Por Madson Gama — Rio de Janeiro.
No universo das lendas e do senso comum, as bruxas são associadas a feitiços e mulheres que voam de vassoura e até chupam sangue de crianças — crenças, inclusive, que levaram muitas pessoas a serem acusadas de praticar bruxaria e acabarem executadas na fogueira a partir da Idade Média. Há também quem não acredite na existência delas. O fato é que elas existem e muitas estão em Vargem Grande, onde várias mulheres (e homens também) se intitulam como tal, vivendo uma rotina imersa no misticismo, mas diferente da ideia difundida pela mitologia. Em comum está a forte ligação com a natureza, que dita rituais diários envolvendo água, terra, fogo, ar e plantas.
Quase todas se conhecem. Elas formam uma rede de apoio, em que uma participa da vida da outra. O GLOBO-Barra esteve no bairro na última segunda-feira (21), às vésperas do Dia das Bruxas, celebrado em 31 de outubro, para entender essa cultura. A primeira parada foi no Luz das Fadas, onde a equipe de reportagem foi recebida com um chá, feito na panela, de capim-limão, louro e erva-cidreira, para a purificação do organismo. A anfitriã, Mônica Ferrão (@luzdasfadas2022), estava acompanhada de outras sete bruxas: Jane Fabres (@janefabres), Lolli Celtic (@lolli_celtic_), Marcele Scram (@marcelescram), Nathália Ribeiro, Carol Santosha (@carol.santosha), Cris Marotta (@govindacandradd_108) e Dany Stenzel (@donadanyma).
O ritual de abertura do encontro incluiu um cântico que invoca as forças da natureza e termina dizendo “amém” e “viva a bruxaria ancestral”. Tudo embalado por incensos e batuques em tambores xamânicos, usados em cerimônias sagradas. O segundo momento foi marcado por uma roda em volta de uma fogueira, com um canto que pede: “Mãe terra, ouça a nossa voz”.
— A bruxaria é verde, porque se dá muito através das plantas e das ervas. Além disso, para nós, a maior magia é a intenção, o conjuro. E a magia faz parte do nosso existir. Não é só acordar e falar: “Vou fazer uma magia”. Nós acordamos e somos a própria bruxaria. Temos uma forte conexão com as fases da Lua, as estações do ano, as pedras, os cristais... Sabemos, por exemplo, que, quando a Lua estiver minguante, vamos nos sentir mais introspectivas — explica Dany.
De acordo com Carol, tanto sombra quanto luz permeiam a bruxaria.
— A bruxaria é definida pelo trabalho com a natureza. É uma compreensão mais aprofundada das vibrações que compõem o invisível. Acabamos sendo vistas como algo ruim e temidas porque entendemos que as sombras fazem parte da nossa essência. A filosofia da bruxaria entende que o mesmo que temos de luz, temos de sombra; então, para nos mantermos na luz, temos que atravessar e curar as sombras primeiro. Assim, vamos ficar no polo positivo verdadeiramente, e não apenas no discurso. As pessoas deveriam ter medo de não trabalhar suas sombras e jogá-las para debaixo do tapete, porque uma hora elas implodem.
Cristais contra energias negativas
O esoterismo está presente em cada canto da casa de Mônica Ferrão, com diversos cristais e sinos de vento na decoração, para afastar energias negativas, fadas de biscuit e tecido na entrada, para proteção, e muitas plantas no quintal. Cada elemento faz parte do ritual diário da bruxa.
— Eu acordo às 5h, dou bom-dia para tudo e vou me conectar com as árvores. Depois, vou ao meu pé de cristal e fico ali um pouquinho, para receber as energias. Faço meus mantras e ouço algumas rezas. Só depois disso me sinto pronta para começar meu dia. No jardim, tenho os elementais, seres mágicos como fadas, duendes e gnomos que há anos são meus protetores e cuidam também das plantinhas e dos bichinhos. São as forças da natureza. É nisso que acredito — frisa Mônica. — Eu sempre me senti uma bruxa, desde a mais tenra idade. Eu morava numa casa que tinha cachoeira, e, quando estava envolvida com meus problemas, sempre ia me conectar com a água e sentia uma energia fluindo em mim. Essa sensibilidade foi se intensificando com o passar do tempo.
