Documentos mostram como a Igreja saiu à caça de feiticeiras em São Paulo no século XVIII
Por Sandra Boccia
O Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo é um tesouro histórico conhecido por poucos. Protegidos do pó em estantes de cedro, 9 000 processos cíveis e criminais permitem rara olhada na intimidade da vida cotidiana em São Paulo, sul de Minas e Paraná entre 1632 e 1856.
Em meio a 10 milhões de registros de batizados, aparece o de Maria Izabel de Alcântara Brasileira, em 24 de maio de 1831. Supõe o historiador Jair Mongelli, chefe do arquivo, que se trata da filha ilegítima de dom Pedro I e Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos. "O nome está grifado", nota.
Há também processos de adultérios, concubinatos, sacrilégios, sodomia, sexo com animais e até mesmo de promessas de casamento não cumpridas. Preso em 1765, um certo Manoel Rodrigues Jordão justificou a dispensa de Joana Machado de Siqueira alegando que a moça não tinha dentes, dinheiro ou formosura. Um fiel da paróquia de Guarulhos, hoje município da Grande São Paulo, foi acusado de ter ouvido missa "vestido de mulher" em 1744. No decorrer do processo, descobriu-se que "o menor" Joaquim José não tivera a intenção de se passar por travesti. Tão pobre que não tinha o que vestir, ele improvisou com roupas de suas irmãs. Acabou absolvido.
Páscoa era uma escrava paulistana que usava pedacinhos de unha, fios de cabelo e excrementos humanos para enfeitiçar e matar. Depois de fazer um pacto com o demônio, ela tornou-se uma espécie de serial killer do século XVIII, matando cinco pessoas.
Essa história fantástica consta dos autos da investigação sobre seus crimes, da qual a Justiça Eclesiástica de São Paulo se ocupou durante dez meses. Finalmente, em 30 de julho de 1750, o juiz assinou a sentença: o caso deveria ser encaminhado à Inquisição, em Portugal. O destino de Páscoa nas mãos do Santo Ofício, que costumava condenar bruxas à morte na fogueira, ainda é um mistério. Processos recém-redescobertos nos arquivos da arquidiocese mostram que entre 1749 e 1771 nove mulheres (Páscoa entre elas) e quatro homens foram acusados de feitiçaria em São Paulo.
Salvos de um incêndio e esquecidos por décadas dentro de um baú de metal, esses documentos inéditos revelam episódios sombrios e pouco estudados da História nacional: a caça às bruxas conduzida pela Igreja Católica há mais de 200 anos.
"Trata-se de uma descoberta revolucionária", diz a historiadora Mary Del Priore, professora de história do Brasil colonial na Universidade de São Paulo, USP. "Essa documentação serve para iluminar um território que ainda continua nas sombras."
Os treze processos por feitiçaria, manuscritos em delicada fibra de pano e carcomidos pelo tempo, mostram como as autoridades eclesiásticas brasileiras seguiam à risca a cartilha da Inquisição portuguesa. Do século XVI ao XVIII, o Tribunal do Santo Ofício puniu com severidade qualquer suspeita de desvio em relação à doutrina católica, incluindo aí a magia. Nunca chegou a se estabelecer na colônia brasileira e seus enviados especiais – os Visitadores – só estiveram nas capitanias prósperas como Bahia, Pernambuco e Grão-Pará.
Em São Paulo, na época um pobre aglomerado de sessenta ruas contornadas pelo Rio Tamanduateí e seu afluente, o Anhangabaú, a caça às bruxas ficou por conta do clero local. Num processo aberto em 1767, Isabel Pedrosa de Alvarenga, moradora de Santo Amaro, foi acusada por um dos espiões da Igreja (chamados de "familiares do Santo Ofício") de dispor de um saco de coisas abomináveis para exercer atividades diabólicas. Umbigos de crianças, bicos de pássaros, cabelos e panos ensopados em sangue eram o tesouro desta mulher que vivia de esmolas e jamais admitiu ser uma bruxa. As acusadas eram normalmente pobres coitadas como Isabel, mais preocupadas com o sustento do dia-a-dia do que em prejudicar alguém.
Eram parteiras, lavadeiras de mortos, benzedeiras, curandeiras e adivinhas – típicas profissões femininas da época. "O próprio saber feminino era visto como bruxaria", diz a historiadora Eliana Rea Goldschmidt, do Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina da Universidade de São Paulo. A primeira leitura dos documentos – de difícil compreensão devido ao português arcaico e à deterioração do papel – foi feita pela historiadora a pedido de VEJA.
As regras do Arcebispado da Bahia, editadas em 1707 numa tentativa pioneira de adequar as diretrizes católicas à colônia tropical, puniam os praticantes de magia com multas, excomunhão e degredo na África. A definição de magia era vaga e podia incluir qualquer acontecimento incomum. Em 1749, por exemplo, a Cúria paulista enviou a Portugal os autos de acusação contra Patrício Bicudo da Silva, colono de Santana de Parnaíba. O que tinha sido apurado contra ele era a estranheza de "trazer consigo cobras vivas nas mãos sem receber lesão alguma". Num processo arquivado na Cúria, de 1771, Leonor de Siqueira e Moraes e sua filha, Ana Francisca, foram acusadas de usar "líquido menstrual" para transformar Manoel José Barreto, marido de Ana, num "pateta".
O exílio no Brasil foi pena comum imposta às feiticeiras portuguesas. Isso encheu a colônia de benzedeiras e milagreiras. Apesar da quantidade de autos-de-fé em Lisboa, as cerimônias em que se queimavam hereges, a caça às bruxas foi mais branda em Portugal do que em outros países europeus, como a Alemanha. Todo o continente vivia assombrado por bruxarias.
A conclusão dos processos encontrados no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo pode estar nas montanhas de papel armazenadas na Torre do Tombo, que guarda os documentos coloniais em Lisboa. Ou em lugar nenhum. Se Páscoa ou outras bruxas paulistas arderam nas fogueiras é, por enquanto, uma pergunta sem resposta.
Fonte: Iberia Eterna
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