sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Meu daimon

Cipriano estava chegando próximo da idade em que ele deveria pegar seus brinquedos e oferecer no templo de Juventas, cortar o cabelo e trocar sua túnica. Seu pai, Tertuliano, o havia ensinado como honrar os ancestrais, como ofertar aos Penates, como ofertar aos Lares e como adorar o Deus de sua Gens. Sua mãe o ensinou igualmente como ver, ouvir e falar com os espíritos e gênios locais. Seu pai era totalmente romano, patrício filho de patrício, sua mãe era romana por cidadania escolhida, ela era etrusca. Cícero herdou as crenças de Roma e da Etrúria. Vivendo entre o norte e o sul, entre a urbes e a villae, Cícero não se sentia ambientado em nenhum dos mundos.
– Cipriano meu filho, para honrar seus ancestrais e prestar o devido culto aos Deuses, que tal irmos à casa da vovó? Ali naquela cidade existe um lugar que dizem ser próximo do Orco. Com ajuda de sua avó, podemos pedir aos nossos ancestrais e Deuses que te concedam um daemon.
– Que bom, mamãe! Ali na casa da vovó eu me sinto mais à vontade. Mas eu notei que ela não faz nem suas oferendas, nem as do papai.
– Isso porque, Cipriano, sua avó segue uma crença campesina, uma crença muito antiga que provavelmente existia antes dos Etruscos e Romanos.
– Podemos ir agora? Eu estou cansado de não me encaixar em lugar algum.
– Cipriano, você não devia se preocupar com isso. Você ainda é jovem, mas caixas foram feitas para guardar coisas, não pessoas.
Tertuliano, o pai de Cipriano, tomou-o em mãos e foram se arrumar. Uma caravana de comerciantes persas passaria em breve por Nabância e com sorte conseguiriam um bom assento para ir a Saragoza.
– Querida, melhor levar Cipriano hoje mesmo. Estamos próximo das calendas de Lemúria, o dia está propício para ofertar aos ancestrais e pedi-los por um daemon para nosso garoto.
Leucótea, a mãe de Cipriano, concordou e o garoto foi alegremente arrumar-se para ver sua avó.
Cipriano chegou com seus pais na cidade de Zaragoza, onde foram recebidos por um tio de segundo grau que os levou até a Nona Guardia, como a avó de Cipriano era conhecida. Inquieto, Cipriano chamou de longe sua avó.
- Nona! Nona!
- Eu vou agora mesmo! Cipriano! Que bom destino te traz aqui?
- Boa tarde, dona Serena, eu trouxe meu filho para que ele possa ter seu próprio daimon.
- Oh, que bom! Obrigada por confiar ele a mim, Tertuliano.
- Leucótea vem em seguida. A carruagem onde ela estava quebrou o eixo da roda.
- Então vamos todos arrumar a mesa, assim podemos todos comer assim que meu bebê chegar.
Foi o tempo de requentar a comida, arrumar a mesa, posicionar os pratos e talheres, abrir uma garrafa de vinho e cerveja e servir o assado que a mãe de Cipriano chega, senta e se serve. Depois de todos se alimentarem, esperaram o tempo da digestão conversando, fazendo piadas e música.
- Bono, bono! O sol se foi. Podemos ir até a Casa di Averno onde Cipriano poderá encontrar com alguns daemons. Eu espero que vocês tenham vindo com os preparativos.
- Mamãe! A senhora acha mesmo que eu iria esquecer a herança de nossa família?
- Ah, querida, muita coisa nós deixamos de lado quando vivemos nas urbes. Mas se vocês estiverem preparados, vamos andando.
Cipriano chegou acompanhado de seus pais e sua avó na Casa di Averno, uma gruta na base das Estepas de Belchite, cuja entrada era resguardada por colunas, arcos, muros e outras construções em ruínas. Diante de uma ara, onde resquícios de muitos rituais repousavam ao redor, dona Serena, chamada Nona Guardia, colocou um cálice de porcelana, duas velas e um incensário. Tertuliano cuidou de amarrar um carneiro jovem. Leucótea cuidou da bacia de oferenda e de manter a pira acesa. A avó de Cipriano entoou um cântico em uma língua desconhecida, mas que soava familiar para a alma do jovem.
– Agora, queridos, chamem pelos seus ancestrais. Depois nossos ancestrais trazem os daemons e Cipriano escolhe ou sente aquele que for mais adequado a ele.
Tertuliano entoou os nomes de sua descendência até a sétima geração. Não demorou para aparecerem muitos dos fantasmas com seus daemons. Leucótea entoou os nomes de sua descendência até a sétima geração. Não demorou para aparecerem muitos dos fantasmas com seus daemons.
