Vivemos na era da individualidade, da evocação proverbial do ego.
Na verdade a crise financeira e económica que agora atravessamos transformou-se numa bem mais gravosa crise social, com a consequente crise de valores e de confiança que as próximas gerações lamentavelmente terão de atravessar.
Podemos culpar o sistema neo-liberal, o capitalismo, o terrorismo e muitos outros "ismos", mas o problema essencial reside em cada um de nós, enquanto seres humanos educados sob a égide católica, muçulmana, judaica, ateia, hindu ou outra qualquer. É na própria individualidade e na sua abstenção face a valores comuns a uma sociedade dita igualitária e fraterna, que reside o grande problema social actual.
O indíviduo passou a tomar conta de si pouco se importando com outrem: " Então? Como é que é? Tudo bem?" "Sim, vai-se indo". Quantas e quantas vezes ouvimos repetidas vezes estas expressões na nossa vida diária? Provavelmente dezenas de vezes. É verdade. Tornou-se um hábito mecânico, tal como acordar todos os dias à mesma hora para ir para o emprego ou lavar os dentes antes de deitar. É algo que dizemos ou fazemos institivamente, mas que não deixa de ter um certo condimento caricatural.
Não me proponho fazer uma análise geracional que sustente uma teoria sobre as contigências da vida social actual, mas para todo o efeito e com base no senso comum (que na maioria dos casos é o factor de maior peso na expressão das nossas opiniões), sinto que as gerações que me precederam tinham, de uma forma geral, uma série de valores quase intocáveis: a justiça, a amizade e a confiança eram pilares, que dificilmente eram abalados.
O companheirismo, e a entreajuda são hoje linhas ténues no horizonte. O Amor deixou de se espalhar para se concentrar, em nós próprios. Hoje não lutamos em conjunto contra uma injustiça, lutamos entre nós próprios porque queremos ser melhores, ter mais poder, mais influência. Hoje não me indigno contra o meu empregador por não me ter sido aumentado o salário segundo o decreto-lei nºxxx, porque tenho medo de sofrer represálias. Se o meu colega me fizer uma proposta para um abaixo-assinado a manifestar essa mesma indignação eu digo que vou pensar, mas acabo por não assinar.
Hoje seria impossível existir um movimento com a força de um Maio de 68 ou com a força dos movimentos populares e militares que derrubaram as ditaduras do séc. XX.
O perigo do sistema em que vivemos é que, ao contrário de uma ditadura, as forças do real poder são invisíveis e a invisibilidade torna-as imunes. Não existe um rosto, não existe uma figura ou várias a quem possamos apontar o dedo como pudemos (ou podemos ainda) com Salazar, Estaline, Hitler, Franco, Pinochet, Fidel ou Sharon...
O mundo encontra-se numa encruzilhada, mas nós cabisbaixos só pensamos no nosso projecto post-mortem. Isso mesmo, post-mortem. Aquilo a que nós hoje, cidadãos do mundo chamamos de projecto de vida nada mais é que a marca - mais ou menos ambiciosa - que pretendemos deixar cá, e com a qual queremos que sejamos lembrados depois da inevitabilidade da morte. Queremos ser lembrados no futuro por aquilo que fizemos no passado.
Na era da individualidade, aquilo que realizamos hoje será a marca de um passado que há-de vir ou não. Aquilo que projectamos para o futuro é a miragem do que poderemos ser depois de já cá não estarmos. Para nós, seres individuais que vivemos este tempo de crise a vida é um longo projecto post-mortem. No passado "colectivo" não terá sido assim. No futuro espero que também não.
Fonte: Rebuços Aleatórios
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