domingo, 27 de novembro de 2011

Deuses não são para serem interpretados

Eu encontrei uma curiosa reflexão na SW, por parte de Herne, sobre a estranha mania de pagãos/bruxos/wiccanos acharem que os Deuses são como livros, estão abertos a "interpretação".
A “interpretação” não é apenas um exercício racional, mas antes de mais nada uma postura cultural. Explico: interpretamos as coisas (fatos, histórias, ritos, atos, etc) a partir de um conjunto de idéias que já trazemos em nós. Esse conjunto é sempre dado pela sociedade em que somos criados e introjetados através da educação (formal e informal). Ou seja: a cultura nos dota com óculos através dos quais vemos o mundo (e que também nos faz cegos para o que não conseguem passar por eles). Esse é o principal desafio dos antropólogos e etnólogos: conseguir tirar esses óculos e tentar vestir os óculos da outra cultura para poder vê-la a partir de si mesma e, então, tentar uma tradução dos significados daquela cultura para uma linguagem da nossa cultura, tornando-a compreensível para nós.
O sagrado de um povo também sofre essa “deformação”: acabamos por olhá-lo com os óculos de nossa cultura e o INTERPRETAMOS a partir do nosso conjunto de idéias. Para nós, por exemplo, é estranho que hindus passem fome com aquele imenso rebanho de vacas... mas eles nos olham horrorizados pela na falta estupidez e selvageria por comermos carne bovina no cotidiano. Nós os INTERPRETAMOS como atrasados; eles nos INTERPRETAM como selvagens abomináveis. Muitos acham abomináveis os costumes religiosos africanos e afro-brasileiros de sacrificar animais aos seus orixás... eles acham engraçado (e estranho) como essas pessoas têm tanto medo da morte e não compreendem que a essência do animal sacrificado, longe de ser violentada, foi elevada.
Não creio que Baal, Lucifer, Lillith se “transforme” naquilo que as pessoas pensam deles. Eles são o que são. A questão está – como colocou o Rufus – na INTERPRETAÇÃO que se faz desses (e outros deuses) a partir de critérios éticos, morais, sociais... enfim, culturais por outros povos. E eles continuam interpretados como “maus, perigosos, não-confiáveis” não porque o são ou se tornaram, mas porque estão sendo olhados com óculos estranhos àquela cultura.
Deixa te dar um exemplo: Pachamama é INTERPRETADA pelos ocidentais como uma DEUSA. E, quando se usa esse conceito, se traz à consciência todas as características desenvolvidas pelas culturas daquela região do planeta. Muitos de nós, inclusive, ainda pensamos em Deuses e Deusas dentro daqueles mesmos critérios cristãos: seres onipotentes, onipresentes, oniscientes, que controlam ou têm poder para interferir na nossa vida, para o bem ou para o mal... e isso se traduz na instituição da monarquia e/ou da concentração (e, as vezes, centralização) de poder nas mãos de uma pessoa. Essa idéia para os povos indígenas sul-americanos é totalmente estranha. Pachamama, Inti, Ñanderu, Mama Quilla... não são “deuses”, mas Espíritos que não tem poderes, mas capacidades... como nós, humanos, também temos capacidades. Particularmente é estranha essa idéia de que eles podem intervir na nossa vida, sobretudo para castigar. No conceito guarani, um “deus” que faça qualquer tipo de mal a uma pessoa simplesmente não é um deus! E por “qualquer tipo de mal” não estou falando só do castigo, mas até das idéias de “lei tríplice”, “cagada mágica”, “trapaça”, etc. E tudo isso se traduz na falta de instituições e papéis sociais que concentrem poder.
Muitas vezes, estamos com os olhos tão viciados pela nossa própria cultura que simplesmente não conseguirmos ver nada além dela. E acabamos interpretando erroneamente as coisas. Inclusive, os Deuses de outros povos.
Quanto à questão do "trabalho mágico reunindo pessoas com visões diferentes sobre o(s) Deus(es) que serão celebrados"... há muita coisa a se pensar.
Primeiro: será mesmo que os Deuses atendem a qualquer "chamado"? De qualquer pessoa? Você atenderia? Digo: se um estranho passa por você na rua e, todo sorridente, te convida a ir numa festa na casa dele, você iria??? Se te oferecesse comida, você comeria??? Se te oferecesse flores, você aceitaria??? E de te pedisse "favores especiais", você atenderia??? Por que achamos que os Deuses são mais ingênuos que nós?
Baal, Lúcife, Lillith não são órfãos de povo! Eles fazem parte de um contexto e só nesse contexto eles podem ser entendidos a ponto de serem chamados de forma que eles próprios compreendam. E atendam. Há formas, ritos, rituais, simbolos, odores, cores, palavras, idiomas etc, etc que eles reconhecem como sendo do seu "grupo". E para se ter ciência de todas essas informações, é preciso aprender de quem sabe. É preciso ser INTRODUZIDO naquele contexto sagrado, saber caminhar por aquele ambiente... e, então, ir se tornando conhecido (e reconhecido) pelos Deuses.
A partir desse ponto de vista, acho impossível que duas pessoas com visões antagônicas de um Deus ou Deusa possam fazer alguma coisa juntos. Ou melhor: possam fazer algo que realmente seja reconhecido por esse Deus ou Deusa a ponto de atender ao chamado.
Ver tal reflexão na comunidade pagã brasileira é um alívio, diante da Casa de Mãe Joana que é divulgado pela internet.

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