– Agora é contigo, Cipriano. Olhe bem, sinta, escolha.
Cipriano andou por entre figuras tão distintas, alguns daemons pareciam guerreiros grandes e poderosos, outros pareciam antigos sábios e doutores. Andou até a beira da gruta e, ali escondido na sombra, ele viu pequenos olhos vermelhos. Como se tivesse sido chamado, Cipriano aproximou-se para ver de quem eram tais olhos. Viu uma criatura pequena, acanhada, coberta por um longo e grosso pelo negro. Sentindo compaixão, Cipriano tentou conversar com a criatura.
– Olá, meu nome é Cipriano. Você veio com alguém? Você está sozinha? Eu gostaria que você fosse meu daemon, se você aceitar.
A criatura olhou espantada para Cipriano. Então se ergueu, mostrando que era apenas um pouco menor do que Cipriano e parecia ser uma garota muito peluda. Chegou perto, olhou, cheirou, pegou no cabelo de Cipriano, tocou em seu braço.
– Kelek gosta jovem humano. Kelek fica jovem humano.
Cipriano voltou alegre para seu lar, acompanhado de Kelek, que observava tudo com curiosidade e interesse. Anoitecia, então Cipriano tratou de trocar suas vestes, quando se lembrou que agora tinha uma companhia.
– Kelek, você se importa se eu trocar de roupa?
– Kelek não sabe o que é roupa.
– Esse pano que uso por cima do meu corpo. Eu tenho que tirar esse e colocar outro.
– Trocar de pele? Muito trabalho. Kelek vive e dorme com mesma pele.
– Então Kelek não vai ficar envergonhada ou brava comigo se eu “trocar de pele”?
– Kelek quer ver mestre trocando pele.
Meio envergonhado, Cipriano tira sua túnica que usa durante o dia e coloca pouco mais que uma faixa ao redor dos quadris. Kelek não deixa de observá-lo, com atenção, curiosidade e interesse.
– Corpo do mestre bom, forte. Não tem pelo. Tem apenas um pedaço pendente. Corpo do mestre bom.
– Ahm…você deve estar falando do meu trabuco, Kelek. Não era para você ver. Eu fiquei envergonhado.
– Trabuco do mestre? Kelek viu muitos trabucos no Orco. Kelek gosta mais trabuco mestre. Por que mestre envergonhado? Trabuco bom.
– Eu fui educado assim Kelek. A moral diz que eu só posso mostrar o meu trabuco apenas para a garota que eu estiver amando.
O daemon feminino ficou com sua negra pelagem eriçada e seus rubros olhos brilharam. Cipriano acha que viu um rubor na face de Kelek.
– Mestre gosta de Kelek? Kelek gosta mestre. Kelek mostra sua concha para mestre.
A criatura afasta algumas mechas do seu pelo na parte íntima revelando uma entrada tão normal e comum como de qualquer garota humana. Cipriano tem a reação que qualquer homem teria em ver as partes íntimas de uma mulher. Tendo o corpo nu, a ereção ficou ainda mais evidente. A criatura observa, com atenção especial.
– Mestre quer concha Kelek? Kelek quer trabuco do mestre. Mestre quer amar Kelek?
Apesar do recato e da vergonha, Cipriano vivia em um tempo feliz onde o contato físico entre homem e mulher era algo normal, natural e saudável. A criatura parecia muito uma garota peluda. Cipriano fez aquilo que parecia inevitável. Deitou-se em seu catre e chamou Kelek para compartilhar o leito com ele naquela noite.
Cipriano acordou no dia seguinte com Kelek aconchegada ao seu lado. Sua cama estava bem bagunçada e com sinais de que ele teve um contato bem íntimo com Kelek. Sentindo seu corpo dolorido, com arranhões e mordidas, Cipriano levantou, sentindo as pernas bambas, mas decidido a ir à cozinha para o café da manhã, sacudiu Kelek.
– Oi Kelek. Bom dia. Vamos tomar banho antes do café?
– Banho? Kelek não sabe se banho é bom.
– Venha comigo. Você vai gostar.
Curiosa e interessada que Kelek era em aprender tudo sobre os hábitos humanos, ela segue Cipriano até uma banheira escavada em um tronco de árvore. Cipriano pega água do fogareiro e põe na banheira, completando com água tépida dos vasos. Em seguida, pega o sabão, tira a túnica e entra na banheira.
– Venha! A água está ótima!
Kelek olha com um pouco de desconfiança, aproxima, toca a superfície da água com seus dedos. Cipriano oferece um pouco de sabão para ela cheirar, para tentar tranquilizá-la. Kelek abre um sorriso e pula dentro da banheira.
– Banho bom. Sabão cheiroso.