Embora haja cursos de formação para a bruxaria, em que se aprende, por exemplo, sobre a história e os diversos tipos de magia, a maioria das feiticeiras de Vargem Grande, assim como Mônica, se inclinou para esse universo de forma natural e intuitiva, a partir de uma espécie de chamado. Foi o caso de Jane Fabres, que viu essa sensibilidade aflorar quando foi morar no bairro, na década de 1980, atraída pelas nascentes de água.
— Vargem é o lugar do misticismo, por conta da abundância de mata e cachoeira e de pessoas que vibram na energia desses elementos. Vim morar numa casa de barro no meio de um sítio, e todo o contexto contribuiu. No meu dia a dia, costumo acionar os quatro elementos da natureza. Primeiramente, pego a energia do sol: abro a mão para ele e, quando a palma esquenta, passo-a pelo corpo. Para acordar a terra, faço uma dança indígena batendo o pé no chão. O ar já flui naturalmente; e, para absorver a energia do fogo, faço fogueira. Trabalho também com plantas medicinais e reflexologia, uma massagem curativa nos pés que beneficia todo o corpo enviando energia — detalha.
A fogueira também é parte da rotina da bruxa Nathália Ribeiro.
— Gosto de fazer transmutação no fogo: escrevo num papel coisas que não quero mais e jogo na fogueira, para que aquilo vire cinza e se transforme em energia positiva — conta.
Entre elas, um bruxo
Em meio à presença feminina maciça, um bruxo se destaca: Márcio Moreira, dono do Recarregando o Espírito (@recarregando_o_espírito), um espaço que faz jus ao título do proprietário. Repleta de espiritualidade, a casa é toda iluminada à meia-luz e contém símbolos de diferentes religiões, como o terço do catolicismo logo na entrada, pendurado na porta, e deidades do hinduísmo estampadas numa parede da sala, onde há também uma imagem de buda, uma fogueira que fica acesa dia e noite e uma cachoeira artificial que usa água da chuva.
Em um dos cômodos, Márcio montou uma espécie de capela, com imagens de divindades como Iemanjá, Nossa Senhora Aparecida, Preto Velho, Santa Sara, São Jorge, São Lázaro e Jesus Cristo ao centro. Na entrada, cristais foram embutidos no piso para atrair boas energias, o que também prometem velas e incensos espalhados por toda a casa.
— Sou universalista, o que significa absorver o que há de positivo em diferentes religiões, como catolicismo, budismo, kardecismo e evangelismo, e criar a sua própria. Sou muito sensitivo e só recebo ordens da espiritualidade, tudo de forma intuitiva. Deixo sempre uma música suave ligada para criar um ambiente de paz, mas há quem não fique bem ao entrar aqui, sentindo uma cólica e precisando sair de imediato. Já aconteceu de lâmpadas estourarem ao chegar alguém — relata ele. — Estou construindo um espaço terapêutico nos fundos do quintal e vou fazer parcerias com oraculistas, astrólogos e terapeutas de reiki para receber o público.
Produtos artesanais e serviços como ganha-pão
A alquimia, ciência mística cujo objetivo é a transformação de um elemento em outro, constitui a matéria-prima para a bruxaria de cada dia de Mariana Zogaib, nutricionista que se define também como fada e que cria produtos como sabonete e kombucha, um chá fermentado, a partir de frutos orgânicos cultivados na agrofloresta de seu quintal, como jaca, jambo, cacau, banana-d’água, tomate, hortelã, ora-pro-nobis e manjericão.
