sexta-feira, 23 de março de 2012

Androginia sagrada

A liberdade sexual e a indefinição das fronteiras de gênero podem provocar o ódio daqueles cujas crenças são desafiadas [pg 21]
Inanna apareceu como Guerreira, como Alta Sacerdotisa, como Amante. Agora Inanna abraça e cria um ritual específico honrando o aspecto cerimonial para as pessoas com identidade de gênero ambíguo.
Enheduanna descreve uma garota no poema "Dama de Grande Coração" usando uma palavra em Sumério que significava "o vigor de um jovem em seu ápice". A palavra "formoso/a" traduz melhor o significado transgênero, particularmente quando nós lemos e entendemos o contexto da situação. A garota no poema, por causa de sua aparência masculina, carrega o mesmo ostracismo em Sumer que muitos andróginos ainda carregam
A androginia cerimonial tem uma longa história. Na Mesopotâmia, as pessoas do tempo envolvidas na adoração da deusa são frequentemente descritas em textos literários relacionados aos rituais do templo como andróginos ou sexualmente ambivalentes, eunucos, hermafroditas ou travestis. Nos tempos modernos, algumas culturas indígenas americanas tem um espaço para a manifestação sagrada do transgênero.
As sacerdotisas e os sacerdotes transgêneros têm a habilidade de trespassar, de revelar duas palavras essencialmente diferentes uma da outra. Nessa transgressão, a unidade original da criação do mundo é revelada.
O lugar do chamado terceiro sexo no ritual tem sido observado por séculos. Os galli greco-romanos eram chamados de tertum sexus - representantes de um terceiro gênero. Will Roscoe cita "a violação das fronteiras sociais, especialmente aquelas fundamentais para a vida diária, como macho e fêmea, rompe com a realidade fabricada aos que testemunham isto".
As pessoas de gênero ambíguo atuavam dentro dos limites do ritual do templo. Assim contidos, o rompimento da realidade fabricada permitia aos cultuadores contemplarem a fragilidade de suas realidades construídas e dar espaço à instabilidade dentro de seu mundo predominantemente previsível.
Enheduanna nos traz diante da androginia de Inanna. Inanna representa a total expressão de todo o escopo das possibilidades da identidade da mulher. Este escopo inclui uniões do mesmo sexo. Inanna é livre para viajar pelo cenário de sua sexualidade, deleitando-se ao máximo com cada aspecto. Ela sanciona a sexualidade em suas várias formas como a força da vida propriamente dita. Suprimir uma expressão viável da sexualidade, como uniões do mesmo sexo, seria contrário à vida para Inanna e iria contra a força criativa de sua natureza.
Os aspectos rituais da androginia conectam-se ao propósito sagrado de transgredir para revelar o outro lado, de pertencer a mais de um mundo. Esta transposição espiritual era mais facilmente atravessada pelos andróginos do templo porque eles já haviam atravessado as fronteiras tradicionais da definição de gênero.
Inanna inventa o ritual do nada. Ao fazê-lo ela conecta a definição ambígua de gênero a um arquétipo sagrado. O arquétipo nesse caso é a habilidade inata de atravessar fronteiras, de viajar entre os mundos consciente e inconsciente. Inanna declara o gênero ambíguo um dom dos deuses e dá à sacerdotisa e ao sacerdote recém iniciados um propósito ou um ofício específico no culto do templo.
Inanna os renomeia como mulher caniço e homem caniço. Os caniços que são onipresentes na margem do brejo dos rios de Sumer definem o espaço entre o terreno sólido e o fluxo da água do rio. Inanna nomeia seus novos sacerdotisa e sacerdote por esse trecho de terreno intermediário, um espaço transitório da água para a a terra, para identificá-los como pessoas que são capazes de viver no espaço entre mundos, margeando o consciente e o inconsciente.
Inanna puxa os fios de sua teia. Ela é quem tem o poder de mudar homem em mulher, mulher em homem, aquela que tem o poder de situar estes queridos por ela firmemente em seu domínio sagrado, seja sua sacerdotisa, guerreira, amante, andrógina.
"Inanna, Lady of Largest Heart", de Betty De Shong Meador, University of Texas Press, pg 162-167.

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