Conforme se banham e se esfregam, as brincadeiras acabam provocando outra ereção em Cipriano que é imediatamente aproveitado por Kelek. Inclusive com arranhões e mordidas. Quando acabaram, Cipriano saiu primeiro e mostrou a Kelek a toalha para se secar, pente, perfume. Kelek imitava tudo o que Cipriano fazia e sorria satisfeita.
– Agora nós podemos comer o café da manhã.
– Kelek com fome.
Leucótea, a mãe de Cipriano gostou de ver seu filho e seu daemon se darem tão bem. Colocou na mesa bastante leite, pão, queijo, presunto, biscoitos. Cipriano comia, Kelek imitava.
– Queridos, assim que acabarem não esqueçam que hoje o Cipriano tem que ir ao templo de Juventas para ofertar seus brinquedos e sua velha túnica.
Cipriano arrumou-se com sua melhor túnica e saiu à rua, acompanhado de Kelek, que andava com seus quatro membros ao lado de Cipriano, sem roupas humanas, com todo aquele pelo negro ela mais parecia um cachorro grande. Alguns velhos praguejavam nas esquinas dizendo que um cachorro deveria andar com coleira. Cipriano não atinava, pois para ele Kelek era uma garota peluda.
Diante do templo de Juventa Cipriano encontrou Helena, uma amiga de infância. Ela ficou assustada com Kelek, mas gostava muito de Cipriano. O convidou para uma conversa particular. Cipriano levou Kelek porque ele não queria que tivesse segredos entre eles.
– Cipriano, hoje nós entramos para a vida adulta. Eu queria que soubesse que eu te amo. Aceite-me como sua mulher.
Helena abriu seu roupão mostrando seu corpo jovem em formação, os quadris curvilíneos, os seios firmes e suas coxas esculturais como colunas e seu arbusto de pelos negros. Cipriano gostava de Helena também e teve a reação que qualquer homem teria diante da nudez de uma mulher. Kelek nada disse, apenas observou curiosa. Saindo do templo, Apolônio, um rival de Cipriano, que trabalhava com os estranhos sacerdotes do Deus Cadáver, não gostou de ver Helena entregando-se a Cipriano. Ignorando a presença de Kelek, o empurrou com força.
– Saia daqui, Cipriano! Você ainda é criança! Helena deve ter um homem! Saia daqui e leve esse seu cachorro feio!
Kelek não gostou de ver seu mestre machucado. Colocou-se em pé, sobre suas pernas e esmurrou Apolônio, jogando-o longe, para o outro lado da rua. Helena, assustada ao ver Kelek sobre duas pernas, como humanos, saiu correndo. Cipriano olhou para a cena, mas não repreendeu Kelek.
– Venha, Kelek, nós temos que entrar no templo de Juventa. Eu quero ser homem.
Ambos entraram no templo, sem que os sacerdotes protestassem com a presença de Kelek. 
Diante da estátua de Juventa, Cipriano ofertou seu brinquedo mais querido, sua velha túnica e seu cabelo cortado e enfaixado com uma fita vermelha. Kelek observou em silêncio e com respeito. Assim que saíram, Kelek resolveu falar.
– Mestre é homem. Desde que nasceu, mestre é homem. Kelek não entende templo. Vazio. Mestre deve ofertar a alguém presente. Kelek gosta mestre. Pode ensinar a evocar Deus. Mestre ama Helena? Kelek tem mesma coisa que Helena. Kelek pode cortar pelo como mestre fez.
Usando suas garras, Kelek desbasta seu pêlo até restar uma cabeleira sobre sua cabeça e uma touceira entre suas pernas. Cipriano ruborizou ao ver Kelek, idêntica a uma garota.
– Kelek, se quer andar como humanos, deve usar uma segunda pele, como eu. Vamos, eu acho que podemos achar uma túnica feminina para você no templo de Juventa.
Andaram ao redor do templo de Juventa e encontraram, como se fosse uma benção da Deusa, uma toga feminina aos pés da estátua da Deusa. A toga milagrosamente serviu perfeitamente para Kelek. Cipriano ficou feliz em ver Kelek parecer mais humana, mas achou por bem não fazer pouco dela em dizer que aquele era um presente de Juventa.
Quando Cipriano chegou em casa com Kelek transformada a mãe dele, Leucótea, estranhou mas ficou feliz por Cipriano finalmente trazer uma garota para casa, para ser apresentada à família.
– Filho, quem é essa formosa dama?
– Mãe, essa é a Kelek!
– Nossa, como você mudou! Se você quiser, Kelek, eu tenho algumas túnicas que podem servir em você.
– Kelek gosta segunda pele. Kelek aceita oferta de senhora.
