quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Caracteres específicos da religiosidade romana

A disposição e o vivíssimos interesse pelas realidades imediatas, tanto cósmicas como históricas, não demoram a aparecer na atitude dos romanos em relação a anomalias, acidentes ou inovações. Para os romanos, como também para as sociedades rurais em geral, a norma ideal manifestava-se na regularidade do ciclo anual, na sequência ordenada das estações. Toda inovação radical equivalia a um ataque à norma; em última análise, implicava o risco de um retorno ao caos. De modo semelhante, toda anomalia - prodígios, fenômenos insólitos - denunciava uma crise nas relações entre os deuses e os homens. Os prodígios proclamavam o descontentamento ou até a cólera dos deuses. Os fenômenos aberrantes equivaliam a manifestações enigmáticas dos deuses; de certo rpisma, eles constituíam "teofanias negativas".
Para os romanos, a significação precisa dos prodígios não era evidente; tinha de ser decifrada pelos profissionais do culto, o que explica a importância apreciável das técnicas divinatórias e o respeito mesclado de temor que desfrutavam os arúspices etruscos e, mais tarde, os LIvros Siblilinos e outras coleções oraculares. A diviniação consistia em interpretar os presságios vistos (auspicia) ou ouvidos (omnia). Somente os magistrados e os chefes militares estavam autorizados a explicá-los. Mas os romanos haviam guardado para si o direito de recusar os presságios. Uma vez decifrado o sentido do prodígio, procedia-se a lustrações e a outros ritos de purificação, pois estas "teofanias negativas" haviam denunciado a presença de determinada mácula, e era importante que ela fosse cuidadosamente afastada.
A primeira vista, o medo desmedido dos prodígios e das máculas poderia ser interpretado como um terror pela superstição. Trata-se, no entanto, de um tipo particular de experiência religiosa, poruqe é por meio de tais manifestações insólitas que se estabelece o diálogo entre so deuses e os homens. Essa atitude diante do sagrado é consequência direta da valorização religiosa das realidades naturais, das atividades humanas e dos acontecimentos históricos, em suma, do concreto, do particular e do imediato. A proliferação dos ritos constitui aspecto desse comportamento. Já que a vontade divina se manifesta hic e nunc, numa série ilimitada de sinais e incidentes insólitos, importa saber que ritual será o mais eficaz. A necessidade de reconhecer até nas minúncias as manifestações específicas a todas as entidades divinas encorajou um processo bastante complexo de personificação. As múltiplas epifanias de uma divindade, assim como suas diferentes funções, tendem a distinguir-se como "pessoas" autônomas.
Em certos casos, essas personificações não chegam a libertar uma verdadeira figura divina. São sucessivamente evocadas, mas sempre em grupo.
O gênio religioso romano distingue-se pelo pragmatismo, pela busca da eficácia e sobretudo pela "sacralização" das coletividades orgânicas: família, gens, pátria. A famosa disciplina romana, a fidelidade aos compromissos (fides), a dedicação ao Estado, o prestígio do direito traduzem-se pela depreciação da pessoa humana: o indivíduo contava tão somente na medida em que pertence a seu grupo. Só mais tarde, sob a influência da filosofia grega e dos cultos orientais da salvação, os romanos descobriram a iportância religiosa da pessoa.
O caráter social da religiosidade romana, em primeiro lugar a importância atribuída às relações com o outro, é claramen5e expresso pelo termo pietas. Apesar de suas ligações com o verbo piare (apaziguar, apagar uma falta, conjurar um mau presságio, etc), a pietas designa a observação escrupulosa dos ritos, mas também o respeito aos relacionamentos naturais entre os seres humanos. Para um filho, a pietas consiste em obedecer o pai; a desobediência equivale a um ato mostruoso, contrário à ordem natual, e o culpado deve espiar essa falta com a própria morte. Ao lado da pietas com relação aos deuses, existe a pietas com os membros dos grupos a que se pertence, a cidade e finalmente todos os seres humanos. O "direito das gentes" (ius gentium) prescrevia os deveres mesmo com relação aos estrangeiros. Essa concepção desabrocha plenamente sob a influência da filosofia helênica, quando se estabeleceu com clareza a concepção da humanitas, a idéia de que o simples fato de pertencer á espécie humana constituía um verdadeiro parentesco, análogo àquele que ligava os membros de uma mesma gens ou cidade e criava deveres de solidariedade, amizade ou pelo menos de respeito. As ideologias humanitaristas dos séculos XVIII e XIX nada mais fazem do que retomar e elaborar, ainda que a dessacralizando, a velha concepção da pietas romana.
Autor: Mircea Eliade, em "A História das Crenças e das Idéias Religiosas II", pg108 - 110, Editora Zahar.

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