E porque o dia dois do corrente é Dia dos Mortos, aqui vai um tesouro da mais profunda e eventualmente arcaizante tradição popular portuguesa:
Procissão dos defuntos
Em Ponte de Lima, há «procissão de defuntos». Nestas procissões vai sempre «um vivo», que é a pessoa que primeiro tem de ser sentenciada à morte. O espectador da procissão tem de voltar-lhe as costas, quando ela passar diante dele.
Uma rapariga que tinha de ir regar um campo muito cedo, passou por diante da Igreja e vendo que se estava à missa, deu parabéns à sua fortuna e entrou, indo ajoelhar entre as outras mulheres. Estas começaram a olhar umas para as outras e a rosnar «aqui cheira a fôlego vivo»! Uma das mulheres levantou-se, aproximou-se da rapariga e disse-lhe: «O que te valeu foi vires ajoelhar na campa de tua madrinha, que sou eu. Vai-te e não olhes para trás!» A rapariga saiu, mas não resistiu à curiosidade e olhou para trás. Viu muitas fogueiras a arder. Eram as almas das pessoas, porque se não tinham dito missas (Guimarães).
Uma mulher indo de noite para certo sítio encontrou uma procissão de defuntos que vinha na sua direcção. Escondeu-se logo na croca (oco) de um carvalho. A procissão passou por diante dela e a mulher viu no préstito um filho seu que morrera anjinho, e que ia «com a tocha apagada». E o filho passando por diante da mãe, disse: «Arreda-te, carvalho croquento, que por causa das tuas lágrimas é que eu vou com a luz apagada.» (Louredo).
As almas dos mortos andam pela rua à meia-noite em procissão com luzes acesas. Se alguém por desgraça vai ter com aquela procissão e lhe pede lume, morre infalivelmente. (Lavadores - São Cristóvão de Mafamude).
O abade de Mondanedo de Lugo estava uma vez sentado à beira de uma igreja e viu vir uma procissão de defuntos, todos vestidos de branco, com um esquife diante de si e alumiando com os ossos acesos (sic). (Lugo - Galiza).
Uma pessoa antes de morrer já se vê sete anos antes na «procissão dos defuntos». A procissão dos defuntos faz-se todos os dias às trindades; ninguém a vê senão as pessoas que têm uma palavra de menos no baptismo (sic). E estas são as que sabem as pessoas que hão-de morrer, porque as vêem na procissão. Por isso se diz, quando uma pessoa anda doente: «ah! Fulana (a tal que tem de menos a palavra no baptismo [?]) já há muito tempo que a vi na procissão dos defuntos. (Valença).
O Sr. Leite de Vasconcelos no seu recente e interessante livro nada nos diz sobre tal assunto (vide Tradições Populares de Portugal, pág. 301-3) e o Sr. Adolfo Coelho apenas muito vagamente se refere às procissões de defuntos, não mencionando lenda alguma a tal respeito (vide Revista de Etnologia e de Glotologia, fasc. IV, pág. 163). Para estas procissões, veja-se Afaniev: ob. cit., III, 244 e seg.; e sobretudo Grimm: Deutsche Mythologie, II, 765 e seg.. A «procissão dos defuntos» é uma variante da lenda do Wütendes Heer, o Feralis Exercitus de Tácito, a Arma Coelestia de Plínio. É esta a variante cuja acção se passa na Terra; enquanto noutras versões é no céu ou nas nuvens que tem lugar.
Desta segunda variedade importantíssima temos também uma lenda portuguesa moderna e várias superstições que a ela se referem. A superstição é antiga na Península, onde o Wütendes Heer tinha o nome de Exercitum Antiquum (Exército Antigo). Cf. Grimm: Deutsche Mythologie, II, 785. Cf. ainda Afanasiev: ob. cit., I, 725.
In Contribuições Para Uma Mitologia Popular Portuguesa e Outros Escritos Etnográficos, de Consiglieri Pedroso, págs. 281-3, Publicações Dom Quixote.
Fonte: Gladius
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