Tertuliano chegou vendo a cena inusitada na mesa de jantar, com sua esposa conversando com uma garota que ele nunca tinha visto antes e Cipriano.
– Ora, ora! Cipriano mal fez os votos no templo de Juventa e está trazendo sua namoradas para casa? Quem é a garota, Cipriano?
– Pai, essa é a Kelek!
– Entendo. Filho, você gosta de Kelek?
– Sim, meu pai.
– Kelek, você gosta de Cipriano?
– Kelek gosta muito de mestre.
– Nesse caso, eu lhes dou minha benção. Meu amor, precisamos combinar um dia para unir os dois diante de Juno. Cipriano e Kelek, sejam muito felizes juntos!
Cipriano acordou no dia seguinte, dolorido, mordido, arranhado. Na primeira vez sentiu medo, mas agora estava ficando acostumado e ele também começou a arranhar e morder Kelek. Ele percebeu algumas mudanças em seu corpo e em seu apetite. Enquanto Kelek ressoava, satisfeita, cabelos desgrenhados, arranhada, mordida e preenchida com a seiva de Cipriano, este desceu e foi preparar o café da manhã. Ambos ainda moravam com os pais de Cipriano, mas o jovem fez questão de fazer ele mesmo o desjejum e levar até a cama onde Kelek ainda dormia.
– Ei, dorminhoca! Bom dia! Acorde para tomar o café da manhã.
Com preguiça, Kelek ergue o corpo da cama, esfrega os olhos e vê uma mesa móvel com um prato com queijo, frutas, presunto, pães e vinho. Sorriu e foi se servindo, sem esquecer de deixar Cipriano se servir.
– Mestre alimenta Kelek. Mestre bom.
– Kelek, nós vamos viver juntos não como mestre e daemon, mas como homem e mulher. Então, por favor, pare de me chamar de mestre. Eu não sou seu dono. Nunca fui. Você me aceitou como seu parceiro e eu te aceitei como minha parceira. Nós somos iguais.
Kelek parou de comer, até engasgou-se e Cipriano custou a crer que a via ruborizar.
– Kelek tem medo. Mestre pode não gostar de Kelek. Kelek diferente de mestre. Kelek tem outra face que mestre não viu.
Um barulho e uma confusão na rua chamou a atenção do jovem casal. Era Apolônio, com um grupo de sacerdotes do Deus Cadáver, causando tumulto e briga com os vizinhos, tudo por causa de Cipriano e Kelek. Para os sacerdotes do Deus Cadáver, tudo que for diferente do que crêem ou diferente do que conceituam como Deus, eles dizem que é maligno. Cipriano era chamado de bruxo e amante do Diabo. Kelek era chamada de filha de Satan. Para defender seus pais e a sua casa, Cipriano desceu e enfrentou os agressores, homens fortes e armados, que não tiveram misericórdia ou compaixão, atacaram e feriram Cipriano.
A ferida não era muito profunda ou forte, mas o impacto fez com que Cipriano ficasse desacordado e sangrando. Kelek viu seu amado caindo no chão, desacordado. Ela então liberou toda sua fúria. Em instantes, aumentou de tamanho, seus pelos cobriram novamente seu corpo, chifres e garras apareceram. Muitos dos sacerdotes caíram feito moscas, suas vidas ceifadas de muitas formas, mas outros tinham um aparato que os deixava protegidos do ataque de Kelek e podiam atacá-la. O aparato era um artefato místico que havia sido consagrado pelas artes da Goecia, magia negra e apenas isto podia machucar Kelek. Os sacerdotes também não tiveram misericórdia ou compaixão, por Kelek, na verdade, tiveram muito prazer em atacá-la e machucá-la. Kelek também caiu ao chão e estava entregando sua vida aos Senhores do Orco quando Cipriano ressurgiu, avançou, desafiou e venceu os sacerdotes, quebrando os artefatos que carregavam.
– Kelek, eu vi sua outra face. Eu te acho linda em todas as suas faces. Agora que eu não sou mais humano, Kelek vai me aceitar como seu marido?
Kelek ficou constrangida. Ela não havia percebido o quanto Cipriano havia mudado. Ambos tinham dormido juntos, feito amor juntos, morderam-se, arranharam-se, lamberam o sangue um do outro. Cipriano nunca havia pertencido a mundo algum, agora ainda mais, pois tornara-se um ser que vivia no limiar entre humano e daemon.
– Kelek aceita Cipriano como marido.
Uma semana depois, celebraram a sua união, na entrada da mesma caverna onde se conheceram, abençoados por sacerdotes humanos e sobre-humanos. Naquele dia, todas as igrejas dos sacerdotes do Deus Cadáver ficaram em chamas e a região inteira ficou livre de tal praga.

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