Até o fim do paganismo, o culto privado - dirigido pelo pater familias - manteve sua autonomia e importância ao lado do culto público, efetuado por profissionais subordinados ao estado Ao contrário do culto público, que sofreu contínuas modificações, o culto doméstico, realizado em volta do lar, não parece ter mudado muito durante os 12 séculos da história romana. Trata-se certamente de de um sistema cultural arcaico, pois é encontrado em outros povos indo-europeus. Tal como na Índia ariana, o fogo doméstico constituía o centro do culto: eram-lhe oferecidos sacrifícios alimentares quitidianos, flores três vezes por mês etc. O culto endereçava-se aos penates e aos lares, personificações mítico-rituais dos antepassados, e aos genius, espécie de "duplo" que protegia o indivíduo. As crises deflagradas pelo nascimento, pelo matrimônio e pela morte exigiam ritos de passagem específicos regidos por certos espíritos e divindade menores. A cerimônia religiosa do casamento processava-se sob os auspícios das divindades ctonianas e domésticas e de Juno com protetora do juramento conjugal, e comportava sacrifícios e passeios ao redor do lar.
Os ritos funerários, que terminavam no nono dia após o enterro ou inumação, prolongavam-se no culto regular dos "pais defuntos" (divi parentes) ou manes. Duas festas eram-lhe consagradas: os Parentalia, em fevereiro, e os Lemuria, em maio. Durante as primeiras, os magistrados não ostentavam suas insígnias, os templos eram fechados, os fogos extintos sobre os altares, e não se contraía casamento. Os mortos retornavam à terra e se serviam do alimento depositado sobre os túmulos. Mas era sobretudo a pietas que apaziguava os antepassados (animas placare paternas). Como no antigo calendário romano fereveiro era o último mês do ano, ele compartia a condição fluída, "caótica", que caracterizava esses intervalos entre dois ciclos temporais. Estando suspensas as normas, os mortos podiam retornar à terra. Era ainda em fevereiro que se desenrolava o ritual dos Lupercalia, purificações coletivas que preparavam a renovação universal simbolizada pelo "ano-novo".
Durante os três dias dos Lemuria, os mortos (lemures) retornavam e visitavam as casas de seus descendentes. A fim de apaziguá-los e de impedir que arrastassem consigo alguns vivos, o chefe da família enchia a boca de favas pretas e, enquanto cuspia, pronunciava nove vezes as seguintes palavras: "Com estas favas redimo a mim e os meus." Finalmente, fazendo barulho com um objeto de bronze para amedrontar as sombras, repetia nove vezes: "Manes de meus pais,afastem-se daqui!" A recondução ritual dos ortos, depois de suas visitas periódicas à terra, é uma cerimônia amplamente difundida no mundo.
Lembremos também outro rito relacionado aos manes: a devotio. O ritual da devotio ilustra uma concepção arcaica do sacrifício humano como "homicídio criador". Trata-se, em suma, de uma transferência ritual da vida sacrificada em favor da operação que acaba de ser empreendida.
Desconhecem-se as representações do reino dos mortos próprias dos anitgos habitantes do Lácio; as que nos foram transmitidas refletem a influência das concepções gregas e etruscas. É muito provável que a mitologia funerária arcaica dos latinos fosse um prolongamento das tradições neolíticas européias. Por outro lado, as concepçoes do outro mundo compartilhadas pelos troncos rurais itálicos foram modificadas de modo bastante superficial pelas influências ulteriores, gregas, etruscas e helenísticas. Em contrapartida, os infernos evocados por Virgílio, o simbolismo funerário dos sarcófagos da época imperial, as concepções de origem oriental e pitagórica da imortalidade celeste se tornarão extremamente populares em Roma e nas outras cidades do império a partir do século I AC.
Autor: Mircea Eliade, em "História das Crenças e Idéias Religiosas II", pg 110 - 112, Editora Zahar.
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