato tem quatro patas, cauda, orelhas pontudas, e bigodes. Eu suspeito que eles podem ter visto O Gato realmente, à distância, ou em más condições de iluminação. O Gato pode até ter rolado no pó, e aí surgido para alguns deles; Ele age de modos misteriosos, afinal de contas.”
A dona da casa #3 também encontrou O Gato em pessoa; ela O viu um entardecer, na cerca que divide sua propriedade daquela da casa #2. “É assim que eu sei que Ele não se limita a uma só propriedade”, ela explica. Todos os dias ao meio-dia, ela deixa uma tigela de ração enlatada e sai em silêncio, sabendo que esse é o jeito correto de alimentar O Gato. Ela acha, no entanto, que O Gato provavelmente come também os miúdos e o leite deixados pelos dois primeiros donos de casa, embora Ele prefira ração enlatada acima de tudo.
O pesquisador vai até a quarta casa, e faz as mesmas perguntas. O dono da casa #4 é um engenheiro com estantes cheias de livros científicos e matemáticos, e ele logo despeja seu desprezo sobre o que ele considera ser uma crença insensata no Gato. “Eu nunca o vi, e não acredito que alguém o tenha visto”, diz ele. As declarações dos outros, de ter encontrado O Gato pessoalmente? “Alucinações ou percepçôes equivocadas de fenômenos completamente não-felinos, fortemente acentuadas por uma intensa vontade de acreditar. Se você quiser ver um gato com força suficiente, vai acabar se convencendo de que cada folha que se move é um gato”. A comida deixada por eles? “Comida por vagabundos errantes, muito provavelmente. Há muitas explicações que não requerem a crença em algum tipo de felino”. Ele aponta as contradições nos relatos sobre O Gato: “Olha, um só Gato não pode ser castanho, preto e alaranjado ao mesmo tempo! É logicamente impossível–e esse tipo de contradição é uma das melhores provas de que não existe esse negócio de Gato”.
Por fim, nosso pesquisador chega à última casa da vila, uma cabaninha no fim da rua, e faz as mesmas perguntas à velha que lhe abriu a porta. Ela ri. “Você andou falando com os outros? Eles são todos tontos”, ela diz ao pesquisador. “Tem havido três gatos diferentes na vila nos últimos anos–um castanho, um preto, e um grande macho alaranjado. Cada um tem seu próprio território e faz suas rondas, e cada um sabe onde e quando ir para obter sua comida favorita. Claro que todos vem aqui de vez em quando, e eu tenho miúdos, leite e ração enlatada para alimentá-los”.
“E o mais engraçado nisso tudo”, continua a velha, “é que um novo gato — uma fêmea Burmesa– apareceu aqui há pouco tempo, e ela acabou de ter uma ninhada de gatinhos. O que o pessoal da vila vai pensar deles quando começarem a sair por aí, não consigo nem imaginar!”
O dono da casa #1 é um monofelista exclusivo — isto é, ele acredita que só existe um gato, que ele alega ser capaz de identificar, e também acredita que todos os outros gatos alegados não existem. O dono da casa #2 também é um monofelista exclusivo, mas de outro tipo — ele também acredita que só há um gato, que alega ser capaz de identificar, mas ele admite a realidade de outros seres que fingem ser gatos; ele apenas nega que eles tenham status felino.
A dona da casa #3 é de outro tipo, por assim dizer. Ela é uma monofelista inclusiva; ela acredita que só há um gato, que alega ser capaz de identificar, mas ela considera que as experiências dos outros com o gato são baseadas em experiências reais. Ela explica as diferenças entre relatos do Gato como produtos de percepcão ou interpretação inacurada.
Todos os três monofelistas tiveram um encontro pessoal com um gato, e isso forma a base crucial da sua crença de que podem identificar o verdadeiro gato. Todos os três desenvolveram estratégias interpretativas pelas quais podem descartar e desconsiderar relatos conflitantes do gato feitos por outras pessoas. O que se nota nessas estratégias é que qualquer uma delas poderia ser usada por qualquer dos três monofelistas, com resultados idênticos. Todas, de fato, são formas de apelo especial — uma insistência de que a sua própria evidência seja julgada por critérios diferentes e mais tolerantes do que a evidência contrária trazida por outros. Afinal de contas, não é impossível que o segundo monofelista esteja, sem o saber, alimentando um rato do esgoto, ou que a terceira monofelista tenha encontrado o gato quando o pôr-de-sol fez seu pêlo parecer alaranjado — mas nenhum dos dois felistas poderia admitir isso nem por um momento.
Esse é o ponto levantado pelo quarto habitante da vila, que é um afelista (*). Ele simplesmente tomou emprestada a estratégia interpretativa do primeiro monofelista — que os relatos diferentes sobre encontros com gatos são devidos a erros de percepção e interpretação — e a aplicou de um modo que é ao mesmo tempo mais lógico e mais justo do que o apelo especial do primeiro morador da vila. Seria igualmente possível, embora algo paranóide, sustentar que todas as alegadas atividades de gatos fossem realmente o trabalho de sinistros ratos de esgoto, como na visão do morador #2; seria também possível estender a visão da terceira moradora e sugerir que todos os avistamentos de gatos sejam percepções e interpretações parciais e distorcidas de algum gato real cuja natureza e aparência não combinassem com nenhum dos relatos das testemunhas. O problema com a teoria do afelista, ou com qualquer dessas teorias, é que elas são não-falsificáveis e auto-referentes; mesmo que a vila estivesse fervilhando de gatos, seria possível, usando o mesmo argumento, que o afelista insistisse que todos eles sejam percepções errôneas de fenômenos não-felinos (ou algo assim).