— Toda a minha bruxaria e encanto se dá dentro da cozinha, onde incorporo a bruxa alquimista, que transforma matérias-primas em produtos mágicos. Recebo o que a intuição está trazendo de informação para que eu consiga chegar a um produto final. Essa agrofloresta está no sítio que era do meu sogro e está na família há 50 anos; eu sinto a presença da nossa ancestralidade aqui — diz Mariana, dona do Projeto Germiniscência (@germiniscencia), em Vargem Grande. — Tudo o que eu faço leva Scoby, uma placa de bactérias e leveduras responsável pela fermentação da kombucha. Bato essa placa no mixer e, a partir do purê de Scoby, faço várias coisas, como máscara de argila, gelatina de algas marinhas e sabonete.
Ela começou a produzir sabonetes no final de 2020, depois que recebeu sinais por meio de um sonho, conta:
— Gosto sempre de dormir com mantras direcionados para o sono, para ir entrando numa outra frequência, até para poder me conectar mais com meus sonhos, porque eu recebo muitos sinais através deles. Sempre faço uma higiene mental noturna, para poder estar mais aberta ao que vem durante o sono. E a ligação com o sonho é uma característica metafísica marcante da bruxaria. No caso dos sabonetes, veio uma mensagem muito clara para eu começar a fazê-los.
Este grupo de pessoas que faz da bruxaria seu estilo de vida encontra em áreas como o artesanato e as artes um meio de subsistência, com produtos que acabam sofrendo influências dessa cultura esotérica. Dany Stenzel, além de atriz e instrutora de ioga, produz bonecas de pano místicas, tingidas com ervas, cacau, café e especiarias como cravo e canela. O cheiro dos produtos fica por conta da sócia Cris Marotta, que trabalha com aromaterapia e cristais.
— Faço cheirinhos personalizados. Na conversa com o cliente, entendo suas necessidades e produzo um aroma para a casa ou para ele próprio com óleos essenciais voltado para a cura — explica Cris. — Também faço terapia usando cacau, que se transforma numa bebida com propriedades que regulam a pressão arterial, são antioxidantes e dão um relaxamento espiritual.
Jane Fabres produz pomadas, óleos e xaropes a partir de plantas e ervas.
— A principal planta que uso para fazer pomadas é o guaco, que é antibactericida. Ela é indicada para mordidas de mosquito e cobra, o que tem muito em Vargem Grande — diz.
Lolli Celtic é tatuadora e faz chapéus de bruxa junto com o marido, Pedro Sol.
— Ele faz o cone do chapéu, e eu faço a aba. Depois, a gente casa as duas coisas, e ele ganha uma energia muito diferente. Usamos muito urucum dentro do chapéu, para trazer a força da ancestralidade. Então, ele é um instrumento de cura. O chapéu do Halloween não é só um enfeite; tem magia. Além da proteção, ele nos conecta com a nossa essência e o nosso propósito neste mundo — pontua.
Nathália Ribeiro é instrutora de reiki e DJ. Sempre que pode, inclui sons xamânicos em sua lista de músicas nos eventos. Mônica Ferrão confecciona acessórios como brincos e pulseiras a partir de materiais reutilizados, como cristal, sementes secas, cápsulas de café, cascalho, pedra e galho. Marcele Scram é tatuadora, artista plástica e, assim como Carol Santosha, faz rituais xamânicos.
— As pessoas sempre me procuram querendo amuletos, seja na arte desenhada na pele, na parede ou em telas. E eu procuro me conectar com elas, para que o trabalho possa transmitir uma luz e uma boa sensação. Sempre consigo incluir elementos que estão no inconsciente da pessoa, mas dos quais ela nem tinha falado. É muito mágico — diz Marcele.
Fonte: https://oglobo.globo.com/rio/bairros/barra/noticia/2024/10/27/que-elas-existem-existem-saiba-como-vivem-as-bruxas-de-vargem-grande-video.ghtml