E a velha da cabana? Ela é uma polifelista, que acredita na existência de mais de um gato. Sua explicação é a única que dá conta de todas as evidências, e tem o benefício adicional de poder responder a mudanças na situação. Quando se está aberto à existência de múltiplos gatos, pode-se notar e interpretar corretamente fatos sugerindo que outro gato chegou à vizinhança ou que um dos gatos existentes a deixou. A polifelista também tem a vantagem de poder ter a companhia de mais de um gato, se ela assim o quiser.
A transição entre essa analogia algo extensa e a situação realmente discutida aqui é razoavelmente direta, e o argumento subjacente pode ser formulado assim:
1) Pessoas diferentes relatam experiências do divino que são amplamente diferentes o bastante para sugerir a presença e atividade de diferentes seres divinos. Isso pode ser documentado facilmente ao se comparar os escritos de, digamos, místicos Cristãos aos dos xamãs da Sibéria ou os tantrikas Hinduístas. Embora existam algumas similaridades de experiência, as diferenças entre os seres divinos experimentados por essas pessoas são radicais o bastante para fazer com que a assumpção da unidade divina seja difícil de sustentar de qualquer modo mais direto; é difícil achar um jeito fácil de igualar Jesus, Kali, e um lobo-espírito.
2) Experiências humanas do divino são diferentes das opiniões humanas sobre o divino, do mesmo modo que a experiência de qualquer objeto ou evento difere das teorias sobre a natureza do evento. A validade da teoria depende de sua reflexão acurada da natureza e detalhes da experiência. Se um meteorologista teoriza que amanhã irá chover, e no dia seguinte o céu está limpo e nem uma gota de chuva cai, é a teoria do meteorologista que está errada, e não o clima! Do mesmo modo, credos religiosos, teologias, e outros materiais teóricos são diferentes da experiência religiosa e dependentes desta, e se a teoria difere da experiência, a teoria pode e deve ser julgada como inadequada e/ou imprecisa.
3) As religiões monoteístas afirmam a primazia de um deus e insistem que outros deuses são não-existentes, ou seres inferiores, ou percepções e relatos mal-percebidos do verdadeiro deus. No entanto, existem muitas religiões monoteístas diferentes, todas elas fazendo as mesmas afirmações nas mesmas bases. Todas essas afirmações, no entanto, são baseadas em apelos especiais de um tipo ou outro, e todas são não-falsificáveis–ou seja, não há modo possível dentro de um contexto Cristão de alguém chegar à conclusão de que Allah é na verdade o único deus verdadeiro, nenhum modo dentro do Islã para chegar racional ou experiencialmente à divindade de Jesus, e por aí vai. Essas afirmativas, sendo não-falsificáveis, são inúteis como hipóteses lógicas, e sendo idênticas e mutuamente contraditórias, efetivamente negam uma à outra.
4) As afirmativas feitas pelo ateísmo são simplesmente uma aplicação dessas mesmas afirmativas a todas as religiões, ao contrário de aplicá-las a todas exceto à sua própria. Como as afirmativas da religião monoteísta, as do ateísmo são não-falsificáveis, e assim são igualmente inúteis como hipóteses lógicas. Também pressupõem algum tipo de mecanismo explicativo complexo que produz a ilusão de contato humano com uma variedade de divindades, sem apresentar uma descrição adequada desse mecanismo ou argumentos adequados a favor de sua realidade e aplicabilidade universal à experiência religiosa.
5) Resta o ponto de vista do politeísmo, que descreve adequadamente a evidência da interação humana com uma variedade de divindades; assume a evidência do contato humano com divindades diversas como se apresenta, e propõe que parece existir uma variedade de divindades diversas porque realmente há uma variedade de divindades diversas. Essa é a explicação mais simples que realmente dá conta dos fatos, e assim é preferível pelo princípio da parcimônia; além disso, não requer apelo especial, não pressupõe mecanismos explicatórios, e não exige um modo de classificar relatos de experiências religiosas para chegar a um método para aceitar certos relatos de experiências divinas e rejeitar ou redefinir outros. Além disso, é uma hipótese falsificável, desde que se as pessoas parassem de ter experiências religiosas, ou começassem a ter experiências de um único deus, então seria razoável assumir que as condições mudaram e a hipótese do politeísmo já não poderia mais ser sustentada.
O politeísmo é assim uma hipótese mais razoável do que o monoteísmo ou o ateísmo, e portanto pode ser considerado o mais lógico ponto de partida de qualquer discussão futura sobre a natureza da experiência religiosa e dos seres divinos. QED!(**)
…Ufa. Pausa para o almoço; me digam o que acharam disso. O argumento ainda precisa ser trabalhado, mas acho que as bases são razoavelmente sólidas.
Sob os carvalhos infestados de gatos,
John Michael Greer.
(*) – em Inglês, “afelist” rima com “atheist”, ateu; infelizmente, a rima se perde na tradução…
(**) – quod erat demonstrandum, “como se queria demonstrar”.
Original: http://www.ramodecarvalho.com.br/artigos/um-argumento-pro-politeismo/
Nota: asteriscos por conta da fonte original.
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